Kim Gordon Kim Gordon. Foto: Linnea Stephan/Reprodução

Caso Kim Gordon: machismo e etarismo seguem diminuindo grandes mulheres na música

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Artista plástica, escritora e gênia da música experimental, Gordon ainda carrega o estigma de ser uma mulher mais velha

Fundadora da icônica banda de rock alternativo Sonic Youth e hoje uma das figuras centrais da cultura estadunidense, Kim Gordon completou ontem, 28 de abril, 71 anos de vida. Lançado no começo de março, The Collective, seu segundo álbum solo, já foi devidamente analisado por Laerte Castagna no Music Non Stop. Por isso, não vamos nos repetir por aqui. Em vez disso, precisamos chamar a atenção para um assunto que transcende à obra.

Na reunião de pauta, a ideia foi cruzar a notícia do aniversário da artista com um discussão sobre o etarismo feminino. Afinal, o post da própria Kim divulgando seu novo álbum no Instagram continha comentários pavorosos sobre sua idade. Monstruosidades que não merecem ser citadas aqui, até porque, mesmo filtradas, não fazem sentido. A última coisa que se pode associar à sua carreira é o termo “decadente”.

Não há nada que merece menos atenção do que as sessões de comentários dos sites e redes sociais. São o palanque do recalque, da excrecência humana blindada por um certo anonimato. O famoso “postei e saí correndo”. As assustadoras questões que poderiam ser levantadas por quem tiver estômago para analisá-las vão dizer muito mais sobre a relação do ser humano com um teclado à mão do que sobre Kim Gordon e as mulheres na música.

Vamos passear, então, nas outras resenhas publicadas sobre o álbum da artista, para entender como se fala sobre uma mulher que segue no pico da produção artística de seu país aos 70 anos.

Para começar, Gordon é a pessoa que, no mundo, menos se interessa pelo Sonic Youth. Tanto que seus dois discos passam longe do rock alternativo e experimental que influencia bandas de todos os cantos até hoje. Tanto The Colletive quanto No Home Record (seu primeiro LP solo, de 2019) são discos de hip-hop experimental, barulhento e eletrônico, com letras de altíssimo nível e produção feita em conjunto de algumas figuras do cenário de Nova York e Los Angeles, onde atualmente vive. Kim acredita que os beats guardam a essência da transformação, hoje em dia, muito mais do que o rock.

Um elemento presente, portanto, no que se escreve sobre seus trabalhos atuais é uma espécie de viuvez de Sonic Youth. É onipresente a citação do cargo de “ex-mulher de Thurston Moore”, no lugar do termo “cofundadora”, muito mais apropriado. Primeiro porque, como casal, Moore e Gordon não adicionaram absolutamente nada ao mundo, exceto pauta para algumas fofocas. Foi como colegas de banda que eles realmente viraram a música de ponta cabeça, com 15 álbuns imprescindíveis.

Em segundo (aqui, um ponto de atenção mais incisivo), a denotação vai sempre tirar o protagonismo dela. Vai passar a impressão de que o grande gênio chamou “sua mulher” para tocar com ele, como uma linda prova de amor e companheirismo. Você raramente vai ler, em uma matéria sobre Thurston Moore, a citação de ele que foi “ex-marido de Kim Gordon”. E jamais, tampouco, lerá “Kim Gordon e seu ex-marido formaram o Sonic Youth”. Já nas resenhas e perfis sobre Kim, é certo de que o posto de esposinha vai estar lá.

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Outra citação infalível em qualquer texto que se encontre sobre o novo trabalho da musicista é a idade, sempre envolta de sentimentos como surpresa, admiração ou superação. Justin Raisen, um dos produtores convidados para The Colletive, disse ao NY Times que “apesar de muitos artistas entrarem em decadência nessa fase da vida, há exceções como Leonard Cohen, David Bowie e Nick Cave“.  Apesar de ter se esquecido de mencionar mulheres nessas exceções (cadê Patti Smith, meu Deus?), Raisen levanta a bola para eu cabecear: pesquise por matérias sobre os últimos discos de Nick Cave, o único vivo entre os três mencionados. Você não encontrará ênfase sobre a sua idade. Quando se fala sobre artistas mulheres, no entanto, o assunto vem sempre acompanhado de saudações e, não raro, comentários sobre suas condições físicas.

A explosão da idolatria dos astros da música e de seu poder de transformação social da juventude aconteceu a partir de 1946, com o final da Segunda Guerra Mundial, o mais traumático acontecimento da história da humanidade. Os “velhos”, com sua ambição desmedida pelo poder, quase reduziram o mundo a pó. Na sociedade ocidental, eram os conservadores, os que haviam abandonado seus sonhos para manter uma vida medíocre, consumista e submissa. Os “jovens”, naquele momento, eram os que lutavam pela liberdade, pela justiça social, pela paz e o amor. Os jovens mudariam o mundo.

60 anos depois, vimos que não mudaram. Pelo menos naquilo pelo qual lutaram. Houve transformações importantes, no entanto, e uma delas é justamente na noção de que na sociedade em que vivemos, a própria consciência sobre juventude e velhice é completamente diferente. Com os avanços da medicina, a expectativa de vida dobrou em relação aos anos 50. Vivemos e produzimos por mais tempo. Além disso, a decantação dos traumas e sua consequente reorganização social fez com que, hoje em dia, parte da juventude seja tão conservadora quanto pessoas de outras faixas etárias.

Parece que muita gente ainda não enxergou essa dissipação de conceitos. E, quando a artista é mulher, as cracas estruturais ainda se sobrepõem. Machismo e etarismo trabalham juntos para apresentar alguém como ela em uma espécie de milagre. Se nem blindada por uma carreira impecável Kim Gordon escapa das estigmatizações, imagine uma artista menos conhecida, na batalha pelo seu lugar na indústria da música nos dias de hoje?

Além da marca do Sonic Youth e de sua idade, o termo “cool” também rodeia o novo trabalho da cantora e compositora. Em alguns casos, “cool para uma mãe de 70 anos”, divagação exclusiva ao sexo feminino.

Multiartista antes de o termo virar modinha, Gordon segue com exposições de quadros em galerias fodas dos Estados Unidos, lança no próximo mês mais um livro, com crônicas baseadas nos desenhos de seu irmão mais velho, Keller, falecido há dois anos, e faz música contemporânea. Ela não é “cool para uma mulher de 70 anos”, ela é cool para qualquer um, de qualquer idade, etnia ou gênero.

E como está seu disco novo? The Colletive é sujo, provocativo, feminista, abstrato, profundo: totalmente Kim Gordon. E bombou no TikTok. Seu último single, Bye Bye, teve mais de 300 mil visualizações. Foi lá que um usuário comentou: “ela curou meu medo de envelhecer”.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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