Review: O Grammy das mulheres, e da música contra a polarização social
Repleto de simbologias, o 66º Grammy Awards rolou nessa noite de domingo (04), na Crypto.com Arena, em Los Angeles
Como um filme marcante, o Grammy Awards 2024 foi repleto de narrativas que deslizaram pelas frestas da cerimônia. Notícias sobre um novo mundo e de como a música nos leva a acreditar que a arte, e nada mais, é o mais poderoso motor das mudanças que importam, as que vêm de dentro.
Os prêmios são um extrato da indústria. Importantes, um termômetro de mercado. Mas é nas apresentações e homenagens que fluxos invisíveis vão tomando conta do seu público, e dando conta dos recados.
Nas premiações, o Grammy foi dominado pelas mulheres. Ganharam tudo, de goleada, ajudando o evento a tabular sua reparação histórica, uma vez que a academia já cometeu o absurdo de não ter indicado uma só mulher nas categorias mais importantes, em anos passados. Parece que o jogo virou.
Já nos encontros e apresentações em cima do palco, o mundo parece estar comunicando, através da música, que todos estão ficando de saco cheio da desunião provocada pela polarização social que assolou a última década. O cantor country Luke Combs se emocionando ao lado de Tracy Chapman. Stevie Wonder homenageando Jimmy Buffett e Tony Bennett. Só não entende quem não quer.
A 66a. edição do Grammy Awards foi marcada por encontros necessários e reconhecimentos urgentes. Tem algo acontecendo na academia. Por tabela, no mundo da música. Algo que veio das ruas.
A largada
Dua Lipa foi a responsável pela apresentação de abertura, azeitada como se deve ser num compromisso desta monta. Mas nada diferente do que já foi feito inúmeras vezes em cerimônias anteriores. O doido da apresentação da cantora foi que, 15 minutos antes de subir ao palco, ela estava conversando ao vivo com Carol Ribeiro, da TNT, no tapete vermelho. Rápida, ela!
Trevor Noah, apresentador destacado para a função de mestre de cerimônia, começou mostrando certo poder de imã de atrazildos. Chegou à mesa de Meryl Streep para saldá-la e só então percebeu que ela não tinha chegado. Quando a câmera se abre, podemos ver Strip correndo lá atrás, rumo à sua cadeira, com sua característica elegância e bom-humor. Depois de cumprimentá-la, partiu para Taylor Swift e — ban! — ela não tinha chegado também.
Após uma ou duas zoadinhas, vemos a namoradinha dos Estados Unidos deslizar pela plateia em traje de gala, como uma princesa rodeada de mancebos. Vindo de Swift, talvez o atraso tenha sido friamente calculado, para fins de efeito dramático.
Noah também nos lembrou de quão grande está a treta entre a Univesal Music e o TikTok, passando um verdadeiro sabão na rede social que mais cresce no mundo. Vale lembrar, há um componente EUA x China embutido aí. “Parem de ferrar a vida dos artistas, TikTok!” — disse o apresentador — “essa missão já é do Spotify!”.
A saber, na semana passada, depois de um desentendimento por direitos autorais, a Universal retirou seu gigantesco catálogo do TikTok, tirando do ar até mesmo vídeos anteriores ao desentendimento. O rompimento foi seguido de fortes declarações das duas partes, com direito a ofensas dignas de uma briga de porta de escola. Incomum no mundo dos negócios.
Prêmios e performances
Miley Cyrus abriu os trabalhos levando o prêmio de Melhor Performance Solo Pop e agradecendo com um esquisitíssimo discurso sobre borboletinhas pousando no nariz. Primeiro mico dos videntes do Music Non Stop, que previram Taylor Swift como vencedora.
Luke Combs regravou Fast Cars, música de Tracy Chapman que seu pai cantava para ele em viagens que faziam de carro. Num dos grandes momentos da noite, a mestra Chapman subiu ao palco com seu violão. Cantaram juntos, num dueto de arrepiar, e que vai ficar para história do Grammy, principalmente por mostrar o caipira branco rendendo homenagens à negra cosmopolita, urbana, através da arte. Há uma lição nas entrelinhas.
