Time Warp Time Warp 2002. Foto: Divulgação

Time Warp: como a reunificação da Alemanha criou um dos maiores festivais do planeta

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Conheça a história deste que é um dos mais conceituados rolês de techno e house mundo afora

Dias 03 e 04 de maio, São Paulo recebe mais uma edição do Time Warp, no Vale do Anhangabaú. Atualmente, os brasileiros são responsáveis pelo segundo maior público, perdendo apenas para a matriz, em Mannheim, no sudoeste da Alemanha — o festival ainda passou por Argentina, Chile, Estados Unidos, Holanda, Itália e República Tcheca.

Um dos mais importantes eventos dedicados ao techno e à house no planeta, o TW teve papel fundamental para a construção da cena techno como a conhecemos, e a busca pela excelência em curadoria musical, acústica, interação audiovisual e estrutura é o segredo para tanto destaque.

Todos os anos, a cidade de Mannheim recebe milhares de turistas para curtir os maiores nomes do estilo, divididos em impressionantes sete palcos diferentes. A história do rolê se confunde com a da música eletrônica na Alemanha e, desde que chegou ao Brasil, em 2018, também ajuda a moldar os rumos da cena nacional.

Mannheim, 1992

Time Warp

Time Warp 2017. Foto: NACHTSCHADUW/Divulgação

Em 1992, a juventude alemã vivia uma nova lua de mel com seu país. A Alemanha acabava de ser reunificada, e as novidades que sopravam com o vento eram muito, muito maiores do que as separações geográficas. Era como se metade de sua família estivesse, depois de 40 anos, voltando do exílio.

A sensação, pelas ruas, era de otimismo e alívio. O muro de Berlim, derrubado a marretadas a partir do dia 09 de novembro de 1989, foi um dos mais festivos e emblemáticos acontecimentos do século XX. Afinal, aquele murinho safado não dividia apenas a capital alemã. Dividia um planeta inteiro. Era o fim da Guerra Fria e do medo de que, a qualquer momento, um conflito atômico iria pulverizar o mundo.

A máquina do governo alemão, a partir da reunificação, foi toda reformulada, fundindo duas estruturas diferentes em uma só. Com a reestruturação, milhares de edificações burocráticas e equipamentos militares foram desmontados, vagando galpões industriais e edifícios em todo o país.

Enquanto isso, uma juventude feliz, cheia de perspectivas e com experiência em fazer arte a partir do concreto, do urbano, como o expressionismo, o movimento Bauhaus e o Krautrock, estava louca para celebrar aquele momento. Foi como jogar formigas em uma loja de doces. Os espaços urbanos vazios do país começaram a ser invadidos por gente louca para festar. E o techno, aquele bate-estaca industrial que vinha lá de Detroit, a pura síntese entre o homem e a máquina, era a trilha sonora perfeita para a geração alemã dos anos 90.

Só para vender uns disquinhos

Time Warp

Foto: Divulgação

A febre das raves, movimento de festas ilegais em galpões, squats ou onde quer que se tivesse espaço para montar um som e botar DJs pra tocar, já era gigante na Inglaterra desde 1988, e caiu como um luva para aquele novo momento da Alemanha. Na distante Mannheim, que ficava a sete horas de carro de Berlim, quase colada na França, só foi chegar em 1993. Fundador do Time Warp e sócio até hoje, Steffen Charles tinha uma loja de discos, e começou a promover alguns eventos na região. Descolou alguns clubs da cidade e pôs-se a fazer festa. Para se diferenciar, teve uma ideia que viria a ser uma das grandes marcas do futuro maior evento de techno do planeta: nunca pensar pequeno quando o assunto era DJ convidado.

Já em seus primeiros rolês, Charles levou a Mannheim artistas como Carl Cox, Laurent Garnier e Sven Väth, nomes já enormes, mas que se tornariam gigantes no futuro, assim como o festival que criaria no ano seguinte. Estava plantada a semente. O fertilizante que ajudaria a brotar na cabeça de Steffen a ideia de algo maior chegou em 1994: ele tinha o desejo de fazer um evento que trouxesse de volta a parte genuína da cena techno e house, em que a música viesse em primeiro lugar e os artistas se sentissem livres para experimentar e testar suas pesquisas e produções mais recentes.

Apesar de estarmos falando do anos 90, o techno na Alemanha já estava popular ao ponto de muitas festas se tornarem “massificadas”, e a música, repetitiva. Muitos ravers já começavam a sentir falta da essência e da “verdade” naqueles eventos. Daí, a gênese do conceito do Time Warp: The truth is on the dancefloor (a verdade está na pista de dança).

