Monique Gardenberg Monique Gardenberg. Foto: Divulgação

“No C6 Fest, tentamos reproduzir o Free Jazz Festival nos mínimos detalhes”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Claudia Assef e Jota Wagner falam com Monique Gardenberg, a “curadora de curadores” — e que tem no currículo nomes como Madonna, Kraftwerk, The Rolling Stones e James Brown

“A curadora de curadores”, a “adestradora do impossível” e, certamente, uma das maiores diretoras artísticas da América Latina. A descarada rasgação de seda por parte dos entrevistadores do Music Non Stop, Claudia Assef e Jota Wagner, tem fundamento matemático. A lista de artistas que Monique Gardenberg, junto da irmã, Sylvia Gardenberg, trouxe ao Brasil, é inacreditável.

 

Monique, Sylvia e sua equipe da Dueto Produções (que inclui gênios como Hermano Vianna) convenceram nomes como Ray Charles, James Brown, Chuck Berry, Madonna, Kraftwerk, Underworld, Sonic Youth, Massive Attack, Rolling Stones e Elton John a desembarcar no aeroporto de Guarulhos, cheios de pilha, para shows que se tornaram históricos no país. Muitos deles, pela primeira vez.

A diretora artística, que também é cineasta e produtora de teatro, tem nas costas uma lista de festivais que entraram no coração dos paulistanos — os míticos Free Jazz Festival e Tim Festival. Agora, está à frente do C6 Fest, que ocupará o Parque do Ibirapuera entre os dias 17 e 19 de maio.

Segue fazendo, portanto, o que faz bem. Com quase 40 anos dirigindo por essa estrada, Gardenberg jamais se curvou a dificuldades técnicas, gênios difíceis ou má vontade. Já viu membros de sua equipe sendo levantados pelos colarinhos por agentes brutamontes, teve de montar palco extra na última hora para obedecer exigências técnicas e comandou articulações capazes de fazer com que Quincy Jones virasse garoto de recados.

Cara de pau, persistência e paixão. Alguns dos segredos que ela nos revela nesta divertida entrevista para explicar a constelação que já passou por seus cuidados em terras brasileiras. Na música, Monique e Sylvia são garotas prodígio. Estavam batendo de frente com os casca grossa do jazz mundial ainda com 25 anos de idade. Antes disso, a primeira já havia trabalhado com Milton Nascimento, Djvan e Marina Lima, como tour manager e empresária. Quando pintou uma folga, resolveu estudar cinema em Nova Iorque e meter no bolso uma respeitada filmografia como diretora, que inclui o clássico brasileiro Ó Pai, Ó (de 2007). No teatro, trabalhou com Zé Celo, Pedro Cardoso e Bia Lessa, para citar alguns.

A profissional é dona de uma carreira cuja conta não fecha. Como pode alguém, em tão pouco tempo de vida, ter feito tanta coisa? Terminamos a entrevista sem essa resposta. Mas falamos sobre a dificuldade em fazer festivais, lidar com gênios e as delícias e agruras em botar de pé eventos que se tornam históricos. Durante toda a conversa, uma dúvida não saía da nossa cabeça: “Será que essa mulher consegue, pelo menos, ver os shows que produz?”.

Pois a resposta é “não todos”. Como um presente de fim de papo, Monique Gardenberg contou pra gente quais são as apresentações que ela decidiu que vai assistir no C6 Fest 2024. Confira!

Claudia Assef: No C6 Fest, vemos semelhanças óbvias com a trajetória do Free Jazz e do Tim Festival. Uma marca registrada sua: line-up ousado, diverso, resgatando coisas que, às vezes, as pessoas nem lembravam que existiam. O que você busca com essas misturas musicais?

Monique Gardenberg: Tudo já se anunciava um pouco quando começamos o Free Jazz Festival, ainda no Hotel Nacional e no Palace. Eu queria colocar coisas que não eram exatamente jazz, como o Philip Glass, em 87, John Lurie e os Lounge Lizards… Atrações que furavam um pouco esta definição de jazz, como a própria Nina Simone. Depois, trouxemos James Brown, Chuck Berry, Little Richard… Com o Jamiroquai abrimos o leque mesmo, e também com o Kraftwerk.

