Por que o telefone está sendo banido das pistas de dança
O mundo mudou, e tem muita gente puta da vida com isso
A festa entra em seu momento épico. Aquela grande atração, que todo mundo quer ouvir, finalmente sobe no palco (ou na cabine do DJ), para colocar sua primeira música. O público entra em êxtase. As projeções visuais no telão atrás da cabine, que já estavam bacanas, se engrandecem, já que o astro também utiliza recursos de sincronização de imagens para dar um grau em sua apresentação. O coração acelera. Pessoas compraram seu ingresso há meses, viajaram de outras cidades, e esperavam ávidos por aquele momento… de pegar o telefone e começar a gravar uma recordação para levar para casa.
Não basta estar ali. É preciso ostentar sua presença, através de um bom vídeo devidamente publicado em suas redes sociais. Todo mundo faz o mesmo. Você olha para o lado e vê centenas de pessoas com o braço levantado, não para “louvar” a música, mas para conseguir um melhor ângulo para registrar aquele momento com seus celulares. Cada um precisa ter o seu registro, ainda que absolutamente igual e decepcionantemente amador.
Do outro lado, o DJ ídolo também esperou por aquele momento. Pesquisou algumas novidades matadoras para o seu set, e testemunha, lá do alto da cabine, um mundo de luzinhas emitidas pelas telas e flashes dos smartphones. Percebe, então, que a necessidade de consumir a imagem engoliu a vontade de ouvir o som. Os movimentos naturais da dança são soterrados pela necessidade em manter o braço erguido, segurando cada telefone. O mundo mudou. E tem muita gente puta da vida com isso.
Cada vez mais clubes, principalmente na Europa, estão adotando a No Phone Policy, uma regra que proíbe fotos e vídeos na pista de dança. O objetivo, apoiado por diversos DJs, é recuperar a energia experimentada antes da popularização dos smartphones, um romântico tempo em que as pessoas, em uma casa noturna, se fundiam em um só elemento, comungando as sensações da música.
Para compreender as raízes dessa nostalgia, cabe contextualizar. Na aurora da house music e do techno, um dos elementos que mais chamaram a atenção de quem resolveu deixar de ir a uma casa de shows para se enfiar em um club escuro e enfumaçado, foi a quebra do culto à idolatria do artista. As pessoas estavam acostumadas, até meados dos anos 80, a passar o final de semana em casas de shows, onde um ritual totêmico demandava uma adoração histérica a um rockstar que rebolava no palco, realmente acreditando ser um deus vivo da arte.
Desde o surgimento do rock’n’roll na década de 50, empacotar artistas como heróis subversivos e sensuais era parte da estratégia para vender discos e lotar shows. Passado o deslumbre das primeiras décadas e com a constante exposição de suas histórias, muita gente foi percebendo que aqueles garotos, que pareciam anjos enviados do céu para encantar plateias, não passavam de uns belos malas sem alça.
A quem cultuo? De quem sou devoto? Vale mesmo a pena? Aspectos sociológicos, como o empoderamento da identidade causado pela desmistificação da carreira artística, provocada por sua vez pelo movimento punk (também em sua era mais inocente e romântica), tirou a graça, para muitos, do espetáculo circense montado sobre os palcos. Como a criança que se torna adolescente e percebe que seus pais não eram os super-heróis que antes imaginavam.
Descobrir a cultura clubber, então, virou uma experiência disruptiva. Mal se via onde estava o DJ, e o reconhecíamos pelo som. Sabíamos que era bom de mixagem e bom de pesquisa, tão humano quanto qualquer um da pista. A experiência de dançar a noite toda se tornava introspectiva. No máximo, a atenção era roubada pelos amigos, de longa data ou recém-conhecidos, que estavam ao lado, compartilhando a experiência. “O reino de Deus está no peito da pessoa mais próxima.” Se houvesse techno na Galileia, Jesus teria sido o primeiro clubber da história.
A partir do final dos anos 80, a explosão da cultura eletrônica na Europa, historicamente chamada de Segundo Verão do Amor, fundiu elementos da era hippie dos 60 com a atitude punk do final dos 70. Produtores e DJs europeus entraram de cabeça na contracultura. Discos eram lançados sem o nome do autor, ou com pseudônimos. Alguns, como os irmãos Liberator, na Inglaterra, lançavam com dezenas de alter egos diferentes. No gods, no masters.
Lindo de ver. Mas tal ideologia foi, como acontece com qualquer outro movimento cultural, sendo cooptada para voltar ao modelo que a lógica de consumo entendia. Alguns DJs, muito melhores do que os outros, começaram a arrastar cada vez mais gente para as festas em que tocavam. Os cachês foram subindo e os clubs não comportavam mais a massa de fãs (sim, idolatria) que buscavam se divertir com seu seletor de músicas predileto.
