Opinião: Como a Virada Cultural de São Paulo foi parar na UTI
Cada vez mais descaracterizado, evento se transforma em uma versão urbana das festas agropecuárias
Os rumos que a administração pública deu para um dos mais democráticos, corajosos e inventivos eventos culturais da América Latina são chocantes. Criada em 2005, durante a gestão de José Serra em um distante tempo em que ser de direita não significava fazer apologia ao obscurantismo, a Virada Cultural nasceu como uma tropicalização das Noites Brancas, realizadas anualmente em Paris desde 2002. Foi se desenvolvendo ano a ano, chegando a quatro milhões de pessoas vagando de um palco a outro, no Centro de São Paulo, com 24 horas ininterruptas de intervenções artísticas.
A experiência era doida. Insetos Gigantes no Vale do Anhangabaú de um lado e show de Cesária Évora de outro. Dinossauros do rock progressivo brasileiro num palco e Leci Brandão no outro. Racionais MC’s e Thaíde em uma rua, lutadores mexicanos de lucha libre num ringue ao lado. João Bosco mandando um som numa esquina e Booker T Jones em outra. Acabou.
Os objetivos originais da Virada Cultural, enterrados recentemente, eram claros:
- Promover a convivência entre os diferentes extratos sociais de São Paulo. Colocar, lado a lado, rico com pobre, branco com preto, nordestino com sulista, sambista com metaleiro. Para que se conheçam, se reconheçam e se compreendam.
- Desenvolver cultura, apresentando ao grande público, gratuitamente, atrações a que não teriam acesso, por impossibilidade ou desconhecimento, conforme transitavam entre as dezenas de palcos disponíveis, um pertinho do outro. A velha máxima de Gilberto Gil de que “o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. Afinal, é para isso que serve o dinheiro público destinado à cultura.
- Reaproximar a população de São Paulo do combalido Centro Histórico, resgatando sua importância, estreitando os laços entre a população e o maravilhoso patrimônio arquitetônico e urbanístico da região.
Difícil? Utópico? Talvez. Mas sem utopia não haveria a Brasília de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Não haveria avião, metrô, celular… Ao promover, nos últimos anos (2017, 2022, 2023 e agora), a descentralização da Virada e apresentar uma programação presente em qualquer festa agropecuária (mercado milionário, diga-se) do interior do país, a Prefeitura de São Paulo não cumpre nenhum dos propósitos originais do evento.
O mote de 2024, A Virada Cultural Do Pertencimento, já escancara certo plano maquiavélico. Quer dizer que o Centro Histórico, agora, não pertence a quem é da periferia? A todos os paulistanos? Claro que o argumento oficial não é este. Ao descentralizar os palcos por diversas regiões da cidade, a prefeitura leva cultura às regiões mais distantes. Mas espera aí… Esta é a função da Secretaria de Cultura durante todo o ano!
Espalhar o rolê para todos os cantos provoca outro efeito: o de “cada um em seu quadrado”. Cada casta devidamente resguardada em sua área urbana original. Uma vergonha.
Certa vez, entrevistando o lendário DJ Hum em um workshop para o Sesc Guarulhos, falávamos sobre o encontro de rappers semanal da Estação São Bento. Cada crew chegava de trem, vinda dos quatro cantos da cidade, e trazia uma informação diferente do hip-hop. No Centro, se confraternizavam, fundiam tais informações e evoluíam artisticamente. É sobre isso.
Tirar o protagonismo da região e pulverizar o público em 20 palcos diferentes, distantes, enfraquece a Virada Cultural e mata o turismo. Esvaziar o Centro para ocupar o novo Vale do Anhangabaú e terraços de edifícios históricos, festas com ingressos a mil reais. A quem interessa?
Durante mais de uma década ocupando a zona central, é óbvio que a Virada nunca foi perfeita. Houve problemas de segurança e depredação. Mas culpar a população periférica, restringindo seu acesso ao centrão, é um absurdo. Durante todo o ano o poder público nega aos paulistanos da periferia educação de qualidade, moradia, transporte e segurança alimentar. Trata a região central como lata de lixo, e então exige, uma vez a cada 365 dias, que todos compareçam de terno e gravata, tomando clericot e pedindo que, por obséquio, a polícia mantenha seus cassetetes em repouso. Sem noção.
