Pista do festival Time Warp Brasil 2023. Foto: Alisson Demetrio

Time Warp Brasil 2023: mulheres detonaram, banheiros mais limpos que de shopping e som alto e cristalino. Vem mergulhar no nosso review

Laerte Castagna
Por Laerte Castagna

Aconteceu neste final de semana (5 e 6 de maio) no Autódromo José Carlos Pace em Interlagos a 4º edição do festival alemão Time Warp, um dos principais eventos de techno e variantes do planeta. Foram mais de 28 mil pessoas dançando ao longo de dois dias ao som de nomes de peso do cenário mundial, como Adam Beyer, Amelie Lens, Honey Dijon, Bonobo, Paula Temple e os talentos nacionais, como Mochakk, ANNA, Valentina Luz, KENYA20Hz, L_cio, Tessuto, Eli Iwasa entre muitos outros. O festival, que tem suas origens no underground, hoje é um evento gigantesco direcionado a um público jovem que, pelo que vimos, gosta de uma jogação. Na primeira noite, a grande maioria era uma molecada extremamente animada na faixa dos 20 anos que não arredou os pés da pista e dançou até bem depois do sol raiar, quando os últimos DJs deixaram a cabine.

SEXTA: A LARGADA

Ir a um grande festival é uma das tarefas mais cansativas na vida de um aficionado por música e pode ser deveras irritante devido aos grandes espaços a serem percorridos e, principalmente, à multidão que inevitavelmente há. Frequentemente existem enormes filas para tudo, banheiros infectos e por vezes não se desfruta do melhor som quando muito afastado dos palcos. O que vimos no Time Warp Brasil neste final de semana foi exatamente o oposto disso. Zero filas, fosse para comprar fichas, com dezenas de vendedores espalhados pelo local ou para pegar a bebida em algum dos vários bares, além disso os banheiros estavam sempre limpos, inclusive com o piso seco, mesmo nos cubículos masculinos!

O som é o ponto alto do evento e merece um destaque à parte. Além de muito alto, é extremamente bem definido, sendo possível sentir os graves, médios e agudos limpos e claros de qualquer parte da tenda ou da pista aberta. Na de techno, uma parede com 15 parrudos subwoofers gerava uma onda de baixa frequência que literalmente fazia tremer o piso do autódromo. Duas imensas colunas de médios e agudos suspensos davam conta de transmitir cada detalhe dessas faixas sonoras, fazendo com que cada zumbido, raspagem ou clique presente nas tracks tocadas fossem plenamente apreciados. Realmente uma coisa muito séria esse soundsystem, vai ficar difícil fazer comparações em futuros eventos. A pista, uma enorme tenda em formato de hangar, esteve sempre cheia, porém essa sua grande dimensão possibilitou que se dançasse confortavelmente por toda ela.

A largada do techno foi dada pela nossa querida Sheefit abrindo os serviços com eficiência e, para uma plateia ainda pequena, demonstrou sua ótima técnica em um set bem animado. Em seguida vieram os alemães do SHDW & Obscure Shape esquentando os pneus para a grande corrida. Na pista outdoor, Ricardo Baraka, aclamado com o codinome Bonobo, pareceu meio perdido, realizando um set morno e com altos e baixos, mas que agradou imensamente aos presentes. Voltamos correndo à tenda principal para conferir uma das mais incensadas revelações dos últimos anos.

O TRANCE VOLTOU AO PÓDIO?

Não é novidade nenhuma que o trance está embrenhado nas produções de techno há algum tempo e que faixas com essa pegada são parte do set de muitos DJs atualmente. Porém, a bela e simpática siberiana Anfisa Letyago pode ter passado um pouco do limite. Tivemos uma rotina boa tecnicamente e que empolgou demais a platéia, mas um tanto exagerada nos barulhinhos, climas, paradinhas e morde-assopra, até mesmo com o famoso baixo “cavalinho do psy”. Até que foi legalzinho, contudo creio que Letyago teria sido vaiada ou criado o famoso efeito Moisés numa tenda de techno há alguns anos.

Logo depois era hora dos fracos irem para os boxes, pois a inglesa Paula Temple tinha outros planos e em 30 segundos mostrou a que veio, descendo a mão sem piedade em um set pesado, denso e sombrio em alguns momentos. Isso não significa que abriu mão de colocar todo mundo para pular e dançar por duas horas. E, se a russa força nas linhas de trance, Temple usa e abusa dos timbres de hardcore dos 1990, outra forte referência dos produtores da atualidade. Construiu um set coeso e muito bem conduzido com apuro técnico e artilharia sônica pesada, bem ao gosto da molecada.

Em seguida, era a hora da grande atração da noite, Adam Beyer, que tirou muito velhinho de casa para enfrentar a exaustiva realidade de um festival. Em quase 30 anos de carreira, o sueco é nome consagrado com excelentes serviços prestados ao techno no mundo todo. Freud ensinou que é inútil buscar aquele chamado prazer primordial, então evitamos comparar seu som com o de outros tempos, como o que fez na lendária Circuito no Clube Nacional. Dito isso, foi um set à la Beyer, ou seja gordo, consistente e com muitos momentos hipnóticos e propícios ao transe. E, como já escreveram em alguma placa por aí, “se é Beyer, é bom.”

Se é Beyer é bom. Pista interna do festival Time Warp Brasil 2023. Foto: Alisson Demetrio

A HOUSE TOMA A FRENTE

Enquanto isso, a carismática Honey Dijon incendiava o asfalto na curva da house music do palco Outdoor. A americana de Chicago fez sua já tradicional mistura infalível de house, disco, techno, black e pop music sem pudor, sempre com o astral nas alturas para o deleite da turba ensandecida. A pista ao ar livre provou ser o local ideal para essas sonoridades feitas para o povo rebolar.

