Como Chico Science e o manguebeat fizeram a música brasileira voltar a ser cool
Movimento criado há 30 anos foi um banho de autoestima para toda uma geração, e modificou a forma como ouvimos os ritmos tradicionais nordestinos
Hoje em dia, é difícil encontrar quem não saiba o que é maracatu, coco, guitarrada, entre tantos outros gêneros musicais criados no Norte e Nordeste do Brasil. Artistas lá de cima abundam no cenário musical, muitos deles responsáveis pelos melhores discos do ano.
O movimento manguebeat foi o grande responsável por mudar o eixo (ou botar nos eixos, se preferir) da geografia da música popular brasileira. Afinal, a propriedade da criação é da região onde seus artistas nasceram e cresceram, e não onde estão sediadas as gravadoras, as rádios ou as revistas de música. Por isso, Rio de Janeiro e São Paulo ficaram conhecidos como “centros culturais”, mesmo os grandes artistas sendo oriundos de outros estados do país.
No último dia 11, foi celebrado no Recife o seu aniversário de 30 anos, o “Manguezassa” — evento que contou com shows de Nação Zumbi, Banda Eddie, Mundo Livre S/A e Devotos.
Há 30 anos, nascia o manguebeat
A concepção do que chamaríamos de “movimento manguebeat” surgiu em julho de 1992, para divulgar a fita demo do Mundo Livre S/A, escrito por um de seus integrantes, Fred Zero Quatro, e distribuído para a imprensa com o título de Caranguejos com Cérebro.
“Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife” — parágrafo do texto de Fred (leia na íntegra no final da matéria).
Um ano depois, Chico Science (foto), grande maestro do rolê, inventivo, carismático e antenado, rebatizou o texto para Manifesto Manguebeat, aos moldes do Manifesto Antropológico, escrito por Oswald de Andrade em 1928, em meio ao movimento modernista brasileiro.
O texto, primoroso, conectava a ancestralidade e a periferia de Pernambuco com a arte feita no resto do mundo. Computadores enfiados na lama do mangue. Caranguejos fazendo música.
A transformação de um release em manifesto forjou o coletivo
O texto de Zero Quatro ia ao encontro de tudo o que Science já estava construindo em Recife. Com a banda Lostal, formada por ele antes da Nação Zumbi, o cantor já tinha em seu cesto todos os caranguejos que seriam degustados no manguebeat: a performance de dança sincopada, a exaltação à cultura recifense e, mesmo, algumas das músicas que seriam sucesso no futuro.
Foi também em 1993 que o Brasil conheceu, de queixo caído, o que aquela molecada estava fazendo, através de apresentações históricas de Chico Science & Nação Zumbi, ao lado do Mundo Livre S/A, no Circo Voador (RJ), e no Programa Livre, apresentado por Serginho Groisman no SBT — além de vários outros shows, aparições em rádios e exposição em jornais e revistas. O ano ficou marcado, portanto, como data de nascimento do movimento.
A partir dali, o Brasil e o mundo voltaram seus olhos para o mangue, para Recife, e também para os ritmos tradicionais brasileiros. Apimentados por versos geniais como “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro”, “vou lembrando a revolução, mas há fronteiras nos jardins da razão” ou “um passo à frente e você já não está no mesmo lugar”, o gênero misturava rock, trip hop, rap e funk com maracatu, coco, embolada e o que mais viesse à cabeça, desde que os pés se mantivessem na lama.
Foi (e ainda é) revolucionário
Marcelo D2 lembra do impacto que teve ao ver Chico Science, Jorge Du Peixe e Lucio Maia aparecerem no estúdio em que o Planet Hemp ensaiava e tocarem algumas músicas da Nação Zumbi para eles.
Em entrevista publicada nessa sexta-feira (20) ao Jornal da Cidade, de Recife, declarou: “Eu pensei: mano, fudeu. A gente tá fudido! Como vamos tocar no mesmo espaço que esses caras? A gente tem que melhorar muito. Para mim, o Nordeste como um todo reviveu após o Chico. Ele me fez olhar para o Brasil de uma maneira muito diferente”.
