Alok Foto: Reprodução/Instagram

Alok, Buda e o poder do storytelling

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Os elementos que fazem do astro brasileiro o ídolo perfeito para o mercado

Storytelling significa, em tradução livre, narrativa. No meio publicitário, no entanto, trata-se da estratégia de embedar uma marca em uma linda e emocionante história prévia. Uma marca industrial de massa de macarrão, por exemplo, se torna a receita especial do Nono Giuseppe, que imigrou para o Brasil no começo do século passado, só com a roupa do corpo. Giuseppe fazia a alegria da família com suas massas caseiras nos almoços de domingo, sempre elogiadas por todos os que a experimentavam. O simpático cozinheiro descobriu que tinha uma missão: a de proporcionar suas deliciosas receitas para o maior número de pessoas possível, levando sabor e amor ao convívio dos lares. Nascia assim a Indústria Alimentícia Nono Giuseppe.

Não se trata de mentir — embora algumas empresas já tenham sido obrigadas a retirar de suas embalagens histórias enganosas —, mas de ajudar o consumidor a criar carinho pela jornada. A amar o Nono como um membro da família, e não como um dono de empresa.

O storytelling apresentado por Alok e sua equipe durante a entrevista coletiva marcada para o lançamento de seu novo álbum, O Futuro É Ancestral, é impecável. Em 2014/2015, segundo suas palavras, ele andava meio “depressivo” e acabou conhecendo, por acidente no YouTube, o canto da aldeia yawanawá, localizada no Acre, praticamente na divisa com o Perú. Precisou pegar três voos, mais 13 horas de carro e mais nove horas de canoa para chegar lá.

Convivendo com os yawanawá, o DJ e produtor brasileiro mais ouvido no mundo modificou sua visão sobre a própria arte. “Para mim, a música era pra funcionar no Top 10. Para eles, música é cura.”

Alok retornou da viagem com um novo amigo, o cantor local Rasu Yawanawá. Dois meses depois, já estavam gravando em parceria as primeiras ideias de O Futuro É Ancestralum projeto que demandou mais de 500 horas de gravação com artistas de várias etnias no belo estúdio Sonastério, em uma montanha nas cercanias de Belo Horizonte.

Percebeu, então, que sua missão era usar a fama para ajudar as pessoas, e anos depois, criou o Instituto Alok. O DJ que aparece sob fogos pirotécnicos e outras estripulias visuais é apenas um captador de atenção e recursos, que seriam utilizados para manter a “empresa Alok”, como se refere, em pé, e direcionar recursos para projetos sociais.

Este é o storytelling da marca Alok.

Enquanto isso, sua carreira seguia voando alto, com shows de estrutura milionária em festivais no mundo todo. Mas ele e sua equipe queriam mais. Cortou o cabelo, cujo topete parece ter sido esculpido em algum salão de Miami, alinhou a barba e entrou de vez no circuito de festas agropecuárias e rodeios do interior do país, conhecidos pelos vultosos orçamentos, capazes de fazer o cenário de música sertaneja ser o campeão em superlotação de cofres.

Para o astro, pelo menos na visão atual da própria carreira, tudo é feito pensando em seu trabalho com o Instituto Alok. Criada em 2020, a organização já distribuiu mais de 15 milhões de reais para instituições e pessoas físicas brasileiras, indianas e africanas, e mantém projetos em áreas que vão do combate à violência contra a mulher à defesa das comunidades indígena e negra.

Utilizar-se de qualquer mercado do cenário de entretenimento, portanto, nada mais é do que trazer mais dinheiro para os projetos sociais. A justificativa vale, também, para a falta de posicionamento político do artista — algo cobrado tanto por fãs, quanto por haters. Entrar na polarização, segundo o pensamento estratégico da “empresa Alok”, seria fechar portas que poderiam trazer mais grana. A sua posição estaria em sua atitude social, nas entrelinhas, para qualquer bom observador. Conforme seu julgamento, ele está usando “o sistema contra o sistema”.

O pacote de argumentos se torna válido para lustrar qualquer uma das jogadas de marketing de Alok. Algumas extremas, como o caso da própria cerimônia de casamento com a médica Romana Novais, em 2019. Realizada aos pés do Cristo Redentor e com gravação negociada com a Rede Globo, a celebração de uma união pelo amor foi formatada com a mesma espetacularização com que são feitos seus shows.