Mesmo que ainda tivéssemos um palco só de jazz, começamos a ter pitadas de inquietação. Nessa época, éramos somente eu, a Sylvia, Zuza, Paulinho e Zé. Quando começou a ter a coisa pop, rock, foi a partir de 1995. Antes disso, era mais fiel ao jazz, com alguns desvios e quebras.

Quando o Free Jazz Festival fez dez anos, resolvemos abrir de vez. Convidei Hermano Vianna e Ronaldo [Lemos] para criarem duas curadorias [de pop e de música eletrônica, respectivamente], e elas tiveram muito sucesso com o público. Aos pouquinhos, acho que fomos ganhando a confiança das pessoas. No C6 Fest, isso ainda está se criando. A segunda edição está crescendo, e vai crescer ainda mais.

Claudia: E como é que você construiu essa “pessoa curadora”? O que diria para alguém que gostaria de ser um curador?

Eu diria que faço mais uma direção do que uma curadoria. Não me sinto capaz. Claro que eu falava para minha equipe: “tem de vir Björk. Precisamos do Philip Glass”. Alguns nomes me chamam muita atenção, caso da Raye agora. Então, normalmente a curadoria levanta os nomes e a gente fica numa longa discussão em torno de várias opções até enviar a primeira leva de convites.

Na primeira tentativa, algumas coisas dão certo e outras não, o que nos faz começar tudo de novo várias vezes. Eu acho que a curadoria é incessante, porque um só artista não pode desmontar todo o conceito que você criou. Trata-se de confiar que somos capazes de encontrar coisas bacanas e ter uma narrativa para cada palco. Tem muita coisa que podemos chamar de jazz e é muito novo. Charles Lloyd é uma coisa óbvia, um deus, mas tem muita coisa no elenco que se diz jazz e não é necessariamente. Mas conta essa história.

A palavra que eu definiria para a curadoria de jazz é “rigor”. Rigor na escolha musical. Às vezes sugiro uma coisa e Zé Nogueira e Pedrinho Albuquerque [curadores do palco jazz do C6 Fest] me respondem: “eu sei que ganharam o Mercury [Prize], mas estão imitando, é uma versão de fulano de tal, não é original”. Há um crivo muito rígido.

Claudia: E na curadoria do pop? O Hermano Vianna ainda segue no time?

Este ano temos o Hermano, o Ronaldo e o Felipe Ischi. O trabalho é intenso, porque tem mais artistas. Foram nomes que disputamos entre vários festivais, outros em que é preciso combinar agenda, gente que temos de convencer a vir para o Brasil…

Agora, muitos já estão sabendo do C6 Fest e já nos avisam quando estão fechando datas na América Latina, e isso ajuda a viabilizar. Mas no primeiro ano, a gente pegou todo mundo de surpresa. E foi uma sorte a gente ter conseguido montar aquele line-up.

A vantagem de fazer um festival para dez mil pessoas é que os artistas sabem que serão escutados. É uma coisa mais voltada para a música, e não para a “experiência”. Claro que é muito gostoso, estaremos no Parque do Ibirapuera, um clima maravilhoso, mas o foco é a música.

E Hermano é nosso mestre, né? Não para, pesquisa diariamente… Eu falo para ele: “assim que acabar o festival eu vou tirar três dias para ouvir tudo o que você me manda”. Ele é uma pessoa com um conhecimento muito grande, mas também de uma percepção muito boa. Não é um purista, nem vítima da vanguarda. Gosta de tudo. Ronaldo também é assim. Conhece tanto a música mais comercial quanto a mais cabeçuda.

Eu aprendo muita coisa, porque não tenho a disciplina que eles tem, de pesquisar o tempo todo. Também faço teatro, cinema, e o fato de estar conhecendo algo novo me fazer aprender coisas que, de outra forma, não conheceria. Meu talento, como diretora, é amarrar este furacão de curadores, pesquisas e de pessoas.

Jota Wagner: Uma curadora do todo…

É, uma espécie de direção.

Jota: Se considerarmos seus feitos como Soft Cell pela primeira no Brasil, Kraftwerk também, Björk no auge da carreira, te colocamos na alcunha de adestradora do impossível. Atrações que não se espera, que assustam. Qual o segredo para conseguir esses grandes artistas? Cara de pau? Insistência?

