Vai-Vai Foto: Reprodução/Facebook

“O samba e o rap têm o mesmo DNA”: Como a Vai-Vai levou o hip-hop brasileiro à avenida

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Já histórico, desfile celebrou a grande expressão cultural das periferias

O carro alegórico que seguia a bateria da escola de samba paulistana Vai-Vai no desfile deste ano representava um DJ gigante, com fone de ouvido e mãos nos toca-discos. Distribuídos pelos carros, pioneiros do hip-hop, como Thaíde e MC Jack, sambavam sorridentes, cantando o Samba-Enredo 2024 – Capítulo 4, Versículo 3 – Da Rua e do Povo, o Hip-Hop: Um Manifesto Paulistano.

No chão, integrantes do mais importante grupo de rap brasileiro, Racionais MC’s, cujo nome de uma das músicas encabeçava o samba-enredo (Capítulo 4, Versículo 3), se dividiam entre as funções de puxadores e bateria.

Em uníssono, cantavam:

Renegados da moderna arte
Não faço parte da elite que insiste em boicotar
Acharam que eu estava derrotado
Quem achou estava errado
Corpo fechado, sou cultura popular
Meu verso é a arma que dispara
E a palavra é a bala pra salvar

Vai-Vai

Mano Brown no desfile da Vai-Vai. Foto: Reprodução/Facebook

A música ainda fazia referências à Estação São Bento do Metrô, onde os primeiros aficionados pelo hip-hop se encontravam para suas danças e rimas, no início dos anos 80, e ao preconceito sofrido pelos “renegados da moderna arte”.

A polícia ficou cabreira, a ponto de divulgar uma carta aberta reclamando da “demonização da classe”. Foram obrigados a relembrar os tapões na cara que davam na molecada durante as batidas policiais, à constante classificação dos dançarinos de break como “vagabundos” e do Massacre do Carandiru.

O resto da sociedade, por sua vez, precisou refletir sobre o quanto demoram para reconhecer movimentos artísticos periféricos como legítimos. Seja aqui ou em qualquer parte do mundo, a galera “do lado de lá da ponte” precisa enfiar goela abaixo (muitas vezes conquistando a paixão dos filhos dos ricos) até ter voz e espaço dentro do meio.

“O desfile da Vai-Vai foi histórico e mexeu em muitas feridas atuais do nosso dia a dia quando traz o Borba Gato, o Ministro dos Direitos Humanos [pedindo socorro] e uma polícia que não dá paz às marginais [as periferias], estando os negros certos ou não. O hip-hop merece essa e outras honrarias, e tenho certeza que, desde que o livro Sobrevivendo no inferno tornou-se obrigatório no vestibular da Unicamp, é um caminho de reconhecimento sem volta — pelo menos, para a maioria da população, ciente de seus direitos, que é marginalizada ao mesmo tempo em que é eleitora e consumidora”, contou Eliane Dias, CEO da produtora Boogie Naipe e esposa de Mano Brown, ao Music Non Stop.

Vai-Vai

Foto: Reprodução/Facebook

O poder transformador da cultura hip-hop entre os jovens das comunidades sempre foi absurdo, principalmente na questão da formação de pensamento crítico. Na avenida, se fundiu com outra força tremenda: a liberdade das escolas de samba em seus enredos.

Há poucos movimentos culturais tão puros e incorruptíveis (no que diz questão aos temas) quanto o das escolas. Sobrevivem desde 1968, ano do primeiro desfile paulistano, na Av. São João, com a política de que “no nosso discurso, ninguém mete a mão”. Sejam políticos ou empresas. A outra cena cultural que segue com os mesmos valores, touché, é a do hip-hop.

Eugênio Lima, DJ, MC, ator e pesquisador da cultura afro-diaspórica, também em um papo conosco, falou sobre os legados deixados pelo desfile:

“A ideia da memória, da ancestralidade e da transformação. A memória, porque constrói um pensamento estético, poético, político e musical desses 50 anos do hip-hop no mundo, e 40 anos no Brasil. A outra coisa é a ancestralidade, lembrar que o samba e o hip-hop têm um DNA comum. Ambos são afro-diaspóricos, e aqui no Brasil essa união entre eles se deu de maneira muito exuberante. A ideia da escola de samba e a escola de rua, a cultura do samba e a cultura da rua… E finalmente, a transformação. Como a gente atua ainda para uma política do futuro”.

Vai-Vai

Foto: Reprodução/Facebook

E seguiu:

“O desfile joga a luz de que o hip-hop é uma maneira de ver o mundo, que está no Brasil há 40 anos. Talvez seja o maior fenômeno urbano desse tempo”.

“É sobre o legado dos Racionais e dos nossos grandes MCs, mas também é sobre como isso possibilitou a uma nova forma de uma juventude urbana, majoritariamente negra e periférica, transformar. O desfile fará as pessoas lembrarem, mas também vai elucidar que os racismos, os sexismos, as transfobias, as homofobias estão latentes. E é bonito de ver quando o Carnaval assume a ideia de colocar luz sobre isso. Uma frase no carro da Vai-Vai dizia: ‘o distanciamento social sempre existiu, bem-vindo ao Brasil’.”

O toca disco, o tambor, o grafite, a alegoria, o MC e o puxador, as b-girls e as passistas, todos juntos e misturados em um desfile que entrará para a história.

A Vai-Vai ficou em oitavo lugar, e a primeira posição no pódio foi da Mocidade Alegre. No entanto, no quesito Educação Social, é a grande campeã do Carnaval 2024.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.