História da música eletrônica alemã Kraftwerk. Foto: Reprodução

Do século XIX aos dias atuais: a história da música eletrônica na Alemanha

Alain Patrick
Por Alain Patrick

Especialista no tema, Alain Patrick traz uma leitura densa com os principais destaques da cena eletrônica alemã ao longo de séculos

Nota da edição: Criado na Alemanha, o festival Time Warp está prestes a celebrar seu quarto rolê no Brasil. Você já leu sobre essa história aqui, e hoje, em parceria com a produção do evento, trazemos uma complementar. Com muita profundidade e conhecimento de causa, o compositor, dono de gravadora e escritor Alain Patrick empresta seu conhecimento ao Music Non Stop para contar, em detalhes, a história da música eletrônica na Alemanha — desde o século XIX até os dias de hoje. Prepare um café bem quente, aperte o play na playlist abaixo e boa leitura!

Dos primórdios ao estúdio WDR (1863-1960)

História da música eletrônica alemã

WDR Studio für Elektronische Musik, Colônia, Alemanha (1966). Foto: Reprodução

Estabelecer em qual exato momento nasceu a música eletrônica na história é uma missão bem difícil. Sabe-se que o gênero musical em questão é no mínimo centenário, como você pode conferir em diversas fontes. A primeira questão que se coloca é: o que significa o termo música eletrônica? Considerando que, durante o passar dos séculos, fomos de certa forma limitados pelos sons da natureza (de seres vivos, fenômenos naturais, ou de instrumentos criados pelo homem), a partir de um determinado período, provavelmente no século XIX, algumas mentes visionárias começaram a pensar em uma expansão da paleta sonora de timbres conhecidos, ou seja, que seríamos capazes de chegar, a partir dos avanços tecnológicos proporcionados pela Revolução Industrial, a um estágio em que novos equipamentos nos permitiriam obter sons jamais ouvidos antes. Sons sintéticos.

Tudo começou com os grandes teóricos da ciência, alguns dos quais músicos, estetas e compositores. Afinal, não existe música eletrônica sem tecnologia. Embora a música eletrônica seja uma manifestação artística como diversas outras, há esse componente tecnológico sine qua non em sua essência. Dito isso, foram necessárias décadas de estudos e experimentos científicos para que se chegasse em criações de equipamentos capazes de se elevar a expansão do discurso sonoro a um outro patamar. Então, antes de tudo, música eletrônica se refere a uma forma de arte sonora com sons sinteticamente criados, que não existiam previamente na natureza, podendo eles imitar os timbres e melodias tradicionais ou não.

Retornemos ao século XIX na Alemanha, mais precisamente em 1863. Um cientista, fisiologista e especialista em oftalmologia chamado Hermann von Helmholtz publica um livro chamado Sobre as Sensações do Tom Como Base Fisiológica para a Teoria da Música, que revolucionou a forma como se pensava música e som até então. O seu livro abordou, de forma inédita, uma análise perceptual do som, inaugurando um campo de estudo que se tornaria riquíssimo com o passar das décadas, denominado psicoacústicaMas não parou aí.

História da música eletrônica alemã

Hermann von Helmholtz. Foto: Reprodução

Suas teorias muito bem fundamentadas sobre ressonâncias sonoras se tornaram o ponto de partida da busca pelo desenvolvimento de equipamentos capazes de analisar frequências sonoras e até criá-las. Foi uma questão de tempo para que ele próprio criasse, em 1905, o Helmholtz Sound Synthesizerum equipamento eletrônico capaz de demonstrar que ondas sonoras complexas eram na verdade uma somatória de frequências fundamentais, harmônicas e enarmônicas, prova de que a teoria do cientista Jean Baptiste Fourier, responsável pela Transformada de Fourier, estava certa — qualquer som natural pode portanto ser dividido em uma somatória de senóides de diferentes amplitudes, frequências e tempos de duração.

Mas o que isso tem a ver com a descoberta da música eletrônica? Tudo! Foi a partir do Helmholtz Sound Synthesizer, composto de ressonadores (diapasões eletromagneticamente estimulados), filtros e obturadores mecânicos, que se pôde manipular os sons e chegar a timbres modificados, jamais ouvidos antes. Contudo, a partir daquele momento, seriam necessárias décadas para que os estúdios, universidades e institutos passassem a experimentar sons sintéticos com osciladores, moduladores, filtros e gravadores de fitas magnéticas.

O primeiro inventor de equipamentos eletrônicos para usos exclusivamente musicais foi Jörg Mager, que entre 1921 e 1939, projetou o Electrophon (1921), o Sphäraphon (1924), o Kürbelsphärophon (1926), o Klaviatursphäraphon (1928), o Partiturophon (1930), e o Kaleidophon (1939), sendo considerado por parte dos pensadores (incluindo ele próprio) o “Pai da Música Eletrônica Alemã”. Lembrem-se: não existe música eletrônica sem tecnologia, portanto sem equipamentos eletrônicos capazes de sintetizar sons. O Sphäraphon, que era um avanço do Eletrophon, tinha a capacidade de alterar o timbre de sons produzidos, e um dos seus protótipos tinha teclado e usava um oscilador de radiofrequência. Este instrumento, no caso, tinha a capacidade de produzir sons com até quartos de tom de diferença. Em várias das suas criações instrumentais, Mager conduziu experiências com alto-falantes para obter sonoridades diferentes.

História da música eletrônica alemã

Jörg Mager com o Sphäraphon no Festival de Verão da Floresta Negra, em Donaueschingen, 1926. Foto: Reprodução

História da música eletrônica alemã

Versão do Trautonium do inicio dos anos 1930 (Deutsches Museum, Berlim). Foto: Reprodução

Em 1930, o engenheiro elétrico Friedrich Trautwein desenvolveu o Trautonium, outro revolucionário instrumento musical eletrônico que está nos primórdios da música eletrônica e que foi utilizado por alguns dos primeiros estúdios e pioneiros compositores nos anos seguintes. Harald Bode também foi um grande desenvolvedor de equipamentos eletrônicos musicais. Criou em 1937 o Warbo Formant Organ, um instrumento com teclado, quatro vozes, dois filtros e um controlador de envelope dinâmico, considerado um proto-sintetizador polifônico que chegou a ser comercializado na Alemanha no final dos anos 30. Bode também criou o Melochord em 1947, amplamente usado por Werner Meyer-Eppler no estúdio WDR de Colônia a partir de 1951.

