Oscar Streaming “CODA” (“No Ritmo do Coração”) foi o primeiro filme feito para streaming a levar a principal estatueta do Oscar. Foto: Jordan Strauss/Invision/AP

Como o reconhecimento do Oscar às plataformas de streaming democratizou o cinema

Yasmine Evaristo
Por Yasmine Evaristo

Filmes feitos pelas plataformas digitais vêm competido de igual pra igual com as superproduções dos cinemas

Nos últimos anos, testemunhamos uma revolução no cenário cinematográfico, conforme os serviços de streaming entraram na corrida pelo cobiçado Oscar. Inicialmente, as regras estabelecidas pareciam favorecer apenas os estúdios tradicionais, mas mudanças significativas nas regulamentações abriram caminho para que as plataformas entrassem em cena.

As regras iniciais da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas eram um obstáculo, exigindo no mínimo uma exibição em cinemas de Los Angeles, por pelo menos uma semana, para qualificar um filme como concorrente ao Oscar.

No entanto, diante da crescente influência e qualidade das produções de streaming, essas regras passaram por ajustes. Ademais, a pandemia acelerou esse processo, permitindo que mais filmes de plataformas digitais entrassem na competição.

Os primeiros títulos de destaque

Os serviços de streaming não apenas se adaptaram às regras existentes, mas também desafiaram o status quo, investindo em produções cinematográficas de alta qualidade. Ao lançar suas próprias produções, essas plataformas enfrentaram o desafio de convencer o público e a crítica de que suas obras mereciam um lugar de destaque na prestigiada premiação. Esse esforço foi evidente nas mudanças nas regras do Oscar, que desde 2021 aceita tais lançamentos como uma alternativa válida às tradicionais exibições no cinema.

O primeiro filme produzido por streaming que poderia ser indicado ao Oscar foi Beasts of No Nation, lançado em 2015 e produzido pela Netflix. A obra foi indicada para Melhor Ator Coadjuvante (Idris Elba) no Globo de Ouro, entretanto, foi esnobada na principal premiação da indústria cinematográfica americana. Este era um momento em que acreditava-se que as produções das plataformas digitais nunca seriam agraciadas com prêmios tão importantes, fossem eles nacionais (estadunidenses) ou estrangeiros (CannesSundance, etc.).

Entretanto, em 2017, Manchester à Beira-Mar recebeu várias indicações ao Oscar, incluindo a de Melhor Filme, e lançou luz sobre a possibilidade de que algo poderia estar mudando. Vale ressaltar que ele não foi produzido diretamente por um serviço de streaming, mas pela Amazon Studios.

Roma: uma jornada pessoal e cinematográfica de Alfonso Cuarón

O ano de 2018 presenciou o lançamento de Roma, filme de Alfonso Cuarón que rapidamente se tornou um marco na história do cinema, pois além de aclamada, a produção foi um divisor de águas na indústria cinematográfica, consolidando a relevância do streaming e elevando a Netflix ao patamar de produtora de conteúdo de alto nível.

Roma não se limitou a conquistar apenas o público. Foi aclamado pela crítica especializada e público, obtendo 96% de aprovação no Rotten Tomatoes. Além disso, elogiado por sua direção impecável, fotografia memorável, roteiro sensível e atuações excepcionais, se destacou em diversos festivais e premiações.

No Oscar, foi laureado com as estatuetas de Melhor Diretor, Melhor Fotografia e Melhor Filme Internacional. Além disso, recebeu o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Diretor, e o BAFTA de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Diretor e Melhor Fotografia. A consagração máxima veio com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, um dos prêmios mais prestigiados do mundo.

Um diretor com liberdade de falar sobre si 

Roma é uma obra semiautobiográfica de Cuarón, inspirada em suas memórias da infância no México dos anos 70. Através de uma narrativa intimista e poética, o filme acompanha a história de Cleo (Yalitza Aparicio), uma jovem empregada doméstica que trabalha para uma família de classe média na Cidade do México. Filmado em preto e branco, se destaca pela beleza de sua estética e pela sensibilidade com que retrata os personagens e suas relações.

O sucesso dessa produção transcende o âmbito cinematográfico e se configura como um marco cultural. O filme contribuiu para a valorização dos filmes de streaming, demonstrando que plataformas como Netflix, Apple TV e Amazon Prime Video podem ser palco de obras de alta qualidade e relevância artística.