Finalmente, para aplacar as críticas sobre o mirrado número de atrações e manter a população no nível mínimo de atividade intelectual, a Secretaria de Cultura investe o dinheiro público em atrações fáceis, presentes em qualquer evento privado organizado às pencas. Novos artistas, que precisam de espaço, ou os provocadores, propositores e inacessíveis, nem pensar.
A menos de 15 dias do evento, a organização divulgou uma programação com os nomes “já confirmados” — 70 em 18 palcos. Historicamente, a Virada Cultural já teve mais de 400 atrações. E pera lá! Como assim, “já confirmados”? O resto do line-up será divulgado quando?
A bagunça na comunicação arrebenta com qualquer potencial turístico do evento, já na UTI, uma vez que ninguém toparia viajar e se hospedar na cidade para escolher apenas um dos quase 20 palcos distantes um do outro. Não é mais possível transitar entre linguagens e culturas diferentes, graças à Prefeitura de São Paulo.
É de chorar.
Abaixo, a localização dos palcos e as atrações confirmadas até agora.
Palco Anhangabaú
Dia 18
17h – Léo Santana
20h – Joelma
Palco São João
Dia 18
18h30 – Àttooxxá e Karol Conká
Dia 19
0h30 – Kannario + Baile da DZ7
3h30 – Deekapz e Mu540
14h – Cassiane
Palco Parelheiros
Dia 18
17h – Banda Mel
19h – Planta e Raiz
21h – Veigh
Dia 19
11h – Duo Badulaque
13h – Eliezer de Tarsis
17h – Raça Negra
Palco Campo Limpo
Dia 18
19h – Elba Ramalho
Dia 19
13h – Trupe Trupé
Palco Rio Diniz
Dia 18
20h – Marcelo e Rayane
Dia 19
10h – Território do Brincar
16h – Arlindinho
Palco Capela do Socorro
Dia 18
17h – Roberta Miranda
Dia 19
13h – Circo Spacial – Uma Parada Mágica
17h – Solange Almeida
Palco Guarapiranga
Dia 18
18h – Billy SP
20h – Ilê Ayê
Dia 19
10h – Circo Spacial – Uma Parada Mágica
14h – Ton Carfi
Palco Heliópolis
Dia 18
19h – Francy
21h – Júnior Vianna
Dia 19
17h – Silvanno Salles
Palco Rio Ipiranga
18h – Caio Costta
20h – Maneva
Dia 19
14h – Thalles Roberto
Palco M’Boi Mirim
Dia 18
17h – MC Davi
19h – Paula Matos
Dia 19
13h – Sainha de Chita
15h – Kemilly Santos
Palco Itaquera
Dia 18
17h – Major RD
19h – Vulgo FK
Palco São Miguel
Dia 18
17h – MC Paiva
19h – Toni Garrido
Dia 19
15h – Geraldo Azevedo
Palco Itaqueruna
Dia 18
18h – Maskavo
20h – Marcos e Belluti
Dia 19
14h – Padre Alessandro Campos
Palco Butantã
Dia 18
18h – Baile do Simonal e Leo Maia
Dia 19
13h – Queen Live Kids
15h – Eli Soares
17h – Rastapé
19h – Maria Rita
Palco Pirajussara
Dia 18
18h – Lia de Itamaracá e Natasha Falcão
20h – Brisa Flow
Dia 19
10h – Território do Brincar
14h – Victin
Palco Freguesia do Ó
Dia 18
17h – Edi Rock
19h – Marvill
Dia 19
13h – Banda Fera Nenem
15h – Nicoli Francini
Palco Rio Piatã
Dia 18
18h – Marquinho Sensação
Dia 19
14h – Sarah Beatriz
16h – Sandra de Sá
Palco Parada Inglesa
Dia 18
19h – Xamã
Dia 19
13h – Abrakbça
15h – Bruninho e Davi
Palco Cidade Tiradentes
Dia 18
17h – Vou Pro Sereno
21h – Cortejo Afro
Dia 19
11h – Marcados
12h – Funk SPzinho
13h – Maria Cecília & Rodolfo
15h – Dexter e Salgadinho
17h – Psirico
19h – MC Hariel