Por falar no visionário Meyer-Eppler, em 1949 ele lança o livro Geração Eletrônica de Som: Música Eletrônica e Linguagem Sintética, que se tornaria a base em termos de estética e tecnologia do primeiro estúdio de música eletrônica da Alemanha, o WDR Stüdio für Elektronische Musik de Colônia, fundado em 1951 por ele, Robert Beyer e Herbert Eimert. O WDR Stüdio representou uma séria contraposição à musique concrète do Pierre Schaeffer e do GRMC (Groupe de Recherches de Musique Concrète), uma vez que priorizou gravações musicais com aparelhos eletrônicos, e não com microfones, como aconteceu na música concreta da França.

Isso porque, ao invés de buscar dados sonoros concretos gravados do mundo, a música eletrônica se voltou para a criação sonora a partir das suas propriedades físicas, da abstração e da racionalidade. Foi ali que as obras primas pioneiras da música eletrônica alemã foram compostas e produzidas. Muito embora Meyer-Eppler já tivesse produzido The Voice Of Power (1950), primeira gravação a usar um vocoder na história, Herbert Eimert compõe, no próprio WDR, Klangstudie I e II, ambos de 1952. Karlheinz Stockhausen, que já havia produzido Konkrete Etüde (1952), obra-prima inicial da música eletroacústica e de tape, vai para Colônia em 1953 e integra a equipe de compositores do WDR, e compõe Studie I (1953) e Studie II (1954), composições fundamentais da música eletrônica. Estas duas obras de Stockhausen foram particularmente revolucionárias porque foram criadas não com o uso de instrumentos (eletrônicos), como o Trautonium ou o Melochord, mas com geradores de tons senoidais.

História da música eletrônica alemã

Harald Bode e seu sintetizador modular, Karlsruhe, Alemanha. Foto: Reprodução

Outro grande herói deste período do timaço da WDR foi Gottfried-Michael Koenig, que compôs as obras eletrônicas Klangfiguren (1955), Essay (1957) e Terminus 1 (1962), além de ter colaborado com Stockhausen nas seminais Gesang der Jünglinge (1956) e Kontakte (1960), e com Ligeti em Artikulation (1958). Stockhausen foi, alem de compositor e produtor, um grande teórico da música eletrônica, ao elaborar a teoria Como o Tempo Passa… para o jornal Die Reihe, na qual a música eletrônica comporta quatro princípios: 1. Estruturação Unificada do Tempo; 2. Decomposição do Som; 3. Composição Espacial de Múltiplas Camadas; e 4. Igualdade de Tom e Ruído. Repare como são temas de discussão atuais. Uma boa parte dos produtores e compositores se depara com desafios que passam por esses fundamentos, ainda hoje. Se você quiser saber mais a respeito, procure pelo livro Sobre a Música, que traz palestras e entrevistas do próprio Stockhausen.

Eu sei que você deve estar se perguntando por que citamos aqui tantos detalhes sobre estes primórdios da música eletrônica. Por um motivo muito simples: estes são os maiores heróis, os que enfrentaram os mais árduos desafios, as maiores dificuldades estéticas e tecnológicas, sem os quais a história da música eletrônica não seria a mesma, especialmente na Alemanha. Não há a pretenção de trazer todos os personagens e composições desta fase ou de qualquer outro período da música eletrônica alemã, porque seria absolutamente impossível, dada a miríade de experimentos e criações sonoras. Porém, é fundamental citar a espinha dorsal e seus capítulos essenciais, por uma questão de honestidade intelectual.

A música cósmica da Berlin-School/krautrock (1967-1977)

Kraftwerk em encarte do disco Computer World

Kraftwerk em encarte do disco “Computer World”, 1981. Foto: Reprodução

Nos anos 1960, a Alemanha viveu um período de grande crescimento econômico, assim como o restante da Europa ocidental. A música popular alemã, conhecida por Schlager, era a mais previsível e enfadonha possível. O futuro parecia promissor, muito embora a nova geração contestadora se recusava a seguir a tradicional rigidez comportamental germânica dos seus pais e avôs. Historicamente no país se faz a distinção entre música séria e a de entretenimento. Quem me contou isso foi Manuel Göttsching (Ash Ra Tempel), quando o entrevistei para o meu livro Electronic Standards. Resumidamente, enquanto a música séria desafia o intelecto, a música de entretenimento satisfaz o corpo. Particularmente, acho totalmente possível que uma obra satisfaça aos dois conceitos, e citarei aqui alguns casos para provar o meu ponto.

Em meados de 1967, em Munique, um grupo radical de arte chamado Amon Düül abarcou como um furacão a juventude politizada da época. Sua comunidade atraiu diversos intelectuais de esquerda e artistas de vanguarda. Vale lembrar que 1968 foi um ano muito importante, marcado por protestos nos grandes centros urbanos do mundo ocidental, especialmente na Europa Ocidental e nos EUA; estes protestos lutavam por direitos civis, direitos humanos, pelo bem-estar social, contra a polícia, contra a política conservadora, e em favor de mais liberdades pessoais. Na Alemanha não foi diferente, especialmente em Munique, e uma maneira que os artistas radicais encontraram de protestar foi através da arte. Assim, poderiam conquistar o seu público e influenciá-los na sua maneira de pensar, e nos seus desejos. Em pouco tempo, outros grupos e artistas, como Can, Popol Vuh, Cluster, Tangerine Dream, Organisation, Ash Ra Tempel e Klaus Schulze, despontaram: era o nascimento de uma nova cena de vanguarda.

Junto com a música, o cinema alemão revolucionário também emergiu: Wim Wenders, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog dirigiram obras-primas, e algumas delas, com trilhas sonoras desses novos grupos alemães. Em 1972, Herzog filmou Aguirre – Der Zorn Gottes, cuja trilha ficou a cargo de Popol Vuh, com Florian Fricke nos teclados; o mesmo grupo fez a trilha Brüder Des Schattens – Söhne Des Lichts, para o filme Nosferatu, também de Herzog. Porém, apesar da forte identidade desse novo gênero musical, o discurso sonoro foi totalmente inédito e inovador, como aconteceu no período das obras experimentais da WDR.