Nada dá a Alok a pecha de mau menino. Pelo contrário. O fato mais polêmico de sua carreira é um mero bate boca com Rick Bonadio, produtor dos Mamonas Assassinas, que considerou seu controverso remix para Pelados em Santos “um desrespeito”. O rapaz é família, tem a benção dos pais — profissionais também de reputação ilibada no cenário musical brasileiro —, não se mete em roubadas e nem fala besteiras. Seria injusto suscitar qualquer segunda intenção, ou maquiagem de sua imagem, na história tão bem contada em seus projetos até agora.

Mas aos que leem poesia, aos que passeiam pelas quebradas e aos ávidos pela biografia dos grandes gênios, a indecifrável complexidade da existência humana desperta um gigantesco ceticismo. Será possível? Seria Alok um dos poucos seres humanos blindados do ato irresistível de fazer merda? Confrontar, de peito aberto, as “limitações que nos fazem a maravilhosa catástrofe que nós muito provavelmente somos”, como disse Nick Cave?

Talvez eu esteja preso a um mundo que não existe mais. Talvez os artistas não sejam mais os carentes desesperados que fizemos de ídolo. Talvez os jovens tenham mesmo mudado.

O bom mocismo é um diamante raro para as corporações. Agências de publicidade babam só com a perspectiva de conseguir, para seus clientes, a possibilidade de aliar uma marca a uma pessoa educada, de beleza padronizada, familiar, com reconhecimento mundial e ainda preocupada com causas ambientais e sociais. Aquelas empresas que mudam seus logotipos para as cores LGBTQIAP+ no Dia do Orgulho Gay, ou que soltam campanhas no Dia da Mulher, mas seguem mantendo, em seus quadros de funcionários e folhas de pagamento, padrões discriminatórios. Na última edição do festival Lollapalooza, a mineradora responsável por um dos maiores desastres ecológicos da história do país estava distribuindo copos reutilizáveis para “preservar o meio ambiente”. Limpar a barra se associando a uma celebridade que faz “tudo certo” é muito lucrativo. E para tê-los, pagam fortunas.

Só que o brasileiro, talvez de forma inédita no mundo, levou o conceito muuuito além. Bom moço e simpatizante a causas ambientais, até o Sting é. O trabalho de imagem em torno de Alok é de alguém espiritualmente iluminado, resolvido, ungido. No YouTube, circula um vídeo de cinco anos atrás entitulado O dia em que descobri a existência de Deus. O DJ conta que, durante uma visita a comunidades pobres na África com um de seus projetos sociais, encontrou uma mulher que apertava o cinto no estômago para sentir menos fome. Até então, ele duvidava da existência de Deus, mas a mulher disse que era a fé que a mantinha viva. Tudo devidamente registrado pela equipe de filmagem que o acompanhava.

Importante lembrar aqui: a descoberta do sagrado através de uma jornada para conhecer o sofrimento dos seres humanos é a história de Siddharta Gautama, príncipe que renunciou ao trono para peregrinar pelo mundo. A maioria das pessoas o conhece como Buda. Um dos grandes mentores de Alok é Devam Bhaskar, diretor de seu Instituto e discípulo do guru popstar indiano Osho desde 1982, quando deixou de se chamar Geraldinho Vieira para ser rebatizado pelo mestre espiritual.

Durante a coletiva de lançamento de O Futuro É Ancestral, um integrante da tribo kaingang disse que via em Alok “um espirito muito antigo habitando o corpo de um jovem”. Não me lembro, em 30 anos de perambulação em ambientes musicais (vários deles bastantes distantes da iluminação, admito), de um artista com tamanha carga moral.

Duas coisas, neste storytelling todo, são certas: a primeira é que os milhões injetados pelo artista em causas sociais estão, sim, fazendo a diferença. Seu objetivo de amplificar a voz do povo ancestral no mundo todo vai funcionar. O otimismo era claro em todos os representantes de diversas etnias que estavam no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.

A segunda é que, a cada novo projeto como este, a pressão em cima do que (penso) ser um ser humano comum aumenta exponencialmente. Milhares de pessoas dependem de que Alok siga sempre fazendo a coisa certa e dizendo a coisa certa enquanto se esquiva das muitas armadilhas da vida. A esta jornada, desejo sinceramente êxito. É preciso mesmo um espírito ancestral em um corpo de jovem para seguir esta bronca.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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