O Homem dos Sonhos Imagem: Divulgação/California Filmes

Trazendo sonhos à realidade: uma entrevista com Nicolas Cage sobre ‘O Homem dos Sonhos’

Yasmine Evaristo
Por Yasmine Evaristo

Explorando a fusão de comédia e terror, filme de Kristoffer Borgli entra em cartaz nesta quinta (28)

Em um cinema cada vez mais saturado de fórmulas previsíveis, O Homem dos Sonhos emerge como uma brisa refrescante de originalidade. Dirigido por Kristoffer Borgli, o filme, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (28), traz uma fusão única de comédia ácida e elementos de terror, mergulhando no subconsciente humano de maneira intrigante, perturbadora e divertida.

Paul Matthews, interpretado de forma magistral por Nicolas Cage, um homem comum com uma vida banal, de repente se vê catapultado para os sonhos de completos estranhos. À medida que as pessoas começam a abordá-lo, como um ídolo da sociedade de consumo imediato, a existência monótona da personagem é convertida em um turbilhão de fama indesejada.

Cage entrega uma performance cativante, capturando a essência de um homem comum em uma jornada atípica. A ascensão meteórica de Paul ao estrelato dos sonhos é habilmente equilibrada com momentos de terror psicológico e comédia constrangedora.

A habilidade de Borgli em explorar os aspectos sombrios da vida moderna é evidente em cada cena. De maneira semelhante, o roteiro habilmente tece uma narrativa que é ao mesmo tempo engraçada e assustadora. A interação entre Cage e o diretor norueguês é especialmente reveladora, destacando a colaboração criativa que deu vida a essa obra singular.

Insights sobre O Homem dos Sonhos

Imagem: Divulgação/Golden Globes Press Conference

Em novembro de 2023, Nicolas participou de uma coletiva de imprensa esclarecedora sobre a produção. Durante o evento, o ator compartilhou insights fascinantes sobre os bastidores do filme e sua perspectiva única sobre seu personagem, destacando sua profunda conexão com o papel e sua admiração pelo roteiro inovador.

A entrevista foi conduzida por Jacqueline Coley, Editora de Prêmios do Rotten Tomatoes, onde também coapresenta o podcast Rotten Tomatoes is Wrong. Esse encontro ofereceu uma visão íntima dos desafios e realizações por trás da produção de O Homem dos Sonhos, proporcionando aos jornalistas e espectadores uma compreensão mais profunda de seu trabalho.

Jacqueline começou a entrevista relatando o quanto o filme a surpreendeu. A apresentadora elogiou a produção, dizendo que a achou “diferente, engraçada, irritante, [que] me fez sentir todas as emoções”. Em seguida, perguntou a Cage como o filme permitiu que ele mostrasse muitas nuances diferentes de si mesmo como ator, e se foi isso que o atraiu. Ele disse que sim, desde o momento que leu o título.

“Foi um dos cinco melhores roteiros que já li em mais de 42 anos de carreira. Senti que tinha a experiência de vida necessária para interpretar Paul. Mas o filme foi mais do que isso para mim. Houve uma conexão emocional, especialmente porque lidei com minha própria exposição e memes virais na internet. Quero ser mais pessoal em meu trabalho, usar experiências reais em meus personagens. O tema dos sonhos permite explorar narrativas mais surreais, o que me animou muito. […] Foi como transformar um desafio em algo construtivo, uma espécie de alquimia emocional, catártica e transformadora” — Nicolas Cage.

O poder das multidões na era digital

O HOMEM DOS SONHOS

Imagem: Divulgação/California Filmes

O filme trata da maneira como a vida de um homem comum pode ser alterada pelos efeitos que as redes sociais e a exposição por meio das telas provocam. Ao ser questionado sobre o que isso revela sobre a sociedade atual, Cage respondeu falando sobre a maneira como a opinião pública afetou sua carreira ao longo dos anos, e sobre sua relação com a tecnologia e seus avanços:

“As pessoas dizem, ‘bem, foi para isso que você escolheu ser ator’. Mas não foi bem assim, pois quando tomei a decisão, estava pensando nas pessoas dos anos 40, dos anos 20 ou em [James] Cagney. Nem todos tinham um celular ou uma câmera, não tinham sequer internet. Então, para mim, foi um ajuste ao mundo viral da internet, para o qual eu não ‘me inscrevi’, e isso aconteceu ao longo de 40 anos”.