História da música eletrônica na Alemanha

Manuel Gottsching. Foto: Reprodução

O guitarrista, cantor e compositor do Amon Düül, John Weinzierl, declarou certa vez à BBC: “Queríamos ser internacionais, mas não que a nossa música soasse anglófona ou germânica. A solução, então, foi o espaço”. Enquanto Amon Düül e Can trilharam uma discografia fabulosa de rock espacial, Tangerine Dream, Klaus Schulze e Manuel Göttsching enveredaram para composições predominantemente eletrônicas, sendo considerados representantes da Berlin School, trazendo sintetizadores modulares em um primeiro período, e sintetizadores menores e caseiros a partir de meados dos anos 70. Por falar em sintetizadores modulares, foi o engenheiro Harald Bode, que citamos anteriormente, o seu inventor, alguns anos antes da Moog, em 1960. Suas ideias foram adotadas tanto por Bob Moog quanto por Don Buchla nos anos subsequentes.

O álbum Zeit (1972), do Tangerine Dream, protagonizou Edgar Froese, Chris Francke e Peter Baumann com sintetizadores como o EMS VCS3. Um dos maiores personagens desta época, Rudolf-Ullrich Kaiser, dono das gravadoras Ohr, Pilz, Die Kosmischen Kuriere (os mensageiros cósmicos) e Kosmische Musik (música cósmica), supervisionou e lançou muitos dos LPs iniciais desses grupos alemães. Parte da crítica chamou o movimento de música cósmica alemã; outros, de rock cósmico, entre outros nomes.

Contudo, foi o LP vermelho de Konrad Schnitzler, de 1973, que inaugurou o termo mais famoso pelo qual este movimento musical foi conhecido: a faixa do lado B, Krautrock. Essa preciosidade era uma clara demonstração do futurismo musical eletrônico germânico; sintética, hipnótica, com uma cuja linguagem sonora que dava a impressão de ter sido gerada por máquinas. Em 1974, Tangerine Dream lança o seu álbum mais importante, Phaedra, em que modulares da Moog foram usados e sequenciados, criando uma atmosfera de grande profundidade e hipnose, com arpejos fascinantes.

História da música eletrônica alemã

Tangerine Dream. Foto: Reprodução

O processo de afinação dos timbres destes modulares Moog e de gravação de Phaedra foi particularmente árduo, com problemas no gravador, na mesa de mixagem e variações de timbres por conta do aquecimento excessivo dos modulares, o que surpreendentemente acabou trazendo uma ambiência atípica e deslumbrante para a faixa-título. Phaedra foi um capítulo essencial na era Krautrock, e é considerado por Jean-Michel Jarre um dos 50 maiores álbuns de música eletrônica de todos os tempos.

Nesse mesmo universo, nasceu o Kraftwerk. Em 1968, a dupla Half Hütter e Florian Schneider formou a banda Organisation, pela qual lançaram um LP, Tone Float, em 1970. O conjunto sonoro incluiu bateria, percussão, baixo, flauta, violino e órgão. Naquele mesmo ano, Hütter e Schneider saíram e formaram o Kraftwerk, com apresentações em diversos eventos, às quais chegaram a fazer parte Klaus Dinger e Michael Rother. Em 1971, Dinger e Rother os deixaram para formar o incrível Neu!.

A primeira gig entre Hütter e Schneider aconteceu em novembro de 1971, em Hamburgo. Eles lançaram seus dois primeiros álbuns, Kraftwerk (1970) e Kraftwerk 2 (1972), ainda bastante experimentais. O primeiro tem obras com instrumentos e um instrumento com teclado eletrônico chamado Tubon, usado por Hütter. A segunda e a terceira músicas, Stratovarius e Megaherz, têm claras influências da música eletroacústica e da concreta. O segundo LP incluiu o uso de uma bateria eletrônica Rhythmusmaschine e de outros synths, além de instrumentos tradicionais, como flauta, violino e guitarra. O engenheiro responsável por mixar esses dois LPs — assim como o terceiro, Ralf & Florian (1973) — foi Connie Plank, certamente o mais célebre engenheiro de áudio alemão do período.

Foi a partir de Ralf & Florian que o quarteto passou a usar teclados sintetizadores, como o Minimoog, considerado o primeiro teclado sintetizador analógico vendido nas lojas, inaugurado em 1970 por Bob Moog. Mas foi em 1973, com o LP Autobahn, que o Kraftwerk chamou a atenção do público e da crítica a um nível mundial. Já totalmente eletrônico, o LP definiria a estética do quarteto teutônico a partir dali. Radio-Aktivität(1975), que trouxe temas relativos à Guerra Fria e à ameaça nuclear, também causou um grande impacto. O coral de vozes sintetizado da faixa Uranium seria sampleado anos mais tarde por New Order em Blue Monday (1983).

Em 1977, o LP Trans Europe Express fez um estrondoso sucesso, especialmente com a faixa-título. A partir daquele momento, o Kraftwerk conquistou o status de grupo de música eletrônica mais importante do planeta. Die-Mensch Maschine (1978) ratificou o prestígio, andando cada vez mais para uma perspectiva dançante. Então, em 1981, veio Computerwelt, divisor de águas que mudaria para sempre a cultura clubber eletrônica ao emplacar o electro no mundo — muito embora suas raízes já estivessem presentes desde o disco de 77.

Numbers se tornou um hino dos amantes de electro e breakdance, especialmente nas cenas de Nova Iorque nos EUA e na Inglaterra, dando origem a uma revolução que traria à tona uma miríade de obras musicais. A influência internacional que o Kraftwerk exerceu foi tamanha que Planet Rock, de Afrika Bambaataa & The Soul Sonic Force, considerada marco zero da cena de electro e hip-hop eletrônico de Nova Iorque, tem a melodia de Trans-Europe Express (tocada, não sampleada). Numbers, Computerwelt e It’s More Fun To Compute se tornaram hinos indefectíveis das batalhas de break, assim como dos sets dos DJs em clubes, até hoje.

A cultura clubber alemã antes da queda do muro (1981-1989)

A partir do final dos anos 1970, a Alemanha Ocidental passa a sofrer influência de movimentos musicais de outros países: o industrial de Throbbing Gristle (Inglaterra), o EBM do Front 242 (Bélgica), o punk britânico e norte-americano, o synth-pop, também inglês, e por aí vai, resultando em um potpourri musical mais heterogêneo. Um capítulo importantíssimo na abertura da década é o álbum homônimo do Liaisons Dangereuses, trio formado por Chrislo Haas, Beate Bartel e o vocalista Krishna Goineau. Esse disco de 1981 foi uma verdadeira revolução em matéria de ousadia e criatividade musical ao trazer um blend de industrial futurista com punk eletrônico.