A segunda apresentação ficou por conta da sensação da noite, SZA, de origens muçulmanas e um R&B de responsa. Tanto que, antes do início das transmissões (quando são entregues os troféus aos vencedores da maior parte quase cem categorias), ela já tinha descolado sua primeira estatueta, de Melhor Álbum de R&B Progressivo. Kill Bill, a música que interpretou, foi inspirada no filme de Tarantino e surpreendeu a plateia com uma performance de espada japonesa com uma atriz negra, resignificando a personagem de Uma Thurman.
Billie Eilish, frequentadora assídua dos corredores do Grammy (é uma das ganhadoras do Big Four, as quatro categorias mais importantes), apresentou a música com a qual concorria: What I Was Made For, tema de Barbie, que já havia recebido o troféu de Melhor Música Feita Para Audiovisual. Como de costume, chegou pisando pequeno, com uma apresentação intimista, com piano, sexteto de cordas e voz. Importante, em uma época em que as apresentações das cantoras pop são tão processadas, que fica difícil reconhecer quem canta meeeesmo. Eilish sabe disso.
Miley Cyrus subiu ao palco para interpretar (a já premiada) Flowers, fantasiada de Tina Turner. Cabelo, vestido, trejeitos, coreografias e até alguns traquejos de voz. Uma homenagem não anunciada, e bem-vinda a uma das grandes divas do soul.
Melhor música de R&B é uma das categorias mais celebradas do Grammy. Seu trofeú está na casa de artistas como Prince e Stevie Wonder, e mais uma vez quem subiu ao palco foi SZA, por Snooze. A artista vai se consolidando como a grande estrela da noite. Bastante emocionada, SZA fez um dos discursos mais ininteligíveis.
Seguindo a série de apresentações, Olivia Rodrigo, outra bem cotada em diversas categorias, subiu ao palco para cantar Vampire, representando o jeito de cantar oriundo da country music que tanto influenciou boa parte do pop e do rock estadunidense, seara de de Taylor Swift, que mais uma vez ficou de pé, cantando junto, com a intenção de mostrar a todos como é superbacana e apoia novos talentos.
Pela primeira vez, a casa de shows ultratecnológica em forma de bola de Las Vegas, a Sphere, permitiu filmagens em seu interior, para transmitir ao vivo uma apresentação especial do U2 para a cerimônia. A infra do lugar é realmente impressionante, e a parceria com o Grammy vai ajudar a casa a sair do vermelho, já que ainda não conseguiu dar boas notícias a seus investidores, apesar de já ter sediado shows históricos. Foi Bono, após o show, quem apresentou os indicados a Melhor Álbum Pop.
No nosso primeiro acerto, Taylor Swift levou o trofeu de Melhor Gravação. Sabendo que havia algo muito maior ali em jogo (disputava, mano a mano, vários recordes nas premiações), suas primeiras palavras no palco foram “este é meu 13º Grammy”, que pode ser traduzido, também, por “chupa, Billie!”. Aproveitando os holofotes, anunciou o lançamento de seu novo álbum para 19 de abril.
Stevie Wonder subiu ao palco, ou melhor, desceu do Olimpo dos grandes nomes da música, à frente de seu inseparável piano, fazendo uma linda homenagem ao compositor Jimmy Buffett. Altamente jazzístico, emendou um piano-dueto virtual com Tony Bennett. Claro que arrepiou todo mundo. Mais uma vez, negros e brancos juntos. No telão, imagens de ícones como a nossa Astrud Gilberto, Harry Belafonte, Less McCann e diversos ícones da história da música deram as graças, em uma apresentação curta, porém muito emocionante. Até Jane Birin, Sinéad O’Connor, Burt Barcarath e Wayne Krammer foram lindamente homenageados, agora com Annie Lennox cantando Nothing Compares To U. Definitivamente o momento mais emocionante da noite.
