Rave Revolution - política e música eletrônica A Rave Revolution, que tomou o entorno do Parlamento da Geórgia. Foto: Reprodução

Política e música eletrônica? Na Geórgia, dançar já foi sinônimo de luta

Flávio Lerner
Por Flávio Lerner

Relembre a história da Rave Revolution — quando o techno invadiu o entorno do Parlamento de um país

Como já explicou Camilo Rocha aqui mesmo, no Music Non Stop, apesar da faceta hedonista da cultura da música eletrônica, algumas vezes ao longo da história, o simples ato de dançar foi uma poderosa manifestação política. O caso mais notável dos últimos tempos em que isso ocorreu completa hoje seis anos: a chamada Rave Revolution, na Geórgia.

Nas primeiras horas de 12 de maio de 2018, dois clubes da capital do país, Tbilisi [o Bassiani e o Cafe Gallery], sofreram batidas policiais justificadas como operações de combate às drogas. Na ocasião, um dos sócios do Bassiani — a casa noturna que ganhou maior projeção a partir deste caso —, Zviad Gelbakhiani, foi detido, junto com cerca de sete dezenas de pessoas que estavam nos arredores da boate, segundo a BBC.

Antes de seguir com a história, precisamos dar aquela contextualizada básica. A Geórgia é um local complicado. Sob o domínio da União Soviética até 1991, o país se encontra, tanto geograficamente quanto conceitualmente, entre a Europa e a Rússia. Por um lado, seu governo atual quer integrar a União Europeia e a Otan, se posicionando, portanto, ao lado das chamadas democracias liberais do Ocidente. Por outro, parte considerável da sociedade é ultranacionalista, estando ligada a grupos neonazistas, à Igreja Ortodoxa Georgiana ou à própria influência russa, que tem visões diametralmente opostas aos valores ocidentais.

Isso faz com que as premissas da cultura clubber — liberdade de autoexpressão, tolerância ante multiplas sexualidades e uma visão bem mais flexível em relação ao uso de narcóticos — estejam constantemente sob ameaça. A Geórgia não é um dos países mais tranquilos para a população LGBTQIAP+, e a legislação antidrogas é duríssima, chegando ao ponto de prever condenações de anos de cadeia aos seus usuários [sim, usuários, não somente traficantes].

O que eclodiu naquele 12 de maio foi, portanto, como a gota d’água que fez transbordar o balde. Poucas horas depois das ações da polícia, cerca de dez mil clubbers tomaram o entorno do Parlamento georgiano para protestar contra o que consideraram medidas arbitrárias e desproporcionais — uma perseguição àquela comunidade e modo de ser. Não demorou para que os protestos virassem uma grande rave de techno, em que a dança não era por diversão ou escapismo da vida mundana, mas um posicionamento firme de luta pelos seus direitos.

Claro que não seria simples. Grupos políticos com tendências fascistas [fascistas de verdade!] viram aquele ato como uma provocação, e contra-atacaram na mesma moeda. “Não era simplesmente uma manifestação contra as prisões, mas uma manifestação por políticas de descriminalização do uso de drogas e ‘propaganda’ LGBT”, declarou George Chelidze, o líder de um desses grupos, ao minidocumentário gravado pela BBC. Detalhe: Rayhan Demytrie, a reporter que cobriu o caso, não conseguiu se encontrar com Chelidze na data combinada porque ele havia sido detido. Mais tarde, antes de mostrar sua suástica tatuada no peito, explicou que o fora porque a polícia não queria que ele falasse à emissora britânica.

Pelo outro lado, apenas três dias depois da rave-protesto, foi realizado o Family Purity Day, no qual milhares de cidadãos georgianos ligados à Igreja Ortodoxa se manifestaram para contrapor o Dia Internacional Contra a Homofobia, comemorado todo 17 de maio. Portanto, não havia muita escolha: se você morasse na Geórgia e pertencesse à comunidade da música eletrônica underground, dançar teria um significado muito mais profundo do que se divertir e esquecer dos problemas.

Localizado abaixo de um estádio de futebol, a Boris Paichadze Dinamo Arena, e com sua pista principal construída sobre as bases de uma antiga piscina olímpica, o Bassiani teve em sua primeira festa após o episódio uma demonstração de coragem e resiliência, e o caso ganhou tamanha projeção que algumas das maiores figuras da cena house/techno global [Ben Klock, Dixon, Nina Kraviz, Marcel Dettmann…] postaram vídeos demonstrando apoio à cena clubber da Geórgia, tornando famoso o slogan If we dance together, we fight together [“Se dançamos juntos, lutamos juntos”].

A partir de então, o clube ganhou fama como uma das maiores e mais especiais casas noturnas de techno do mundo, virando parada turística obrigatória para qualquer pessoa que curta uma boa balada para celebrar a própria liberdade. Ou lutar por ela.

Flávio Lerner

https://flaviolerner.medium.com/

Editor-Chefe do Music Non Stop.

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