A singularidade artística do grupo foi reconhecida internacionalmente, tanto das obras para pistas de dança (Los Ninos del Parque, Être Assis ou Danser, Peut-Être… Pas), quanto às sonoramente etéreas e poéticas (Liaisons Dangereuses, Mystère Dans Le Brouillard, Dupont), fazendo daquele um LP muito à frente do seu tempo. O tsunami Los Niños del Parque reverberou nos quatro cantos do planeta e se tornou um marco atemporal da cultura clubber underground. Enquanto isso, grupos do punk alemão e de Neue Welle (a new wave alemã) proliferavam.

Só que do lado oriental da Alemanha (leia-se Berlim, principalmente), havia uma cena musical efervescente, da qual sabe-se muito menos do que se gostaria, em grande parte por causa da severa censura do governo da Alemanha Oriental (procure por Speed e IC Falkenberg na trilha sugerida no começo deste artigo). Nina Hagen, personagem icônica da música alemã do final dos 70 aos anos 80, nasceu em Berlim Oriental. Após a revogação dos direitos de cidadania de seu padrasto, Wolf Biermann, ela foi autorizada a migrar para o Ocidente, onde logo se destacou na cena punk de Berlim Ocidental com a Nina Hagen Band.

História da música eletrônica alemã

Beate Bartel. Foto: Reprodução

Seu estilo de cantar intenso, dinâmico e com espetacular capacidade interpretativa a tornou um símbolo da música alemã, não só do punk teutônico, onde ela é considerada a grande mãe, mas de obras de Neue Welle, principalmente a partir dos seus álbums solo. O seu LP Nunsexmonkrock (1982) já contava com Karl Rucker e Paul Shaffer nos sintetizadores; UFO, uma das obras mais intrigantes desse disco, tem uma base minimalista e sintética, e a interpretação magistral de Nina. Apenas um ano após, a artista gravou o hino de clubes New York New York, produzido por Giorgio Moroder e Keith Forsey, com sintetizadores e bateria eletrônica, totalmente influenciada pela cena clubber dançante da Europa ocidental e dos Estados Unidos.

Da mesma terra do Kraftwerk, Düsseldorf, surgiu em 1978 outro grupo, fortemente influenciado pelo industrial inglês e pelo EBM belga: o D.A.F. (Deutsch Amerikanische Freundschaft), da dupla Gabi Delgado e Robert Görl, mas que lançou boa parte das suas obras memoráveis nos anos 80 (como Der Mussolini, em 1981, e Brothers, em 1985).

Paralelamente, em 1982, um jovem visionário chamado Dimitri Hegemann fundou um evento chamado Berlin Atonal, um festival que aconteceu em lugares itinerantes em Berlim, entre 1982 e 1990, destinado à cena musical experimental emergente, além de outras áreas da arte de vanguarda. Foi o Berlin Atonal que sedimentou a reputação da cidade como referência da alta cultura musical experimental. O mesmo Dimitri Hegemann fundaria o clube UFO no final dos anos 80, voltado para a esfuziante cena de acid house — um prenúncio do que seria a sua criação seguinte, da qual falaremos na próxima parte.

Nina Hagen. Foto: Reprodução

Entre os artistas invariavelmente associados a essa música mais conceitual alemã está Manuel Göttsching, que esteve à frente do Ash Ra Tempel na era Berlin School – Krautrock e que, em 1981, já em carreira solo, compôs em apenas um take E2-E4, uma obra antológica de 51 minutos em que as hipnóticas e inconfundíveis linhas de sintetizador se tornaram sucesso mundial. Lançada somente em 1984, ela virou um enorme hit de clubes dos EUA, como Paradise Garage, de Larry Levan, Studio 54 e inúmeros outros. Apreciada por DJs e entusiastas em nível internacional (inclusive em Detroit e Chicago), ela foi sampleada por incontáveis artistas, a exemplo do projeto Sueño Latino na era Balearic.

Em Hamburgo, a banda de Neue Welle Palais Schaumburg gravou três álbuns entre 1981 e 1984, com Thomas Fehlmann nos teclados sintetizadores e Moritz von Oswald (que participou no terceiro LP) na bateria. Os dois se tornariam personagens essenciais da cena de techno que se formaria em Berlim a partir do início dos anos 90. Enquanto isso, no início dos 80, em Frankfurt, o jovem Andreas Tomalla (Talla 2XLC), que trabalhava na loja de discos City Music, criou o termo “techno” para se referir à música tecnologicamente produzida — basicamente, para produções de música eletrônica dançante: Front 242, Depeche Mode, Heaven 17, New Order, etc. Tempos após, em 1984, fundou o evento Techno Club, exclusivamente de música eletrônica, um feito inédito para a época.

Vale lembrar que era muito comum os repertórios dos clubes na Europa terem pós-punk, rock e synth-pop na mesma noite. A Techno Club, que começou como domingueira, passou a acontecer nas demais noites, e em 1987, foi para o club do aeroporto Dorian Gray, tornando-se a noite mais famosa de música eletrônica na Alemanha. Seu alcance de público ultrapassou rapidamente as fronteiras da cidade. Os visitantes vinham de todos todos os lugares do país e da Europa (inclusive Carlos Peron e o pessoal do Kraftwerk, entre outros, costumavam dar as caras por ali). A agenda de shows da Techno Club incluiu Nitzer Ebb, entre outras bandas famosas, e o magazine Front Page publicou uma matéria considerando a noite a voz essencial do movimento techno-house.

Sven Väth, que integrou o grupo Off, de Electrica Salsa, foi igualmente protagonista dessa cena, e já era um grande DJ no final da década de 80, com apresentações no HR XXL Clubnight, assim como Torsten Fenslau, que assinou uma série de projetos com diferentes nomes, incluindo Out Of The Ordinary (do hit Play It Again, muito tocado em SP, inclusive), Abfahrt (Alone – It’s Me), Real World (Stop The Violence), Force Legato (System, ao lado de Oliver Lieb, que depois enveredou brilhantemente para o trance), e por final, Culture Beat, em que ele sedimentou a ponte definitiva entre a cena clubber alemã e o mainstream das rádios.

Com a residência na Techno Club, Talla 2XLC decidiu criar uma label, Techno Drome International, que se tornou a grande plataforma sonora do que tocava naquela cena, a partir de 1987, para os artistas locais (Robotiko Rejekto, The Invincible Spirit, Tribantura, Bigod 20, Pankow, boa parte produzida por ele). Chegamos ao momento em que o muro de Berlim cai, em 1989, e que a Alemanha está prestes a ser reunificada, em 1990.

