Soft Cell Foto: Reprodução

Pela 1ª vez no Brasil, Soft Cell foi baluarte contra a homofobia nos anos 80

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Brasileiros finalmente terão a chance de ver o badalado duo de synth-pop “antes que a bateria finalmente acabe”

Dá para dizer que foi por pouco. Dia 18 de maio, o Soft Cell se apresenta no Parque do Ibirapuera como headliner do C6 Fest 2024. O evento, que se dá entre os dias 17 e 19, ainda conta com outros diamantes, como Pavement, Cat Power (cantando Bob Dylan), 2manydjs, Paris Texas e uma porção de outras atrações dignas de muita atenção.

A conquista do pioneiro duo formado por Marc Almond e Dave Ball no line-up foi um golaço da curadoria. Dentre as duplas de synth-pop que tomaram o mundo no começo dos anos 80, os dois amigos da interiorana Leeds, na Inglaterra, foram os primeiros a lançar, antes mesmo de Pet Shop Boys, Erasure e Eurythmics.

Mais do que isso, foi um golaço 45 minutos do segundo tempo. Almond tem exposto em entrevistas, como a que deu à revista Vulture, no ano passado, resiliência com o que considera serem os últimos momentos do Soft Cell, mesmo tendo lançado recentemente um EP, Say Hello, Wave Goodbye, menos de dois anos após seu quinto e elogiado álbum Happiness Not IncludedAmbos os títulos escancaram melancolia e resignação.

“Sou um celular velho com apenas um ponto na barra da bateria, e não tenho carregador. Não tenho futuro para olhar, somente o passado. Tudo o que eu escrevo, hoje em dia, é uma retrospectiva”, disse o músico.

As palavras são de um artista cuja missão foi trazer alívio ao sofrimento de muitos, incluindo ele próprio. Seu álbum de estriea, Non-Stop Erotic Cabaret, foi lançado em 1981, com composições e experiências direcionadas ao público LGBT no auge da epidemia da AIDS. De prima, o disco já trazia o hit que alavancou o Soft Cell para as pistas de dança do mundo todo, Tainted Love, um cover da cantora soul Gloria Jones, lançado originalmente em 1964 e com repercussão ínfima, se comparado à versão de Almond e Ball.

Enquanto as rádios fritavam de tanto tocar Tainted Love, a crítica, o público e o próprio duo compreenderam que aquela música significava (em letra, arranjos e textura) um retrato perfeito da comunidade LBGT mundial nos anos 80. A busca do amor em um ambiente confuso, cinza, onde polos opostos como hedonismo e aceitação, saúde e preconceito se digladiavam na pista de dança, ofuscando qualquer perspectiva de futuro. A reinterpretação do Soft Cell para a canção é triste e dançante, ao mesmo tempo. Espreme o peito, enquanto alivia os quadris.

Devidamente abençoados com o fardo, assumiram a posição de almirantes do movimento synth-pop que explodia na Inglaterra. E desde então, jamais renegaram as demandas e bandeiras que lhe foram atribuídas.

Cada revolução musical traz consigo um ativo transformador, de destruição e latente recriação nos costumes e na forma de pensar. E nenhum deles quebrou mais o preconceito da homofobia do que o synth-pop, encabeçado pelo Soft Cell. Fruto de uma absorção por uma geração de jovens marginalizados ingleses que não se identificava com a barulheira proletária do punk-rock, e que se encantou com os sintetizadores que estavam sendo usados pelos alemães do Kraftwerk e os japoneses do Yellow Magic Orchestra (além do conterrâneo Gary Numan e, claro, Devo, do outro lado do Oceano Atlântico), o movimento tomou de assalto a ilha britânica, e de forma incrivelmente descentralizada.

Orchestral Manoeuvres in the Dark era de Wirral, Depeche Mode de Essex, New Order de Manchester e Soft Cell de Leeds. A mesma música, falando sobre as mesmas dores, ao mesmo tempo em lugares diferentes deu ares de blitzkrieg à ocupação inglesa conquistada pelo gênero musical.

Com uma seleção fantástica de superhits, lançados simultaneamente por todos esses artistas (e sempre com cheiro de pista de dança), o synth-pop invadiu as discotecas de todo o mundo. De todo o mundo meeesmo!

Não havia sede de clube de cidade pequena, bailinho ou discoteca no interior do Brasil onde as pessoas não estivessem dançando Blue Monday, Tainted Love, Blue Savannah Song ou West End Girls. Quase todas músicas com temática e estética gays, feitas por artistas assumidamente gays, ao contrário de galãs de boybands americanas, por exemplo, proibidos por contrato em falarem sobre sua homossexualidade.

