Madonna Madonna e Pabllo Vittar. Foto: Reprodução/Instagram

O efeito Madonna: show em Copacabana devolveu a camisa da Seleção ao povo

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Uma noite linda para ser brasileira

Quem estava lá, viu e viveu. Neste sábado (04), Madonna, maior ícone pop de todos os tempos, fez muito mais do que um show; trouxe um resgate da autoestima de ser brasileiro.

O momento de explosão do orgulho nacional veio com a participação da drag queen-mor do país, Pabllo Vittar, que subiu ao palco de mãos dadas com a Rainha do Pop, acompanhadas por uma bateria formada por jovens de 12 escolas de samba do Rio. Com o elenco todo vestindo camisas da seleção, performaram uma versão bem morro carioca de Music, música que começa com a frase que poderia servir como resumo dessa noite histórica: “music makes the people come together/music mix the bourgeoisie and the rebel” (“música faz as pessoas se juntarem/música mistura a burguesia e os rebeldes”).

O contexto em que o evento aconteceu é importantíssimo para entender a amplitude da sua mensagem. Foi na praia de Copacabana, que já foi palco de shows igualmente lotados, como os de Rolling Stones, Jorge Ben e, o recorde de público até hoje, o de Rod Stweart no Réveillon de 1994, que reuniu mais de quatro milhões de pessoas.

Mas ontem a pauta transcendia a celebração de 40 anos de carreira de Madonna, e ela sabia muito bem disso. Com certeza acompanhou a mudança de vibe desse pedaço do Rio de Janeiro que virou célebre nas vozes de tantos ídolos da música. Nos últimos anos, o terreno passou a ser palco de passeatas fascistas, e a música perdeu lugar para o ódio e a intolerância.

 

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A Rainha, então, trouxe suas armas pra jogo e convocou seus melhores soldados. Começando pelos filhos, David, Mercy e as gêmeas Stella e Estere. David surgiu tocando guitarra em vários momentos, e brilhou fazendo uma homenagem a Prince; Mercy tocou lindamente em Bad Girl, num piano de cauda com a mãe sentada a seu lado; e as gêmeas arrasaram como dançarinas, com atenção especial para as habilidades de Estere dançando Vogue e discotecando.

Além da família, é preciso falar da direção de arte do brasileiro Ricardo Gomes. Lembrando Salvador Dalí, sua ilustrações “derretidas” eram perfeitas para tangibilizar o discurso de Madonna, a mãe dos imperfeitos, dos pretos, das mulheres e dos LGBTs desde que o mundo é mundo.

A narrativa do show está mais para um musical, em que a cantora se desdobra em dois personagens: a Madonna atual, essa mulher absudamente linda e pontente na maturidade, e a Madonna do início da carreira, representada por uma bailarina mascarada, que ela apresentou ao público como uma “menina ingênua, idealista, ridícula, verdadeira e que tinha um sonho”.

Madonna

Visão aérea de Copacabana durante o show. Foto: Fernando Maia/Riotur/Divulgação

Esse sonho se transformou na carreira de uma das artistas mais potentes que já viveram, e que, ao longo de duas horas, apresentou em uma performance sofisticada, queer, teatral, cênica e muito bem dirigida, a sua vida e obra. Em suas muitas falas, ela deixou o recado: “comunidade LGBT, eu sou muito grata a vocês! E não tenham medo, nunca! Vou lutar por vocês até a morte!”.

Ainda teve participação especial de Anitta, no momento do show que emula um baile vogue, a cultura dos balls nova-iorquinos, que são uma espécie de concurso de fantasia e dança, onde os participantes recebem notas e voltam para casa com troféus e a autoestima em dia. Sentadas em cadeiras, as duas distribuiram notas 10, receberam uma simulação de sexo oral, riram e se abraçaram. Imaginei a gritaria nas salas dos conservadores que estavam ligados na Globo, canal que transmitiu o show ao vivo.

Beijo gay, várias simulações de sexo (inclusive envolvendo Madonna e seu alter-ego na icônica cama de veludo), a celebração da maior drag queen do Brasil, a própria cantora lascando um beijão numa de suas bailarinas… O que para muitos pode ter sido entendido como safadeza gratuita, teve muita razão de ser.

Madonna

Foto: Marcos Hermes/Divulgação

Há pouco mais de dois anos, passamos relando na trave de continuarmos sob o regime de um governo fascista. Preconceitos em alta, cultura em baixa, nossa camisa da Seleção Brasileira lá no fundo da gaveta ou como pijama. Foram quatro anos vivendo uma baixa na autoestima sem precedentes.

O show foi muito mais do que um belíssimo espetáculo de música, dramaturgia e experiência audiovisual. Foi o resgate da nossa força como nação miscigenada, livre, feminista, progressista, solidária, mãe gentil que cuida em vez de ameaçar, que ama em vez de perseguir.

Madonna nos devolveu o verde e amarelo, e isso vale muito mais do que os milhões que foram investidos no show. Que a gente faça jus ao amor e força que ela trouxe. Foi uma noite linda para ser brasileira.

Claudia Assef

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Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

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