As pistas foram para os festivais e arenas. Logo, a distância física da cabine era tamanha que o DJ era um mero pontinho preto atrás dos toca-discos, a centenas de metros de distância. Para resolver a questão visual, vieram os telões. Então, as projeções e cenografias, cada vez mais elaboradas. Iguais a um show do Kiss ou do Guns N’ Roses. Voltamos para o lugar de onde, tão exuberantemente, fugimos. Junta isso com um telefone na mão, está feita a confusão. Afinal, isso é muuuito instagramável!
“Nós não somos um concerto de rock. Se você tirar o DJ do palco e colocar uma banda de rock no lugar, você está fazendo errado. Porque esta é a grande diferença em estar numa festa com DJs. Não é sobre um monte de gente parada olhando para um palco, com um monte de luzes brilhando em volta do artista. Foi isso o que acabou acontecendo, mas não deveria ser assim”, disse recentemente o DJ estadunidense DVS1, em entrevista ao blog da lendária loja de música Traxsource.
O advento das câmeras digitais e dos smartphones, e por consequência a necessidade de todo mundo registrar tudo, já incomodava muito antes do processo de transformação da cabine dos DJs em farofada pseudopsicodélica. Levantou, no início, a questão da invasão de privacidade, motivo pelo qual clubs como o Berghain, em Berlim, e o Fold, em Londres, proíbem celulares e câmeras em suas dependências desde que inauguraram, em 2004 e 2018, respectivamente.
A discussão atual, no entanto, é em relação ao processo de sucção da atenção do público causado pelo endemoniado gadget que, não contente em acabar com nossa noite de sono ou arrebentar com a nossa produtividade no trabalho, também exige atenção monogâmica em um momento que deveríamos usar para nos livrar da tirania digital. Se for para olhar para a tela, melhor ficar em casa, abrir uma bebida e assistir a alguma live de música no Twitch.
A fabric, outra “instituição” londrina da cultura DJ, anunciou recentemente a proibição de vídeos e fotos na pista de dança. A Hï, em Ibiza, seguiu os mesmos passos. O DJ e produtor italiano Anyma fez uma espécie de enquete no seu Instagram, lançando as duas opções (banir ou não banir o telefone nas suas apresentações) nos comentários do post. A favor de banir, mais de 11 mil likes; contra, apenas três mil.
E no Brasil, até mesmo as festas que adotaram o conceito de superpalcos com efeitos visuais estão aderindo à prática de acabar com o telefone na pista de dança — caso da ERRORR, criada pelo RUBACK, projeto paralelo do duo de DJs e produtores Dubdogz.
“A ideia não é impedir as pessoas de fazerem o que querem — mas propor uma experiência diferente e se permitir viver ela por completo, mais presente e entregue. Vamos colocar adesivos nas câmeras e disponibilizar vídeos dos melhores momentos para o público poder postar depois. E vamos ter um check point na entrada do evento, onde o público pode tirar uma foto antes de ter sua câmera tampada”, explicam os irmãos Marcos e Lucas Ruback.
“Não somos contra usar o telefone pra filmar a festa. É um reflexo do nosso tempo e é natural que as pessoas queiram registrar momentos especiais que elas estão vivendo. Mas somos a favor de um equilíbrio, e também de experimentar novos caminhos.”
Renato Cohen viveu intensamente os tempos mais românticos da era clubber paulistana, até se tornar um dos mais amados DJs brasileiros mundo afora. Do alto de sua experiência, também concorda que a necessidade de sair pela pista de dança com telefone em riste é um reflexo do sequestro do foco causado por uma novidade eletrônica:
“Quando estou voltando de uma festa em que toquei, sempre vejo os vídeos em que fui marcado. Geralmente, com os melhores momentos nas músicas mais escandalosas e marcantes. Mas sempre noto também que, em eventos grandes, alguns vídeos são de momentos em que nada acontece. A minha teoria é que, nessas festas grandes, as pessoas são tão movidas a estímulos o tempo todo, que em apenas um ou dois minutos de calma, o tédio já faz a pessoa recorrer ao celular, como que se precisasse se ocupar com outra coisa. Eu achava que os vídeos serviam mais para se mostrar aos amigos o que está sendo vivido naquele momento, mas o ato de gravar acabou tendo tanta importância quanto”.
A discussão segue quente entre DJs, produtores de festa e público. Tudo indica que ela levará a todos uma sensação de que paralisar o corpo para cumprir a função de pau de selfie humano se tornará algo cafona, incômodo ou até mesmo deselegante, uma vez que a pessoa atrás de você quer ver uma projeção preparada por um VJ, e não a tela do telefone alheio.
Enquanto esta nova regra de etiqueta não se cristaliza, clubs e DJs andam apressando o processo, proibindo fotos e vídeos em um momento em que a música deveria ser o foco principal de receptação sensorial de cada privilegiado cérebro, que pôde estar presente (fisicamente, como nos velhos tempos) em uma festa tão especial.