O raio deteriorador de preconceitos, no entanto, teve muito mais amplitude. Graças ao synth-pop, as massas deixaram de se importar com a vida pessoal dos artistas que gostava. Na festa agropecuária de Araraquara/SP ou numa discoteca em Passo Fundo/RS, uma massa de gente (que hoje são tios e avós) dançava a noite toda a músicas que sabidamente haviam vindo da comunidade LGBT, e não estavam nem aí. Algo que não acontecia, por exemplo, com o rock. Freddie Mercury nunca escapou das piadinhas babacas do tiozão no casamento. Mas jamais alguém se importou com o jeito de dançar de Neil Tennant ou Marc Almond.

O estilo chegou às massas brasileiras através de hits, e não de álbuns. Foi assim com todos os artistas citados acima, cada um deles, com uma ou duas “armas letais” nas mãos dos DJs de todos os cantos do país. Faixas imprescindíveis durante a festa, fosse num clubinho underground ou em um casamento. Apesar da importância gigantesca de Tainted Love, Torch é o hit fundamental do Soft Cell, a música que deveria ser levada para o espaço.

Lançada em 1982, no formato single, a canção voou para o segundo lugar nas paradas inglesas. Torch é uma das mais belas pinturas dedicadas à imperfeição, dos raros casos na música onde cada erro está no lugar certo e na hora certa, com deslizes de tempo e tonalidade jazzísticas que a tornam, vejam só, perfeita.

Sobre o inesquecível trompete tocado por John Gatchell, lento e sinuoso como um rio, Almond plana feito um flamingo em uma textura vocal insegura, opióide. A faixa ganha, no finalzinho, a adição vocal de Cindy Ecstasy, tão sensual que desejamos que aparecesse antes. Mas eis a perfeição do erro: não dar ao ouvinte o que ele quer. A capa do single é outra obra fundamental da arte queer, criada pelo artista Huw Feather.

A discografia do Soft Cell é pequena. Foram apenas cinco álbuns de inéditas, graças à incrivelmente precoce separação da dupla, em 1983, dois anos após dominarem o mundo. O breque na carreira, graças ao abuso de drogas, em especial o speed, foi tão abrupto que ainda a banda ainda deixou um disco, The Last Night In Sodom, para ser lançado em 1984.

Depois de trabalharem em projetos solos e colaborações, Marc e Dave se reuniram para um novo LP em 2002, Cruelty Without Beauty, e uma porção de shows (esgotados). Não deixaram que as pessoas se esquecessem de suas músicas, lançando discos de remixes durante o hiato, e fazendo mais shows lotados mundo afora, sem nunca botar o pé no Brasil, graças à sua conturbada história.

O duo começou a dar sinais de mais uma reunião do projeto em 2018. Assim como em 2002, só aconteceu graças à garantia de que lançariam novas músicas. Happiness Not Included (ô banda boa pra nome de disco!) foi elogiadíssimo pela crítica musical europeia.

Ironicamente, em resenha ao disco, a revista Clash escreveu: “uma banda olhando tanto para o futuro, quanto para o passado”. E eis a grande ironia. Talvez Almond não tenha percebido, mas há, sim, um carregadora para as baterias do Soft Cell. Suas canções inéditas.

Celebremos o início, o fim e o meio do Soft Cell em sua inédita passagem pelo Brasil.

C6 Fest

O C6 Fest é “filho” de dois dos mais renomados festivais brasileiros das últimas décadas, o Free Jazz Festival e o Tim Festival. Considerando toda sua história, que remonta aos anos 90, seus curadores já foram responsáveis pela vinda de artistas como Kraftwerk, Björk, Massive Attack, Sonic Youth e Arlo Parks, entre outros.

Programada para rolar entre os dias 17 e 19 de maio, a edição 2024 acontecerá novamente no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e tem dois tipos de ingressos: um valendo para as atrações da Arena Heineken & Tenda MetLife e outro para assistir a todas as atrações do Auditório Ibirapuera. É preciso comprar um por cada data pretendida.

Confira a programação completa do C6 Fest 2024

Sexta-feira (17)

Charles Lloyd Quartet
Daniel Santiago e Pedro Martins
Jakob Bro Trio “Uma Elmo”
Jihye Lee Orchestra

Sábado (18)

2manyDJs
Black Pumas
Cimafunk
Fausto Fawcett
Jaloo convida Gaby Amarantos
Pista Quente
Raye
Romy
Soft Cell
Valentina Luz

Domingo (19)

Baile Cassiano
Cat Power Sings Dylan ’66
Chief Adjuah
Daniel Caesar
David Morales Sunday Mass
Dinner Party feat. Robert Glasper, Terrace Martin & Kamasi Washington
DJ Meme
Jair Naves
Noah Cyrus
Paris Texas
Pavement
Squid
Young Fathers

Serviço

C6 Fest 2024

Datas: 17, 18 e 19 de maio
Locais: Auditório do Parque Ibirapuera e Arena Heineken & Tenda Metlife (Av. Pedro Álvares Cabral, 0 – Ibirapuera, São Paulo/SP)
Ingressos: Via INTI

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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