A cultura clubber da Alemanha reunificada (de 1990 ao terceiro milênio)

Love Parade. Foto: Daniel Biskup/Reprodução

Em 1989, com o final da Guerra Fria, havia um grande otimismo no ar, especialmente na Alemanha. Além da situação econômica favorável do lado ocidental, o país recebia investimentos internacionais em virtude da queda do muro de Berlim e da reunificação de 1990. Como já dissemos antes, os fatores econômico e tecnológico são sempre preponderantes nos movimentos de música eletrônica. Com a popularização dos samplers e computadores pessoais (a partir do meio dos anos 80) e o barateamento dos sintetizadores e baterias eletrônicas, houve uma explosão de jovens produtores musicais, representando uma primeira onda de democratização dos meios de produção musical. A segunda aconteceria no início do terceiro milênio, com o triunfo da tecnologia digital.

Um dos principais fatores culturais e comportamentais identitários dos jovens daquela geração era o uso dos walkmans, que tornaram possível o ato de ouvir a música da sua preferência em qualquer lugar. Era praticamente uma forma de se libertar do mundo real. Todo mundo que está entre 45 e 55 anos sabe o que significou. Este fator também causou uma revolução na industria musical, e as vendas de álbuns em fitas cassete atingiram, a partir da segunda metade da década de 80, patamares estratosféricos. Foi questão de tempo para que a cena musical alemã adentrasse uma era de destaque sem precedentes.

Mas antes de falar desta cena underground eletrônica, vamos contar sobre um episódio que também foi ponto de virada na cena musical alemã. Michael Münzing e Luca Anzilotti, que já tinham sido responsáveis por dois álbuns do Off, produziram, certo dia, em 1989, o super hit The Power, sob a alcunha de Snap!  música que tinha o célebre sample de voz da Jocelyn Brown em Love Is Gonna Get You’ (“I’ve got the Power!”). The Power conquistou o mercado internacional da música como um verdadeiro tsunami, e na Alemanha, foi um verdadeiro divisor de águas.

Isso porque, diferentemente de Kraftwerk e Tangerine Dream, que tinham discursos sonoros bastante originais e começaram bem experimentais para depois conquistar progressivamente audiências maiores, esta cena Eurodance nasceu em um momento mais consolidado da sua indústria musical, o que proporcionou a ela um patamar de público e de rentabilidade jamais imaginado. A partir dali, a cena musical pop alemã se tornou blockbuster, com projetos que iam do próprio Snap! ao Culture Beat, Sigmund Und Seine Freunde e o B.G. The Prince Of Rap, entre outros. A Logic Records (gravadora do Snap!) deu considerável contribuição ao desenvolvimento da cena musical eletrônica europeia, do trance ao techno e ao Eurodance, com uma discografia que incluiu inclusive Blake Baxter, X-Press 2 e Underworld.

Em 1989, um personagem absurdamente pouco lembrado pela mídia, de capacidade criativa fenomenal, chamado Marc Trauner (ou Marc Arcadipane, conhecido como The Mover, Ace The Space e Mescalinum United) criou a gravadora Planet Core Productions. Fortemente influenciado pela cena industrial e EBM, Marc inovou e revolucionou o campo do techno com uma perspectiva dark, pesada e intensa a partir de Mescalinum United – We Have Arrived (1991) e, no mesmo ano, The Mover – Nightshift (Nonstop To Kaos).

O sucesso foi tamanho que o produtor Lenny Dee, de Nova Iorque, ficou tão fascinado que a lançou no primeiro single da sua label Industrial Strength, e na sua primeira coletânea em CD. A própria cena holandesa, que no início ignorou as promos enviadas por Trauner, mergulhou de cabeça ao ver o sucesso que fizeram quando Dee as tocou. Marc emplacou uma obra prima atrás da outra: Nine Is A Classic (1992), Waves Of Life (1993), entre inúmeras outras.

Berlim Ocidental era a cidade mais fascinante da Europa desde os anos 70, por diversos motivos: estava isolada no meio da Alemanha Oriental, socialista, e dividida do outro lado da cidade por um muro que perdurou quase três décadas; vivia o medo constante de que a Guerra Fria se tornasse mundial, ou até de uma eventual invasão das tropas soviéticas; respirava arte e tinha uma comunidade bastante ousada e criativa, desde antes dos tempos do krautrock/Berlin School; foi palco de grandes eventos, principalmente a partir dos 80, com o Berlin Atonal e o clube UFO, cujo fundador, Dimitri Hegemann, seria o responsável pelo grande templo do techno na cidade: o Tresor Club.

Fachada do Tresor. Foto: Reprodução

A jornalista, pensadora e atual manager da gravadora TresorCarola Stoiber, relembra que já havia uma subcultura musical profundamente mente aberta em Berlim no início dos 80. Em 1991, ano de fundação do Tresor, Dimitri também fundou a label Tresor Berlin, inspirado pela estreita aliança formada com artistas do techno de Detroit. Não por acaso, o primeiro lançamento foi o álbum do X-101, dos produtores da Underground Resistance. Tanto os artistas de um lado quanto do outro queriam trazer uma abordagem inovadora, futurista e esperançosa — é importante lembrar que Detroit vivia uma crise econômica decorrente da derrocada da sua industria automobilística a partir dos anos 70, enquanto Berlim, com a queda do muro e a unificação, tinha seu lado oriental totalmente abandonado e defasado tecnologicamente.

Quem brilhou absurdamente nessa cena de Berlim entre 1989 e 1991 foi o Maximilian Lenz aka WestBam, cujo nome é uma abreviação da sua região (Westphalia) com o seu herói Bambaataa (sim, o Afrika). A capacidade que o cara tinha de criar hits poderosos de pista, tanto de breakbeats quanto de house, era impressionante. Alarm Clock, The Roof Is On Fire, Hold Me Back, Monkey Say Monkey Do, entre outros, se tornaram verdadeiros hinos das pistas de dança na Europa, nos EUA e inclusive em São Paulo (lembro do DJ Mau Mau botar a pista abaixo com as pedradas Alarm Clock e com o RAP Machine Mix de The Roof Is On Fire. WestBam reinou nesse período.

