Techno na Chechênia Foto: Aleksandr Popov (via Unsplash)

Bizarro: Chechênia bane techno e outros estilos que remetem ao Ocidente

Jota Wagner
Por Jota Wagner

A partir de 1º de junho, governo de Ramzan Kadyrov só permitirá músicas com “senso de ritmo checheno” no país

Importante avisar: o que você lerá a seguir não é o roteiro de uma esquete de programa humorístico. É notícia mesmo. E não tem nada de engraçado. Conforme relatou The Guardian, o líder da Chechênia, Ramzan Kadyrov, quer banir a influência do Ocidente na música do país, preservando os valores culturais tradicionais.

Apesar de manter um governo próprio, a região segue anexada à Rússia, mesmo após diversas tentativas bélicas de separação. Durante a segunda guerra pela independência, conflito que durou dez anos, o pai de Ramzan, Akhmad Kadyrov, deserdou do exército checheno, fechou um acordo com Vladimir Putin e foi nomeado “chefe” da nação, posto transferido para o filho em 2007, com apenas 30 anos, após o assassinato de Akhmad.

O contexto geopolítico é importante para entender o balaio de gato em que se transformou a Chechênia após fazer as pazes com a Rússia. Kadyrov anda pelas ruas com uniforme militar desgrenhado e uma cara de lenhador que jamais leu meio capítulo de livro na vida. É conhecido pelo desrespeito aos direitos humanos, incluindo um absurdo campo de concentração para tortura de homossexuais, descoberta que chocou o mundo em 2017. Em quase 20 anos no comando, sua principal tarefa tem sido abafar os diversos levantes separatistas que ainda fazem parte do desejo de muitos chechenos.

Para tirar a atenção deste assunto, além das atrocidades cometidas por um governo autoritário, o ditador adotou a estratégia de focalizar suas ações em uma guerra contra a “malévola” influência cultural vinda do Ocidente. Isso explica as novas determinações de proibir música que não respeite o “senso rítmico dos chechenos”. A nova lei passa a entrar em vigor a partir de junho.

Para organizar a proibição e explicar aos delegados o que pode ou que não pode nas rádios e festas chechenas (aqui, sim, cabe rolar no chão de tanto rir), Kadyrov estipulou que somente músicas entre e 80 e 116 batidas por minuto (os BPMs) fazem parte “da mentalidade e do senso de ritmo” do país.

Trap está cortado. Techno também. Já uma boa faixa de soulful house pode entrar na festa, bem como a space disco de Lindstrøm e Todd Terje. Time To Pretend, to MGMT, tem 110 BPMs, então rola. O próprio hino da Rússia, por exemplo, estaria fora. É para entrar para o livro dos recordes como uma das maiores pataquadas legais da história.

“Emprestar cultura musical de outras pessoas é inadmissível. Nós precisamos dar às pessoas e ao futuro de nossas crianças a herança cultural do povo checheno. Isto inclui todo o espectro da moralidade e dos padrões éticos da vida na Chechênia”, justificou Musa Dadaev, Ministro da Cultura. De acordo sua cabeça, as raves chechenas, a partir de junho, serão assim:

Importante lembrar que difundir a produção cultural de uma nação também é uma forma de expansão de influência. Músicas e filmes falando como seu país é legal, e como os jovens são descolados, por exemplo. Mas, aqui, estamos falando de expansão e difusão, e não de proibição, alijamento.

Não é preciso sair de casa para compreender a importância do intercâmbio artístico para o desenvolvimento cultural (e intelectual) de um povo. Sem o violão português, não existiria a bossa nova ou a música caipira brasileira. Sem os tambores africanos, não haveria samba. A intersecção de culturas é o elemento mais importante para a criação do novo.

Isso fez com que a composição musical se tornasse tão complexa e miscigenada que classificá-la, mesmo para fins de proibição, é praticamente impossível. Vale lembrar da infame lei anti-rave aprovada pelo parlamento inglês em 1994, que queria proibir festas em que se tocavam músicas com “batidas e elementos repetitivos”.

O buraco, no entanto, está bem mais embaixo. A criação de uma espécie de teatro do absurdo tem sido bastante usada nos tempos atuais, por governos de todo o mundo e de diferentes ideologias, nos momentos em que estão sob pressão intensa. Ao criar uma cortina de fumaça, incentivando a opinião pública e a mídia a discutirem assuntos propositalmente bizarros, apazíguam-se os porões, onde as reais atrocidades podem ser cometidas sem a atenção de todos.

Kadyrov parece saber bem disso.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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