“Há um grande romancista gráfico chamado Alan Moore, que escreveu Watchmen e seu cenário mental. E nisso ele é quase como um Nostradamus prevendo: este é o ano em que as informações serão distribuídas tão rapidamente, que todos nós vamos nos transformar em vapor’. Não sei o que isso realmente significa, mas há algo que tem um som visceral, afinal as informações estão se acelerando exponencialmente e todos estão tendo essa inconsciência coletiva. Isso está acontecendo por meio da tecnologia. Portanto, ainda é algo que está evoluindo, mas já está aqui e veio para ficar”.

Inspirações para interpretar Paul

Sempre que um filme é lançado e seus atores se destacam, existe uma curiosidade sobre a maneira que a personagem foi acolhida e construída por seu intérprete. E Paul Matthews é um grande intelectual incapaz de viver por se sentir frustrado com alguns dos caminhos que sua vida tomou. Assim sendo, foi pedido para que Nicolas contasse se houve algum personagem real ou fictício em que ele se inspirou para esse papel. O ator considerou a pergunta profunda:“Acho que os artistas e as pessoas que realmente pensam sobre as coisas [reflexões profundas, filosóficas e psicanalíticas] às vezes tendem a ser excluídos, considerados desajustados socialmente, que não se encaixam necessariamente no que é considerado um comportamento normal e socializado. Eles têm muita coisa em mente ou estão pensando em coisas diferentes. Isso pode ser aceito de uma forma excelente, em que as pessoas gostam da conversa ou são estimuladas por ela. Entretanto, por outras vezes, pode desencorajá-las”.

“Portanto, acho que há um lado duplo nisso — você pode ser um desajustado social ou pode ser aceito. Acho que meu pai [August Coppola, que assim como Paul, foi professor] tinha um pouco disso, porque gostava de falar e pensar, e perdeu muitas pessoas nas relações sociais. Não tanto quando estava lecionando, mas socialmente. Isso também pode acontecer com os artistas.”

O homem dos sonhos é viral

De maneira semelhante, o ator interpretou outras personagens introspectivas e peculiares em sua carreira, como os gêmeos em Adaptação, de Charlie Kauffman. Dessa forma, parece que há algo nesse estranhamento que atrai Nicolas para pegar esse papel.

“O que me levou a isso foi tanto [esse estranhamento] quanto a experiência de vida que eu achava que iria adquirir ao tentar ‘fazer amizade’ com o que estava acontecendo comigo de forma viral na internet, com esses mashups [e memes]. Acho que foi com isso que acabei me conformando, e é isso que quero dizer quando falo sobre fazer amizade com os memes. Senti que os guardiões dos portões, a velha guarda, já haviam se decidido a meu respeito, já haviam se calcificado em uma percepção de mim” — Nicolas Cage.

Perguntas dos jornalistas brasileiros

O HOMEM DOS SONHOS

Imagem: Divulgação/California Filmes

Além de mim, o jornalista e também critico de cinema Renato Silveira, do site Cinematório, esteve presente na coletiva. Renato perguntou para Cage sobre como o ator vê a relação entre o cinema e os sonhos, tanto metaforicamente quanto na representação visual, afinal o artista já trabalhou com diretores como Spike Jonze e David Lynch.

Nicolas comentou que tal ligação entre os cinemas e os sonhos estava “me ocorrendo agora, como resultado dessa excelente pergunta”.

“Acho que todos os filmes são sonhos. Todos eles têm uma qualidade de sonho, porque não é diferente de quando você vai para a cama e algo acontece. Por exemplo, tive um sonho estranho na noite passada e posso fazer um filme com ele. Minha babá não era minha babá. Ela apareceu e lançou feitiços. E eu estava correndo para o meu quarto dizendo: ‘acho que a babá é louca!’. Posso fazer um filme sobre isso agora. Filmes e sonhos são assim, pois compartilham o mesmo DNA. São pequenas expressões mentais ou falhas no processo normal de pensamento. E isso é muito abstrato, inerentemente” — Nicolas Cage.

“A fantasia em mim quer acreditar que eles [os sonhos] têm um significado mais profundo, mas o cientista em mim acha que eles não têm. Mas eu gosto da magia dos sonhos. […] Sempre tive sonhos. Mesmo quando era pequeno, meu pai dizia que eu era atormentado por pesadelos. Mas aprendi a utilizá-los porque gosto de pensar nos sonhos como presentes.”