Voltando às origens

Time Warp

Time Warp 2018. Foto: Divulgação

O carnaval raver que tomou conta da Alemanha chamou a atenção do resto da Europa. Berlim fervia com suas festas e o novíssimo clube Tresor, cuja pista era dentro de um cofre desativado. Desde 1989, rolava a primeira parada de rua do mundo dedicada à música eletrônica, a Love Parade. Em cima de trios elétricos, DJs tocavam para um público que celebrava o amor, a paz e a união, tudo o que vibrava naquela nova nação reunificada.

Em 1994, a Love Parade superou, pela primeira vez, cem mil pessoas dançando. Até o fim de sua história, com um trágico tumulto que resultou na morte de 21 pessoas em 2010, chegou a reunir quase um milhão. Mas em meados dos anos 90, a preocupação era outra. A inocência da cena alemã estava se perdendo sob o voo de rapina das grandes corporações, que despejavam dinheiro de olho naquele novo mercado que se formava. Descolado, moderno, disposto a gastar.

Steffen Charles ainda cuidava da sua loja, mas o mosquito produtor de eventos já o havia picado, infectando-o com a delícia de ver uma porção de gente se acabando de dançar em uma festa que ele criou, colocou em pé, fez acontecer. Via que algo estava se perdendo nas raves que se espalhavam por todo o país. Que a subversão cultural do movimento raver estava sendo cooptada. Era preciso voltar às origens.

Quem frequenta loja de discos sabe. Não existe cliente, existe amigo. A galera que cola toda semana e pergunta: “e aí, o que chegou de novo?”. De tanto passar tempo garimpando bolachas, o papo com o cara atrás do balcão faz a relação esquentar para amizade. Michael Hock era um desses assíduos fuçadores, e foi o escolhido por Charles para o convite. Mannheim precisava de um festival. Só com DJs true, para manter a cena do jeito que ela tinha que ficar, exclusiva aos amantes da música pela música.

Nascia o primeiro Time Warp. Um bebê. O line-up da edição de estreia (segure o queixo) era: Speedy J, Robert Armani, Laurent Garnier, John Acquaviva, Lunatic Asylum, Acid Junkies, Patrick Lindsey, Trope, Kid Paul, Groover Klein. Heiko M/S/O, Mr. Erg, Seebase e Marc Bean. Parte da nata do techno mundial. Claro que levantou as orelhas de toda a Alemanha.

O festival seguinte, em 1995, traria ainda Richie Hawtin, Josh Wink, Juan Atkins, Kevin Saunderson, DJ Hell, Ian Pooley e LFO. Em 96, Orbital! Tudo isso em apenas três anos. Claro que, no começo, equilibrar as contas foi uma tristeza. O festival era financiado tanto pelos eventos menores que Charles fazia durante o ano, quanto pelo capital de giro da sua lojinha.

É óbvio, no entanto, que line-ups galácticos como aqueles elevaram o prestígio do Time Warp às alturas, em toda a Europa. Charles e Hock aproveitaram para dar o devido upgrade em outros pontos, que também se tornariam impressões digitais da marca: a qualidade do sistema de som e a cenografia dos palcos. A Alemanha é conhecida como a Meca da engenharia de som. Conforme o TW ia aumentando, a quantidade de palcos, um som de impressionar, um sistema de iluminação de ponta e cenografia caprichada vieram juntos. Tudo foi se fundindo para fazer o evento crescer cada vez mais.

Quem chamou os homi?

Time Warp

Time Warp 2017. Foto: Felix Hohagen/Divulgação

Apesar de criar uma utopia de mundo perfeito para seus participantes, o Time Warp e sua equipe ainda viviam sob a legislação mundana. A mesma que, na virada do milênio, encasquetou que as raves eram um problema. Desde 1994, a Inglaterra careta já estava incomodada com o movimento. Foi o ano em que o governo instaurou o Criminal Justice Act, voltado à repressão dos eventos ao ar livre. Policiais nas portarias, helicópteros de vigilância sobrevoando festas e até ameaça de jogar bombas em eventos ilegais foi feita pelo primeiro ministro John Major. O cara não gostava mesmo de techno.

Assim como a onda das raves, a do mau humor também foi importada da Inglaterra. A polícia local de Mannheim começou a bater pesado em todos os eventos “com cara de rave” e, apesar de já estabelecido na região, movimentando a economia turística da cidade, o Time Warp não ficou de fora. Operações policiais massivas bateram à porta do festival em 2002 e 2003. A onda de amor e paz se transformou em uma demonização tão estressante daquela cultura, que o tema da edição de aniversário de dez anos foi O Grande Final.

Resistir era preciso, e para isso, a equipe contava com sanguinho novo, a partir da entrada de Robin Ebinger. No front, junto a Charles e Hock desde o final dos anos 90, o trio decidiu por seguir com o rolê, mesmo a contragosto dos governantes. A decisão foi acertada. O público comprou a briga, e as edições posteriores começaram a bater recordes de frequentadores, ano após ano. A paranoia se dissolveu a ponto de o prefeito Peter Kurtz condecorar o TW em 2008 por seu “impacto promocional e econômico”, e ainda proclamou Mannheim como A Cidade da Música e do Pop. Como dá voltas esse nosso mundo!