Enquanto isso, Dr. Motte lançou pela Tresor em 1992 com 3 Phase, um dos primeiros hinos de techno de Berlim. A própria Love Parade, fundada por Dr. Motte e Danielle de Picciotto, foi um marco nas cenas de Berlim e da Alemanha. Concebida como uma manifestação política pela paz, liberdade e direitos civis através do amor e da música, teve origem em 1989, com presença de 150 pessoas nas ruas da capital. A partir de 1997, o público frequentador já estava na casa de um milhão de pessoas, com trios que tocavam diversos gêneros de música eletrônica, entre os quais techno e trance.

Dr. Motte na Love Parade, 1998. Foto: Reprodução/YouTube

Um dos capítulos essenciais e singulares da música eletrônica alemã aconteceu a partir dos companheiros da banda Palais Schaumburg, Thomas Fehlmann e Moritz von Oswald, que mencionamos na parte anterior. Em 1989, lá estavam eles, desta vez como parte da cena de house music, com o projeto Marathon, ao lado de Ralf Hertwig (também do Palais). Movin, de 1990, já tinha uma atmosfera mais voltada para o que acontecia na cena pop/rave inglesa, com breakbeats e o vocalista cantando o clássico soul Happiness Is Just Around The Bend, de Cuba Gooding (do Main Ingredient).

A revolução, porém, aconteceu em 1992. Ao lado de Mark Ernestus, Von Oswald funda o projeto e gravadora Maurizio, e dá início ao dub techno. Em 1993, inaugura a label Basic Channel, catapultando o gênero a um outro patamar. A concepção estética e os recursos tecnológicos, usados com enorme originalidade fizeram deste um dos movimentos mais importantes e sonoramente mais ousados da história do techno. Já Thomas Fehlmann, ao lado de Von Oswald, lançou com artistas de Detroit sob o projeto 3MB (tanto com Juan Atkins quanto com Eddie Flashin’ Fowlkes) dois antológicos LPs que merecem ser ouvidos na íntegra (ver tracklist final).

Também de Berlim, Ellen Allien, que foi residente do Bunker (Tresor) e da E-Werk, e que hospedou o seu programa Braincandy na Kiss FM de Berlim, tem uma história bastante conectada à da capital da Alemanha unificada. Em 1999, lança sua label B-Pitch Control, uma plataforma essencial para projetar a carreira de importantes artistas, entre os quais Modeselektor, Paul Kalkbrenner e Apparat. O primeiro álbum de Ellen, Stadkind (2001), é uma homenagem à cidade, cujo universo multicultural e singular foi, para ela, bastante influente.

Ellen Allien, 1989. Foto: Reprodução/Facebook

Paralelamente, a cena de trance nasce e cresce com Jam & Spoon e Sven Väth em Frankfurt, e a cena de Berlim, com Mark Reeder e a sua gravadora MFS, por onde lançaram Humate, Cosmic Baby, Paul Van Dyk, Marmion, entre outros grandes nomes. Sven, ao lado de Ralf Hidenbeutel e Matthias Hoffmann, fundou a Eye Q, enquanto o mesmo Matthias, Brainchild e Heinz Roth fundaram a Harthouse. É impossível citar todos os grandes artistas e releases dessas gravadoras aqui, porque são muitos, mas incluiremos alguns na lista de clássicos no final. A história do trance alemão é magistral, sobretudo entre 1992 e 1995.

Em meados de 1994, em Bad Neuheim, Hessen, os jovens Bernhard e Heiko Laux fundaram a gravadora Kanzleramt; entre os primeiros lançamentos, estão uma dupla do Notsignal, dos alemães Matthias GeistAnthony Rother, que depois se tornaria um dos reis do electro nos anos subsequentes. Patrick Lindsey como Voodooamt (1995), Heiko Laux (1996), Johannes Heil e Christian Morgenstern (1997), Richard Bartz (1998) e Alexander Kowalski (2000) fizeram igualmente parte da discografia impressionante da Kanzleramt, que tinha uma abordagem de techno bastante soturna e distópica. Clubbers mais velhos certamente dançaram algumas dessas obras em clubes como A Lôca e Lov.e.

O próprio Rother, que passou momentos financeiros difíceis entre 93 e 96, é muito grato a Heiko Laux por ter sido o primeiro a lhe dar oportunidade como produtor, e pouco tempo após lançou como PsiPerformer, o que lhe rendeu sua primeira entrevista pela revista Groove. Mas foi com o single Love Is For The Hardest People (1996) e o LP Sex With The Machines (1997) que definitivamente cravou o seu nome na história do electro, já numa perspectiva bem mais próxima do sci-fi dark.

Anthony Rother. Foto: Reprodução

Não haveria páginas suficientes para relatar a infinidade de artistas e gravadoras importantes para o desenvolvimento da cena eletrônica alemã, porém, é importante citar ao menos mais duas gravadoras essenciais do período. A primeira foi a Force Inc. Music Works, fundada por Achim Szepanski em 1991, cuja sublabel era a Mille Plateaux. Foi por lá que lançaram a dupla Tonka e Ian Pooley, também conhecidos como T’N’I. Mad Situation, de 1994, é um dos maiores hinos do tech house de todos os tempos. Twin Gods e Celtic Cross, de Ian, também foram amplamente tocadas no meio dos anos 90 e marcaram toda uma geração.

E por falar em Mille Plateaux, como não mencionar esse personagem magistral de Colônia que foi Wolfgang Voigt? O cara teve, entre seus projetos, Mike Ink. (cujas obras de acid techno sao notórias); Studio 1, com o qual foi um dos grandes responsáveis por deslanchar o minimal techno alemão que dominou a cena europeia até os anos 2000; e Gas, projeto de ambient e deep techno com viés mais minimalista. Em 1998, Wolfgang, Michael Mayer e Jurgen Paape fundam a Kompakt, a label mais importante de Colônia das últimas décadas.

A segunda vem de Munique, considerada a cidade financeiramente mais próspera da Alemanha. Um DJ veterano chamado Helmut Geier (DJ Hell), que iniciou sua carreira em 1978 e tocou no clube Libella, em Kirchweidach, nos anos 80, reunia a extraordinária capacidade de conjugar diferentes estilos musicais em um mesmo repertório. Na sua residência no Park Café, se tornou um dos primeiros DJs de house do país, e a partir de 1987, passou a organizar festas de acid house.