Pista externa do festival Time Warp Brasil 2023. Foto: Alisson Demetrio

Às duas da manhã o performático Patrick Mason entra cantando ao microfone na primeira de muitas intervenções em sua rotina sempre marcada por muita energia, velocidade e peso. Ele se segura dos dois lados, para quem não curte suas dancinhas e outras graças, pode ficar seguro que vai ouvir boas faixas e quem não gosta muito de som pesado se diverte com a performance.

É verdade que ele faz umas misturas que nem sempre funcionam, mas acaba cativando a maioria com essa interação. Mandou até uma Magalenha do Sergio Mendes que valeu pela lenha, seria legal se descobrirmos que foi  intencional. Fomos à outra pista conferir o live de Ben Böhmer fazendo a cabeça da turma que prefere um som bem mais cadenciado e emotivo, com muito trance melódico e som de submarino subindo e descendo. Voltamos correndo para o galpão dos technoheads.

Para terminar e quase botar tudo abaixo, a polonesa VTSS distribuiu verdadeiras bordoadas na orelha, em uma mistura bem heterogênea, desde o nosso pancadão, passando pelo dubstep, hardcore até o schranz e hardtechno. Em alguns momentos a sensação era de estarmos vivendo uma verdadeira hecatombe sonora com o uso maciço do subgrave poderosíssimo. Ela experimenta bastante no set e embora possa não funcionar tão bem o tempo todo, o resultado final foi bastante positivo. Na pista aberta, o sol e os Martinez Brothers cozinhavam os miolos da garotada que gosta de uma house mais puxada para o trance e progressive.

VOLTANDO SEM QUEIMAR A LARGADA

No sábado, tivemos algumas mudanças em relação à noite anterior, a começar por uma pequena fila para entrar no local devido a uma revista pente fino que era feita em cada um que chegava. Outra diferença perceptível foi a do tipo de público, com um povo de faixa etária um pouco mais velha e bastante diversificado e em número bem maior do que na sexta-feira. Se no primeiro dia quase não havia veteranos ou techneros classe média, no sábado encontramos uma galera com esse perfil. Os palcos ficaram abarrotados, porém ainda confortáveis, e o povão dançando a valer aumentou a temperatura do lugar.

O sprint de largada foi dado com nosso Tessuto e na outra pista nosso maestro, L_cio, nos brindava com seu já aclamado live que fez a alegria de quem conseguiu chegar cedo à festa. Em seguida, na tenda da technera, tivemos o primeiro dos três back-to-backs da noite, com Eli Iwasa e Due, passando o bastão para KENYA20Hz e RHR que detonaram com um dos sets mais fora do padrão reinante do techno atual, de trance/hardcore/acid, muito usado por aqui. Se esbaldaram com galões de electro, dubstep, grime e batidas arrebentadas, explorando ao máximo as ótimas oportunidades que a aparelhagem de som permitia. O grave batia no peito martelando o plexo solar, impulsionando as pernas e fazendo voar o cabelo.

O fervo a mil na pista externa. Time Warp Brasil 2023. Foto: Alisson Demetrio

MULHERES NA POLE-POSITION

Enfim chegamos ao back-to-back mais aguardado da noite, com ANNA e Sama’ Abdulhadi entrando de sola de botina de pneu no techno gordão, pesado, mas com groove, fazendo o povo esquentar ainda mais o piso da nossa principal pista de corrida. Mostraram ótimo entrosamento, alternando com equilíbrio diferentes humores para construir um set diverso, que evoluiu com coerência até finalizar com maestria, sendo justamente ovacionadas com entusiasmo.

Para emendar um set tão poderoso tivemos uma das sensações do techno da atualidade, Amelie Lens que tocou muito acid, pitadas de trance e house repleto de momentos atmosféricos e bastante hipnóticos. Pode-se contestar o excesso de exposição e valorização de seu trabalho, porém é impossível negar que há muito talento, competência e carisma na equação. Outra que foi muito feliz em desenhar um ótimo trajeto bem ao gosto dos corredores presentes.

BANDEIRADA

Na pista externa, o duo Adriatique conduziria as últimas horas do percurso em uma jornada soporífera, em longos grooves macios para a bandeirada final. Para bater o último prego no caixão dos technobangers, tivemos o espanhol Hector Oaks tocando com vinil uma seleção particularmente pesada e cerebral. Se Oak é carvalho, pode-se dizer que tivemos lenha de carvalho para botar fogo no que restava de combustível aos participantes da maratona.

Saldo final positivo, com o pódio formado com “ascaxa” na primeira posição, seguido por “mulheres detonam e tomam conta da corrida” em segundo e “nossas pernas heróicas” em terceiro lugar. Finalizada a empreitada, só sentimos falta de um guincho para nos conduzir para fora do local.

Pista interna ultra equipada. Time Warp Brasil 2023. Foto: Alisson Demetrio

Laerte Castagna

Cresceu ouvindo o rock dos anos setenta e acompanhou in loco as explosões do punk, do pós punk e da música eletrônica. Vagou e se jogou pelas pistas esfumaçadas de clubes e after-hours em subterrâneos e telhados paulistanos. Bagunceiro amador, apaixonado por música ao vivo, discos e fitas, assuntos sobre os quais escreve. Dedica-se à confecção de playlists reais e ultra reais para festeiros em repouso ou expansão de consciência.

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