Assim sendo, a capacidade das plataformas em atrair talentos renomados para seus projetos foi um divisor de águas.

De lá pra cá, muitas produções foram realizadas pelas plataformas

A qualidade das obras de streaming nos últimos cinco anos é notável. Filmes que antes poderiam ser considerados “para a televisão” agora rivalizam com produções cinematográficas tradicionais, sendo tão bem elaborados em termos de narrativa, direção e cinematografia.

A liberdade criativa proporcionada por essas plataformas, no momento da pandemia e das mudanças, aliada ao alcance global instantâneo, atraiu cineastas e atores de renome e, como consequência, resultou em produções que superaram as expectativas, como O Irlandês, de Martin Scorsese.

A acessibilidade global também desempenhou um papel crucial na expansão do alcance dos lançamentos. Ademais, filmes que poderiam passar despercebidos em circuitos limitados agora têm a oportunidade de cativar audiências que não têm acesso às salas de cinema do mundo instantaneamente.

Isso não apenas democratiza o acesso ao cinema, mas também desafia a ideia convencional de que uma produção de prestígio precisa ter uma presença massiva nas telonas para ser reconhecida. Tal reflexão, no entanto, não deixa de considerar que ainda há pessoas com difícil acesso à internet e computadores.

O primeiro a vencer o Oscar de Melhor Filme

Desde então, cada vez mais as produções das plataformas têm sido indicadas ao Oscar. Em 2022, vimos a ascensão de CODA (No Ritmo do Coração), da Apple TV+ — uma produção com parte do elenco PCD, surdo, remake da francesa A Família Bélier (2014) —, que se tornou o primeiro filme de streaming a vencer a principal categoria do Oscar, representando uma novidade ainda mais impactante na indústria do cinema.

As mudanças nas regras iniciais demonstram uma adaptação necessária às transformações tecnológicas e às novas formas de consumo de conteúdo audiovisual. Ao desafiar as normas estabelecidas, o streaming conquistou seu espaço, e elevou significativamente o padrão de qualidade e criatividade das produções nos últimos cinco anos.

O mercado tradicional ficou alerta e percebeu que existe concorrência. Ao mesmo tempo, as plataformas digitais entenderam que precisam dominar a forma de fazer e divulgar suas obras. Vivemos um momento emocionante e crucial para o cinema, marcado pela certeza de que a origem de um filme não define mais sua validade na busca pela cobiçada estatueta dourada.

Neste domingo, 10, o Oscar 2024 terá mais uma chance de provar o argumento. A cerimônia será transmitida pelo canal TNT e pela plataforma Max (antiga HBO Max), a partir das 19h.

Dica de filmes de streaming que merecem ser assistidos

Netflix

  • Beasts of No Nation (2017) – Indicado nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado
  • Roma (2018) – Indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Fotografia, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Roteiro Original
  • The Ballad of Buster Scruggs (2018) – Indicado na categoria de Melhor Roteiro Adaptado
  • O Irlandês (2019) – Indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Direção, Melhor Roteiro Adaptado 
  • A Voz Suprema do Blues (2020) – Indicado nas categorias de Melhor Atriz, Melhor Maquiagem e Penteado
  • Mank (2020) – Indicado nas categorias de Melhor Ator, Melhor Direção de Fotografia, Melhor Design de Produção

Amazon Prime Video

  • Manchester à Beira-Mar (2017) – Indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Original 
  • The Big Sick (2018) – Indicado na categoria de Melhor Roteiro Original
  • Sound of Metal (2020) – Indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição
  • Um Príncipe em Nova York 2 (2021) – Indicado na categoria de Melhor Figurino 

Apple TV+

  • CODA (No Ritmo do Coração) (2021) – Indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Adaptação de Roteiro, Melhor Ator Coadjuvante

Leia mais da coluna de Yasmine Evaristo!

Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, graduanda em Letras - Tecnologias da Edição. Membro Abraccine, votante do Globo de Ouro (Golden Globe Awards). Pesquisadora de cinema, principalmente do gênero fantástico, bem como representação e representatividade de pessoas negras no cinema. Devota da santíssima trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch.

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