Lenny Kravitz entregou o troféu Trustee Awards ao padrinho da black music, Clarence Ewans. Para homenageá-lo, Jon Batiste cantou, também ao piano, Ain’t No Sunshine e Lean On Me, enquanto mais lendas da música, que nos deixaram, voavam pelo telão. O indicado ao Grammy fechou com sua canção Optmistic.
Oprah Winfrey louvou a rock’n’roll goddess, Tina Turner, que já havia sido belamente homenageada por Miley Cyrus. Para reinterpretar um de seus mais famosos números, Rolling On The River, Fantasia Barrino subiu ao palco. Na plateia, não havia quem estivesse mais sentado.
Depois de uma pausa para que o rio de lágrimas fosse devidamente secado, Noah Jones entregou a Jay Z o recém-criado prêmio Dr. Dre (presente na cerimônia) Global Impact Award, pelos bons serviços prestados ao rap. Aproveitou seu momento de palco para espetar o Grammy: “Tem gente aqui que vai voltar para casa se sentindo roubada, tem gente que foi mesmo roubada, e tem gente que nem pertence à categoria da qual foi indicada”.
Aproveitando o recente lançamento do documentário sobre We Are The World (que já ganhou o prêmio da categoria), Lionel Richie foi chamado ao palco para a primeira categoria dos Big Four, Música do Ano. E o trovão foi para Billie Eilish, que compôs a música What I Was Made For ao lado do irmão Finneas. Barbie realmente dominou o mundo!
Compositora de mão cheia, Joni Mitchell subiu ao palco, aos 80 anos de idade. Após 56 anos de carreira, ganhou o prêmio de Melhor Álbum de Folk, e cantou, linda e real, Both Sides Now. Há algo de especial nesta edição do Grammy Awards. Os músicos à sua volta, no palco, não tocaram olhando para a plateia, mas para Mitchell.
Travis Scott, monstro multimídia do novo rap, foi o responsável por mais uma apresentação na noite — inodora, comparando com o que havia acontecido há poucos minutos no mesmo ambiente. Um resfriamento necessário para o que aconteceria a seguir, quando o presidente da academia Harvey Mason Jr. subiu ao palco.
O elo que sempre uniu a humanidade
Greathouse disse, ao final da cerimônia: “a música sempre foi o elo que uniu a humanidade”, para então apresentar um quarteto de cordas formado por um palestino, um judeu, um árabe e um muçulmano. “Assim como em um quarteto de cordas, juntos, atingem resultados que, sozinhos, jamais conseguiriam alcançar.”
O elo que sempre uniu a humanidade.
A partir de sua terceira hora, a cerimônia entrou no modo escola de samba, quando está estourando o tempo de desfile. E ainda faltavam seus principais carros alegóricos. Horas antes, Noah havia pedido aos vencedores para encurtarem seus discursos. Victoria Monét levou, merecidamente, o gramofone de Artista Revelação, e foi tesourada em seus agradecimentos.
Chega, enfim, a medalha de Melhor Gravação do Ano, apresentada por Meryl Streep e, adivinhem só, Miley Cyrus, para surpresa de todos, levou pra casa, batendo Taylor Swift e Billie Eilish. Hannah Montanah fazendo história. A história da heroína, que saiu do seio da família americana, perambulou pela doideira, e voltou para a casa, vencedora de todas as batalhas.
“Acho que não esqueci de ningúem… Talvez da minha calcinha”, encerrou Cyrus.
Ainda faltava a categoria mais cobiçada da indústria, a de Melhor Álbum do Ano, consolidadora de carreiras e perpetuadora de artistas nos livros de história da indústria da música global. Garantidora de cachês milionários e contas pagas por mais alguns longos anos.
Coube a Celine Dion a missão de anunciar os indicados ao prêmio, que foi para…
(pausa dramática)
Taylor Swift, conforme vos avisaram nossos videntes do Music Non Stop — um de nossos raros acertos. E entrou para a história, como a única artista a ganhar o troféu de Melhor Álbum quatro vezes.
Em um evento que teve a simbólica mensagem de união, nada mais esperado que encerrar a noite agraciando a “única pessoa capaz de unir os Estados Unidos”.