Paul Matthews não é Freddy Krueger

O HOMEM DOS SONHOS

Imagem: Divulgação/California Filmes

Como entusiasta dos filmes de gênero, observei que Paul é um personagem diferente do que esperamos quando se trata de uma película que envolve sonhos e pesadelo. No primeiro terço, a aparição do professor nos sonhos das pessoas é sempre passiva e não gera nenhum desconforto profundo, a não ser o estranhamento provocado por sua presença apática. Assim sendo, pedi para Cage falar sobre a presença de Paul nos sonhos:

“É interessante, porque ele [Paul] está frustrado, egoisticamente, pois ninguém está sonhando com ele fazendo nada de interessante. Ele está apenas testemunhando, um espectador passivo que está passando pelos sonhos alheios e não está agindo. Mas então os sonhos se tornam pesadelos. E nós nos divertimos com isso, pensando na mudança em seu comportamento. De repente, ele não é mais o professor desastrado, é algo mais ameaçador” — Nicolas Cage.

A importância da A24 na carreira de Nicolas Cage

Nicolas Cage refletiu sobre a influência da A24, produtora por trás de O Homem dos Sonhos, e do cinema independente em sua carreira. Ele destacou a liberdade criativa e a coragem de explorar novos territórios, algo que vê como essencial para manter a vitalidade na indústria cinematográfica:

“É por isso que eu continuo voltando ao cinema independente. Acho que é aí que está a originalidade. Com o filme independente, você tem mais liberdade. […] É sempre um risco, mas gera criatividade e mantém novas histórias em andamento. A A24 fez isso muito bem, se arriscaram em materiais que, na minha opinião, os grandes estúdios nem sequer dariam oportunidade para serem produzidos”.

“O cinema independente tem formado os filmes maiores que já fiz. Um bom exemplo disso é O Beijo do Vampiro e A Outra Face. Eu vi O Beijo como um laboratório e pensei: ‘É aqui que posso tentar brincar com o expressionismo alemão'”. E assim, os momentos de grande destaque que se tornaram ‘memeficados’ pelo exagero, eu poderia fazer aqui [em O Homem dos Sonhos], porque sabia que funcionava. Portanto, agora posso ter confiança de que funcionará em um grande filme.”

“É claro que, quando eu estava fazendo A Outra Face, todos perguntaram se eu poderia recuar um pouco. Mas eu sabia que ia funcionar e era perfeito para Castor [Troy, sua personagem] se comportar exageradamente. Portanto, acho que os dois combinam muito bem, filmes independentes e grandes, porque você pode aprender com o independente como em um laboratório.”

Nic real, Nic onírico, Nic das telas

Renato Silveira questionou também se os filmes O Homem dos Sonhos O Peso do Talento poderiam de alguma forma se conectar, afinal, ambos tratam do tema da fama e da onipresença da personalidade de Cage. 

“Ele [Paul] não sou eu. Estou tentando encontrar filmes em que eu não sinta que precise atuar tanto, porque tenho a experiência de vida para interpretar o personagem. Isso é muito diferente de O Peso do Talento, que foi a coisa mais assustadora que já tive de fazer em mais de 40 anos de produção. Eu pensei: ‘bem, esse não sou eu’. Tenho uma filha agora, mas não tinha na época. Não sou uma pessoa que quer escolher a carreira em vez da família, a família vem em primeiro lugar.”

“Eu também sabia que estava tirando sarro de mim mesmo e que era humilhante, como um esquete do Saturday Night Live, mas, felizmente, Tom [Gormica] e Kevin [Etten], roteirista e diretor, queriam contar uma história que tivesse um pouco de coração, mas que fosse desafiadora. Entretanto, nunca mais quero fazer nada parecido com isso.”

Em suma, O Homem dos Sonhos é uma preciosidade cinematográfica na qual o misto dos gêneros terror e comédia prova o poder duradouro do cinema de gênero como meio de surpreender, cativar e provocar reflexão no público.

Leia mais da coluna de Yasmine Evaristo!

Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, graduanda em Letras - Tecnologias da Edição. Membro Abraccine, votante do Globo de Ouro (Golden Globe Awards). Pesquisadora de cinema, principalmente do gênero fantástico, bem como representação e representatividade de pessoas negras no cinema. Devota da santíssima trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch.

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