Um tempo depois, com a saída de Michael Hock e a entrada de Frank Eichhorn, formou-se o atual corpo diretivo do Time Warp.

Hora de voar

Time Warp

Time Warp 2019. Foto: Felix Hohagen/Divulgação

Animados, os três amigos resolveram subir mais um andar. A ideia agora era conquistar o planeta. Montaram uma empresa para cuidar da organização do festival, a Cosmopop, e começaram os planos de fazer com que o som, a luz e o line-up caprichados chegassem a outras vizinhanças. Praga, Turim, Milão, Amsterdã, Nova Iorque e Buenos Aires já receberam edições do Time Warp. Mas ainda faltava uma cidade. A maior do continente sul-americano, cheia de gente festeira, animada e amante de música, anfitriã de grandes eventos musicais e que recebeu o techno em seus clubes quase simultaneamente ao nascimento do TW: São Paulo.

Coube à Entourage, produtora paulistana fundada em 2008, a função de meter pilha nos alemães para trazer o festival ao Brasil. A empresa já estava acotumada a eventos de grande porte, tanto em criações autorais, como os festivais Só Track Boa, BOMA, Tantša e Kaballah, a licenciamentos de eventos gringos, como o Brunch Electronik, Circoloco, Elrow e The Masquerade.

Os fundadores do Time Warp exigem que cada detalhe siga à risca os padrões de qualidade do evento mãe. Para se ter uma ideia, a equipe alemã da Cosmopop se debruça sobre planilhas, plantas e riders, analisando cada detalhe — desde especificações técnicas do som até as plantas baixas do local, verificando como será o fluxo das pessoas entre os palcos, banheiros e bares. Curiosamente, a parte do processo que fica totalmente na mão da equipe brasileira é a montagem do line-up. Como regra, somente a mais básica: “não pode ser menos impressionante do que a que nós montamos aqui em Mannheim”.

A curadoria brasileira divide os convites em três turmas: os grandes ícones da música eletrônica, os que estão despontando no cenário mundial e trazendo sonoridades diferentes e os talentos locais, os brazucas que arrebentam por aqui. Na próxima edição, por exemplo, os paulistanos vão poder dançar ao som de DJs que estiveram nas primeiras edições do festival, como Sven Väth e Richie Hawtin, astros do momento como Black Coffee e BICEP, e pratas da casa como Mochakk e Vermelho.

Time Warp

Time Warp Brasil 2018. Foto: ImageDealers/Divulgação

O Time Warp chegou em 2018 ao Brasil. Agradou aos alemães, virou um dos poucos países onde as edições são anuais e, hoje, já é o segundo maior evento da marca, sendo menor apenas que o de Mannheim. Foram duas edições no Sambódromo do Anhembi, um pulinho no Autódromo de Interlagos e, para 2024, a equipe da Entourage resolveu enfiar de vez o TW no coração de São Paulo, decidindo pelo Vale do Anhangabaú. Além da cenografia e dos efeitos visuais dos três palcos, o festival terá como cenário os clássicos edifícios que circulam a área.

A decisão pelo novo local tinha alvo certo: trazer o componente urbano. Além disso, a região central foi a que mais abraçou a cultura underground paulistana desde sempre. Desde sua restauração, o Vale foi preparado para grandes eventos, tanto em estrutura, quanto em segurança do lado externo. O Time Warp vai manter dois palcos a céu aberto, para que se dance olhando em volta mesmo.

E sentir-se, genuinamente, em São Paulo.

Serviço

Time Warp Brasil 2024

Local: Vale do Anhangabaú: Av. São João, R. Formosa – Centro Histórico de São Paulo, São Paulo/SP
Data: Dias 03 e 04 de maio (sexta e sábado)
Horário: Das 20h às 08h (em ambos os dias)
Atrações: 999999999, Bicep presents Chroma (AV DJ set), Black Coffee, Black Coffee B2B Mochakk, Boys Noize, Chaos in the CBD, Chris Stussy, Delcu, DJ Holographic, DJ Seinfeld, Due, FHTD, Gartzzea, Gop Tun DJs, HAAi, Hercules and Love Affair, Horse Meat Disco, Hot Since 82, I Hate Models, Klangkuenstler, Maceo Plex, Mall Grab, Mari Boaventura, Marta Supernova, Mila Journée, Mochakk, Richie Hawtin, Roman Flügel, Sama’ Abdulhadi, Sara Landry, Silenzo, Skin on Skin, Slim Soledad, Sven Väth, TSHA, Valentina Luz B2B Eli Iwasa, Vermelho e WhoMadeWho (Hybrid DJ Set)
Ingressos: Via Ingresse
Patrocínio: Beck’s

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

× Curta Music Non Stop no Facebook