Acho que é a paixão, a persistência e a insistência. Isso faz parte. Às vezes, o cara coloca uma dificuldade e você tenta achar uma solução, ajudando a tornar aquilo possível. Muitas vezes um artista ajuda o outro a fechar. Raye, por exemplo, ficou superfeliz quando soube que o Dinner Party estava no line-up. Você vai criando um ambiente musical. Mas eu diria, Jota, que tem um pouco de sorte e um pouco do nome que você vai construindo ao longo de muitos anos.

Jota: Qual foi a negociação mais complexa que você teve de enfrentar?

No ano passado, Jon Batiste. Soft Cell foi simples. Anteriormente, teve Daft Punk. Quando deu certo, pensei: “não estou acreditando que a gente conseguiu”…

Claudia: Nem eu acreditei, quando estava vendo o show ali, na minha frente!

Neste ano, um que foi bem difícil de conseguir, porque demorou muito para eles colocarem o Brasil na rota, foi o Pavement.

Claudia: Você sempre esteve chefiando muitos homens. O que traz essa potência e facilidade (sabendo que não é fácil) em trabalhar harmonicamente com equipes masculinas?

A gente começou muito cedo. Eu tinha 25 anos e a Sylvia, 23. O que havia, em nós, era ímpeto. Não havia um pensamento de que seria difícil. O Free Jazz nasceu porque eu namorava o Zé Nogueira, e a Sylvinha, o Rick Pantoja, dois músicos. Nasceu porque a gente vivia com eles, meio que para se exibir. Sempre tem uma história de amor por trás (risos).

Quando começamos, me lembro que estávamos na sala do famoso Joe Adams, empresário do Ray Charles, e ficamos horas na sala de espera. Quando ele saiu e nos viu, falou: “meu Deus, vocês têm menos tempo de vida do que eu trabalhando com o Ray”. A gente era muito moleca. 20 anos é muito pouco. Hoje em dia tem meninas na Dueto trabalhando com 26, 27 anos, e eu penso: “caramba, antes disso eu já fazia o Free Jazz”. Tínhamos esse ímpeto de realizadoras.

Então eu te digo que não tinha um pensamento de “eu sou mulher”, mas de “eu sou muito jovem, será que vão confiar em mim?”.

Dando um exemplo, e também respondendo um pouco daquilo que o Jota perguntou sobre os “segredos”, me lembro que a gente pediu para o Paulinho Albuquerque, produtor do Ivan Lins, para escrever para o Quincy Jones, pedindo para que ele escrevece para o Joe Adams para pedir que ele recebesse a gente!

Me lembro também de escrevermos para o John Phillips, que diretor do JVC Festival de Nova Iorque, onde Djvan tinha tocado, pedindo contatos de artistas. Sonny Rollins, Pat Metheny, Joe Pesce, Ernie Watts, Bob McFerrin… E a resposta dele foi: “informação é ouro”. Então eu rebati: “amizade é mais valiosa que ouro”. Ele riu, ficamos amigos e ele me mandou tudo o que pedimos.

E, nesse ponto, Claudia, eu acho que ser mulher foi uma vantagem, porque você enfrenta homens terríveis neste meio, de igual pra igual, e não leva um “soco na cara”. Se fosse um homem falando com outro do jeito que falamos, sairia briga.

Muita vezes nós precisamos ser muito duras, e o fato de ser mulher nos protegia. O agente da Madonna, por exemplo, chegou a suspender o Jeff pelos colarinhos aqui no Brasil, mas jamais faria isso com a gente. Um cara tão grosseiro que cheguei a desligar o telefone na cara dele. E o cara foi para cima do Jeff porque viu o público usando camisetas piratas da Madonna. Não tinha nada a ver com a gente.

Claudia: Quando foi isso?

No Girlie Show, em 93. Também uma negociação muito difícil. A primeira vez que ela veio ao Brasil e também o primeiro grande show da Dueto. Um desafio lançado pelo Nizan Guanaes para a cerveja Antártica. Me ligou e disse: “eu quero a loura gelada”. Eu estava no Festival de Gramado lançando meu primeiro curta, Diário Noturno, e pronto, a vida deu uma nova virada. Uma semana depois, eu estava em Los Angeles, conversando com essa pessoa “agradável”.

Claudia: Foi seu maior desafio até então?