DJ Hell. Foto: Reprodução

Em 1991, foi essencial no estabelecimento do selo Disko B, de Peter Wacha, pelo qual lançou seu primeiro remix e se tornou A&R até 1996. Em 1992, lançou seu primeiro single, My Definition Of House Music, pela R&S, que vendeu mais de cem mil cópias, tornando-se um dos mais bem-sucedidos DJs alemães daquele tempo. Mas foi em 1996 o grande ponto de virada, quando fundou a International Deejay Gigolo Records, que se tornaria um dos primeiros pilares do electroclash, movimento musical que perdurou até meados dos anos 2000 com um blend de electro, techno, synth-pop, high energy, entre outros estilos. Sua discografia, absolutamente sensacional, passava por nomes como Christopher Just, Jeff Mills, Miss Kittin, The Hacker, Dopplereffekt, Vitalic e David Carreta.

O resultado quase que natural deste período foi uma cena permeada de grandes clubes, cuja capital, Berlim, que se tornou a meca dos clubbers e aficcionados por música eletrônica underground de pista. Em 2004 e 2005, foram criados, respectivamente, o club Berghain, eleito inúmeras vezes o melhor club do planeta, e sua gravadora Ostgut Ton, plataforma de uma respeitável gama de artistas, tais como Marcel Dettmann, Tama Sumo, Marcel Fengler, etc.

Os anos 90 representaram, portanto, a ascensão da inquestionável cena eletrônica alemã, que passou a ser considerada a mais importante do mundo. A virada do século, assim como os primeiros anos do novo milênio, foram particularmente marcantes, com sets e produções incríveis de inúmeros artistas alemães, Berlim como a capital do techno — cuja cena recebeu, em 2024, o reconhecimento de patrimônio imaterial da humanidade pela UNESCO — e a revista Groove como uma das mais importantes mídias especializadas.

Rumo à música eletrônica contemporânea alemã (Sec. XXI)

Dixon e Âme, da Innervisions. Foto: Reprodução

As décadas de 2000, 2010 e 2020 são marcadas por um crescimento da tecnologia digital em nível exponencial na música. De uma realidade em que os CDs comportavam 16 bits e 96 dB de range dinâmico nos anos 90, saltamos para 24 bits e 144 dB nos anos 2000, e finalmente, 32 bits floating-points e 1528 dB de alcance dinâmico nos anos recentes. A qualidade dos plugins (programas com os quais se produz e mixa música eletrônica) se desenvolve e atinge patamares de qualidade jamais ouvidos antes, muitos dos quais são impossíveis de simular com equipamentos analógicos.

Tudo isso afetou profundamente a vida dos produtores musicais. A presença dos equipamentos físicos necessários nos home studios diminuiu, e em grande parte dos casos, um laptop, uma interface de alto nível e um teclado controlador (ou um sampler) passaram a bastar para que se pudesse criar belas obras de música eletrônica. Com grandes recursos tecnológicos digitais à disposição e por bem menor custo, a qualidade de áudio deu um salto, e isso foi especialmente importante, porque mais jovens tiveram acesso a toda essa tecnologia.

Os jovens alemães podiam finalmente testar os limites convencionais do som a um custo absurdamente baixo, em plataformas como Ableton, Logic ou diversas outras. Dois exemplos que comprovam esse salto na qualidade do som são as remasterizações das obras do Atom Heart (Uwe Schmidt) e do Studio 1 (Wolfgang Voigt), comparadas às originais. Por outro lado, a tecnologia de sistemas de P.A. e da acústica também se aprimorou absurdamente. Experimente ouvir uma live do pessoal da Innervisions (Âme, Dixon, Henrik Schwarz) em um bom club, e você perceberá o alto nível da espacialização sonora e de um excelente sound design. E não poderia ser diferente, afinal, os alemães são especialmente reconhecidos por serem ultra-aplicados e ousados em matéria de tecnologia.

Dito isso, vamos falar da música eletrônica alemã que tem a cara do século XXI. Ainda que nestes tempos recentes tenhamos uma consolidação, no que concerne à cena eletrônica internacional, de tudo o que se estabeleceu de estruturas sonoras entre os anos 70 e 90, novos paradigmas surgiram — e é deles que vamos falar nesta parte final. Assim como o zeitgeist dos anos 70 girou em torno da música cósmica, do rock aos instrumentos eletrônicos, e as demais décadas em torno da sonoridade característica de suas épocas, chegamos à conclusão de que o período seguinte costuma apresentar uma novo discurso sonoro, ou vários, diferentes do anterior. Muitas vezes, os desbravadores desses novos horizontes pagam o preço por estar muito à frente do seu tempo, e quem desfruta é quem transita no gênero quando este já está em franca ascensão.

A música eletrônica contemporânea alemã se consolida no século XXI, mas nasce nos anos 90. Já de cara, é importante deixar claro que nomes como Moritz Von Oswald, Mark Ernestus, Wolfgang Voigt e Robert Henke (Monolake) também mereceriam estar neste panteão pelas suas belíssimas obras, pelo seu inegável comprometimento com os avanços tecnológicos e a busca de inovações estéticas. Porém, daremos mais destaque, nesta parte final, para os vanguardistas que ousaram romper com os paradigmas musicais e estilísticos da cultura clubber. Citamos aqui três exemplos principais. Não significa que sejam únicos, muito pelo contrário. A Alemanha é um celeiro de talentos.

O primeiro projeto foi criado por Jan Stephan Werner (Mouse On Mars) e Markus Popp (Oval), sob a alcunha de Microstoria. Seu primeiro álbum, Init Ding (1995), pela Mille Plateaux, representou um grande choque: a música era abstrata, experimental, glitch, permeada de ruídos e densa. O material sonoro não apresentava conexão a priori com nada das décadas anteriores, a não ser os primórdios mais experimentais dos estúdios da WDR nos anos 50. Foi uma outra construção estética, muito mais ousada e totalmente desprendida da música eletrônica da vida noturna. A matéria prima sonora passou (novamente) a ser a personagem principal, em detrimento das estruturas convencionais da música (harmonias, ritmos e melodias). A resposta de frequências permitiu sensações inéditas, desconhecidas da música comercial até então. O segundo LP, Snd, do mesmo patamar de ousadia, foi a continuação perfeita dessa inovadora narrativa. Peguem seus melhores fones de ouvido, sistemas de som, e ouçam os dois LPs na íntegra. Conselho sério!

Alva Noto. Foto: Reprodução

Este universo da vanguarda musical teve outros personagens fundamentais. Carsten Nicolai (Alva Noto), que nasceu na Alemanha Oriental, é um legítimo artista multimídia. Incrivelmente criativo, mergulhou na matéria primária sonora e absorveu influências da música eletrônica experimental alemã, do minimalismo, assim como de outras formas de arte de vanguarda e das ciências, para criar uma discografia sem paralelos.

