Madonna Foto: Marcos Hermes/Divulgação

Opinião: Polarizar Madonna com RS é hipocrisia e desinformação

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Velhos preconceitos têm dado o tom no debate público por aqui

No último sábado, Madonna levou à praia de Copacabana 1,6 milhão de pessoas para um show gratuito, com cachê e estrutura pagos em sua maior parte por um dos grandes bancos brasileiros, celebrando seus 40 anos de carreira. Enquanto isso, o estado do Rio Grande do Sul atravessa a maior catástrofe climática de sua história, com milhares de desabrigados e uma enorme crise sanitária provocada pelas águas sujas e o desabastecimento.

A prefeitura do Rio de Janeiro começou a fechar a conta do show já na última segunda-feira. Aumento considerável de faturamento em hotéis, companhias aéreas, aplicativos de transporte, supermercados e restaurantes. O show criou, em maio, um final de semana com entrada de dinheiro comparável ao Réveillon. A cantora, sob sigilo, doou 10 milhões para os desabrigados do RS, segundo o colunista Erlan Bastos.

No Rio Grande do Sul, outras doações chegavam de todas as partes do Brasil. Um corrente de amor ao próximo, fruto de campanhas feitas por órgãos públicos, privados e até individuais, comandadas por celebridades, artistas e influenciadores. Dinheiro, água, remédios e mantimentos estão sendo pedidos, através das redes sociais.

Infelizmente, o lado vil e inescrupuloso das mesmas redes sociais também entrou em ação, com tanta rapidez e voracidade quanto as chuvas no sul. A internet está alagada de hipocrisia e má-fé.

Golpes divulgando contas bancárias falsas, utilizando a facilidade do pix, foram divulgados para tirar dinheiro de quem estava disposto a ajudar. A desinformação correu solta, com vídeos de tragédias em outros países sendo divulgados como vindos do Rio Grande do Sul. Posts denunciavam falsamente que o cachê do show de Madonna havia sido pago com verbas públicas (quando, na verdade, a prefeitura do RJ e o governo do estado pagaram por uma parte menor do espetáculo: R$ 10 milhões cada).

O uso político da coincidência de datas adicionou doses insuportáveis de hipocrisia a este mar de lama. O senador Flávio Bolsonaro divulgou em suas redes uma montagem em que a primeira dama (que não foi ao show) dançava sobre uma região alagada. Em uma catástrofe passada, no mesmo estado, seu pai passeava de jet ski pelo lago Paranoá enquanto pessoas carentes perdiam tudo o que tinham para as enchentes.

Simbolicamente, a moto aquática protagonizou uma das mais comoventes ações voluntárias para ajudar as vítimas deste ano. Pedro Scooby, surfista profissional, juntou uma turma de pilotos de jet ski acostumados às condições extremas das ondas gigantes dos campeonatos de surfe, e os levou para ajudar a resgatar pessoas e animais nas regiões mais remotas do estado.

Igualmente hipócritas, milhares de simpatizantes se posicionaram, achando absurda a atitude da realização do show de Madonna, planejado durante meses (tanto pelos produtores quanto pelos que viajaram ao Rio), durante a catástrofe climática. Obviamente, tais alvoraçados internautas estavam pouco se lixando com o sofrimento alheio. Afinal, nada fizeram quando um presidente fazia piadas com 700 mil mortos na epidemia da covid-19 (até o fechamento deste artigo, no RS, faleceram 83 pessoas).

O que indignou muita gente, na verdade, foi a sequência de tapas na cara que a cantora preparou para o público brasileiro, dando ao show uma importância muito maior do que a música, ponto central do evento de entretenimento gratuito à sua audiência. Nada de novo, quando se fala em Madonna. A cantora levantou a bandeira da aceitação entre os diferentes, vestida com a camisa da seleção brasileira de futebol, símbolo sequestrado da nação, fartamente usada em manifestações conservadoras.

Hipócrita, também, está sendo a anuência aos principais responsáveis pelo gerenciamento de crises climáticas, os prefeitos e governadores estaduais, que pouco ou nada fizeram para reduzir seus danos, sabendo que viriam (e virão) cada vez mais violentas. E que se faça justiça: o Rio de Janeiro também tem sofrido com catástrofes, dando aula de inaptidão.

Extraindo o óbvio, que é o poder que a cultura tem em formar na sociedade o pensamento crítico e a capacidade de discernimento, vamos falar, aqui, somente sobre grana. Já está provada por A+B a potência financeira da indústria cultural no Brasil. O dinheiro que entra em uma cidade que sedia grandes eventos chega rápido e, o mais importante, é pulverizado automaticamente.

Prefeituras, donos de hotel, restaurantes, botecos, vendedores ambulantes, todos recebem à vista, no dia, os milhões trazidos pelos frequentadores de shows e festivais. Milhares de empregos temporários e toneladas de horas extra para quem já trabalha no segmento geram, também, oportunidades rápidas, com remuneração instantânea.

Estudos apresentados pela FGV também comprovaram que as tão surradas leis de incentivo fiscal, como Rouanet, Aldir Blanc e Proac, são um excelente negócio para a sociedade brasileira. Cada 1 real em renúncia fiscal geral 1,59 em impostos! São dados. Teclas exaustivamente marteladas na imprensa séria. Assim como os alertas climáticos feitos pela comunidade científica o tempo todo, há anos.

O último final de semana nos mostrou que, sobre aquecimento global e entretenimento, ainda temos muito o que aprender.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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