Foi a maior artista que trouxemos, né? Depois vieram Rollling Stones, Elton John…

Jota: Entrevistamos Pena Schimdt (que foi diretor de palco do Free Jazz e Tim Festival) e ele nos contou sobre os desafios técnicos do Kraftwerk. Esse tipo de dificuldade, ou o gênio difícil de um artista, interfere na escolha da curadoria?

Não, o que interessa é a música, e vamos correr todo o risco. É muito corajoso e muito desgastante, às vezes. Kraftwerk, por exemplo. Era uma noite com Massive Attack e eles. O Kraftwerk avisou que não dividiria o palco com ninguém. Tivemos de montar dois palcos, um de frente para o outro, como os gols de um campo de futebol. Hoje em dia, seria impossível, por causa dos custos. Mas valeu cada centavo.

Jota Wagner: E eles ainda pediram para tocar antes do Massive Attack né?

Monique: Exatamente.

Claudia: E teve Aphex Twin tocando escondido embaixo da cabine, ninguém sabia se ele estava lá ou não…

Monique: Incrível, coisas memoráveis. É tão incrível quanto trabalhoso. Meu enteado me diz que o que faço é que nem droga. Precisa ser cada vez mais forte que a anterior para fazer efeito (risos).

Jota: Tem alguém, além do Frank Zappa, que você sempre quis trazer e ainda não deu?

Monique: Eu não trouxe Miles Davis também. Cheguei a conseguir, mas ele cancelou a vinda dois antes. Ele morreu um ano depois. Cancelou em cima da hora e não dava para substituir. Então a solução foi fazer o elenco inteiro voltar ao palco para tocar, cada um, uma música do Miles em seu lugar, incluindo a Sara Voghan. Foi incrível.

Mas alguém que ainda queira trazer…

Claudia: Não tem, já trouxe todo mundo!

Eu adoraria trazer Bob Dylan. Mas deve ser muito, muito difícil.

Jota: Assim como eram Kraftwerk, James Brown… Quando você vai criar um novo festival, o que é inegociável?

Qualidade, tanto artística quando na produção. Virou uma marca nossa. Eu acho que a gente nem sabe fazer diferente. Quando a coisa sai do controle, é uma sensação muito esquisita.

Jota: você toparia fazer um Rock in Rio, Lollapalooza ou outro dessas proporções?

Eu adoraria. Ter um monte dinheiro para brincar. Juro, adoraria. Mas ia ter de ficar com a nossa cara, do nosso jeito (risos).

Claudia: Existe espaço para tanto festival no Brasil?

Eu acho que está rolando um pouquinho de saturação. Nós estamos crescendo, mas tenho visto e ouvido coisas, já não é mais aquela explosão. Quanto topamos fazer o C6, não conseguíamos encontrar uma data que não batesse com outro festival. É loucura.

Claudia: Há também uma análise do Mapa dos Festivais que identifica line-ups quase idênticos em diversos eventos…

Parece paradoxal, mas o nosso é um festival íntimo. Mais aconchegante. Eu mesmo, não aguento ter de ir lá longe para poder comer, ficar num camarote lotado de gente… Eu também sentia saudade do Free Jazz. Assistir a um show, sentar no restaurante, voltar. A verdade é que no C6 Fest, tentamos reproduzí-lo, nos mínimos detalhes. É o mesmo formato. Chamamos as mesmas pessoas para fazer palco, cenografia, som…

Jota: Você consegue assistir aos shows que faz?

Eu elejo aqueles em que tenho de ficar por pelo menos meia hora. É assim que tenho feito.

Claudia: Então passa pra gente o roteiro que você fez para este ano (risos)!

Eu tenho loucura em ver o Paris Texas. Young Fathers também é muito bom. Diferente. Uma hora hip-hop, noutra hora rock, uma usina sonora. Também tem a Raye; David Morales tem uma importância muito grande para mim, da época em que estudei em Nova Iorque. Sou muito ligada no 2manydjs, tenho lembranças maravilhosas. Baile Cassiano, que o [Daniel] Ganjaman está produzindo e vai ficar incrível, e Cat Power cantando Dylan.

Jota: Se não dá para trazer o Bob, que venha Cat Power cantando Dylan…

Sim! E lembrei de outro, agora, da lista dos “impossíveis” que queria trazer. Tom Waits!

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.