Em 1993, lançou o LP Morbus: Vier schwarze Bilder Zeichungen Holzdrucke Collagen Toene; três anos depois, foi a vez de Spin abalar as expectativas, com uma abordagem experimental e minimalista de sons e ruídos absolutamente singular, diametralmente oposta ao minimal techno, que começava naquele período dos 90 com Wolfgang Voigt. Carsten sempre foi vidrado na física do som e em outras áreas da ciência; sempre quis se livrar da ideia do artista performático. Não por acaso, se tornou um dos maiores impulsionadores da inovação estética sonora e audiovisual das últimas três décadas. É absolutamente impossível enumerar a extensão das suas explorações sonoras destes anos. Aconselho uma profunda pesquisa no catálogo da Raster-Noton, label que fundiu duas gravadoras — a Rastermusic com a noton.archiv für ton und nichtton — no final de 1999, a qual fundou com o amigo Olaf Bender.

Um terceiro personagem que fazemos questão de citar nesta parte final é Uwe Schmidt. Sua discografia transcendeu à ideia de se dedicar a um gênero musical específico, e foi reconhecida pela sua genial multiperspectiva sonora. O artista de Frankfurt am Main foi responsável por uma miríade de projetos solo e em grupos durante a sua carreira de mais de três décadas — e mais importante, soube dar a eles identidades artísticas notáveis: Lassigue Bendthaus, Señor Coconut, Atom Heart, Atom™, entre incontáveis outros. Assim como outros grandes colegas, Uwe remasterizou todo o seu catálogo de obras primas como Atom™ no Bandcamp, com excepcional engenharia de áudio. Se fosse vocês, iria agora conferir com bons fones de ouvido ou com sound system de respeito.

Uwe Schmidt. Foto: Reprodução

Bibliografia sugerida

On The Sensations Of Tone – Hermann von Helmholtz (1875)

Radio Cologne Sound Das Studio für Elektronische Musik des WDR – Harry Vogt, Martina Seeber (2023)

Electronic And Experimental Music: Technology, Music and Culture – Thom Holmes (2020)

Conversations avec Stockhausen – Jonathan Cott (1979)

Other Planets: The Complete Works of Karlheinz Stockhausen 1950-2007 – Robin Maconie (2007)

Stockhausen: Sobre a Música – Robin Maconie (1989)

Krautrock: Cosmick Rock and Its Legacy – Nikolaos Kotsopoulos (2009)

Krautrock! – Lingh Lindemann (2015)

Kraftwerk: From Düsseldorf to the Future (with Love) – Tim Barr (1998)

Kraftwerk – Publikation • A Biografia – David Buckley (2013)

Kraftwerk: Future Music from Germany – Uwe Schütte (2021)

The Sound Of The Machine: My Life In Kraftwerk And Beyond – Karl Bartos (2017)

Der Klang Der Familie: Berlin, Techno And The Fall Of The Wall – Felix Denk, Sven Von Thülen (2014)

Localizer 1.0: The Techno-House Book (1995)

Minimal Understandings: The Berlin Decade, The Minimal Continuum, and Debates on the Legacy of German Techno – Liliana de Campo, Olaf Delgado-Friedrichs, Stephen T. Hyde, Michael O’Keeffe (2013)

Sobre o Time Warp

O Time Warp surgiu na Alemanha em 1994 com base nos ideais da cena house/techno, e, aliado a uma infraestrutura e tecnologia audiovisual de ponta, logo se tornou um dos festivais mais conceituados da Europa entre os ambientes underground.

Estabelecido em São Paulo desde 2018 pelas mãos da Entourage, o Time Warp Brasil repete por aqui a mesma qualidade de curadoria e cenário, consolidando-se como um dos maiores eventos da cena nacional. Com dois dias e dois palcos, o festival reúne pessoas de todos os cantos do país.

Em 2019, o Complexo do Anhembi recebeu mais de 20 mil pessoas dispostas a viver toda a experiência que cerca o ambiente do TW. Após uma edição muito bem-sucedida em maio de 2022, a marca retornou à capital paulista nos dias 11 e 12 de novembro, na ARCA, levando um showcase especial e um projeto de palco exclusivo. Efetivou-se, então, uma relação íntima entre o Time Warp e o Brasil.

Com mais de 40 atrações e de 30 mil presentes no Autódromo de Interlagos em maio do último ano, a edição 2023 se consagrou como a maior realizada até então.

Agora, em 2024, o Time Warp Brasil tomará conta de toda a extensão do renovado Vale do Anhangabaú, pela primeira vez com três palcos. Milhares de pessoas se reunirão no Centro da cidade, rodeadas pelos arranha-céus paulistanos, ao som de grandes lendas e novos nomes que hoje movimentam a cena global, trazendo uma gama de novidades para o rico e complexo movimento da música eletrônica de pista.

Serviço

Time Warp Brasil 2024

Local: Vale do Anhangabaú: Av. São João, R. Formosa – Centro Histórico de São Paulo, São Paulo/SP
Data: Dias 03 e 04 de maio (sexta e sábado)
Horário: Das 20h às 08h (em ambos os dias)
Atrações: 999999999, Bicep presents Chroma (AV DJ set), Black Coffee, Black Coffee B2B Mochakk, Boys Noize, Chaos in the CBD, Chris Stussy, Delcu, DJ Holographic, DJ Seinfeld, Due, FHTD, Gartzzea, Gop Tun DJs, HAAi, Hercules and Love Affair, Horse Meat Disco, Hot Since 82, I Hate Models, Klangkuenstler, Maceo Plex, Mall Grab, Mari Boaventura, Marta Supernova, Mila Journée, Mochakk, Richie Hawtin, Roman Flügel, Sama’ Abdulhadi, Sara Landry, Silenzo, Skin on Skin, Slim Soledad, Sven Väth, TSHA, Valentina Luz B2B Eli Iwasa, Vermelho e WhoMadeWho (Hybrid DJ Set)
Ingressos: Via Ingresse
Patrocínio: Beck’s

Alain Patrick

http://www.wearesoulandsound.bandcamp.com/

Alain Patrick é autor do livro "Electronic Standards", compositor de música eletrônica e fundador da gravadora Soul & Sound.

× Curta Music Non Stop no Facebook