Na época em que morava em Nova Iorque e produzia a artistas como Gilberto Gil, o experiente produtor Béco Dranoff também foi testemunha do choque causado por Chico Science:
“Eu vi aquele show dele no Central Park, que ele abriu para o Gil [1995]. No dia seguinte, tinha uma matéria de uma página no New York Times sobre ele”, revelou em entrevista ao Music Non Stop.
Béco ainda foi a Recife e viajou com os caras para ver conhecer os caboclos de lança, uma das inspirações do pessoal do manguebeat.
“Os caras tomavam aquele tal do azougue, e ficavam tão alucinados que precisavam colocar uma flor na boca, para não morder a língua. Dali veio aquele visual, com a peruca, o óculos escuro e a margarida amarela na boca”, contou.
A psicodelia, que no movimento ganhou ares ancestrais e ritualísticos, também eram marca registrada na salada proposta por Science.
Uma nova forma de ver o Brasil
Entre os anos 80 e a chegada do manguebeat, o rock brasileiro evoluía através de conflitos e rompimentos. Uma cultura da antítese.
O público que abraçou o rock nacional de 1984, levando bandas brasilienses, cariocas ao estrelato, dava as costas à MPB feita pela geração anterior, a quem chamavam, pejorativamente, de “barões do banquinho e violão”.
A molecada da geração seguinte, na virada para os 90, elegeu (os agora populares) artistas como Legião Urbana, Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii e RPM, entre tantos outros, os novos vilões, chegando ao extremo de cantar e gravar somente na língua inglesa.
Mas mesmo em grupos que mantiveram a língua portuguesa nas letras, era preciso demonstrar ruptura. Tudo, então, era “antibrasileiro”. A música, o visual e os sonhos.
Foi em meados da década de 90 que três grupos, principalmente, trouxeram o Brasil de volta para os jovens brasileiros: Raimundos (com o forró), Planet Hemp (com o samba e cultura dos morros cariocas) e, profunda e definitivamente, Chico Science e seus pares, como Mundo Livre S/A, DJ Dolores, Jorge Cabeleira E O Dia Em Que Seremos Todos Inúteis, além dos Devotos do Ódio (hoje, Devotos), originais da comunidade recifense de Alto Zé do Pinho, responsáveis pelo recado de que ali no morro “tem afoxé, tem rock’n’roll, tem punk rock, tem samba e tem pagode”.
“Todo brasileiro deveria sair do Brasil, para entender o diamante que tem na mão. Quando você chega, nos Estados Unidos, e conversa com a galera, passando alguma informação de soul, por exemplo, todo mundo boceja. Agora, se você fala de baião, de coco, de forró, as pessoas piram! Imagina se um sueco chega aqui falando que faz pagode, samba. A gente vai bocejar também. É a mesma coisa”, contou-nos o produtor musical Xuxa Levy, também em entrevista ao Music Non Stop.
“Geeeente… como tem coisa legal no Brasil!”, pensamos todos nós. Ao propor uma atualização da música folclórica, regional, com a tecnologia, os overdrives e as misturas, o manguebeat limpou o mato que escondia a estrada de tijolos de ouro da música brasileira.
E, felizmente, todo mundo seguiu correndo para desbravá-la. Dissecaram os ritmos e a história de outras regiões. Fizeram as pazes com o “brega”, o popular, e assumiram, de vez, a identidade brasileira de forma explícita em tudo o que faziam.
Passamos a ter, finalmente, uma música brasileira contemporânea e, ao mesmo tempo, autêntica — o que reverbera até hoje.
Chico Science nos deixou de uma forma doída. Aos 27 anos, apenas, deu com seu carro em um poste, voltando de uma festa no Recife. Deixou em todos a pergunta: “o que esse maluco ainda iria fazer? Aonde ele iria chegar?”.
Arrisco-me a dizer, cheio de paixão, que seria, para o mundo, o próximo David Byrne. Ou mais.
“Se foi cedo, mas deu tempo de deixar uma centelha”, complementou Béco Dranoff.
Incendiário, o genial artista segue vivo, fragmentado em milhares de outros que vieram depois.
Leia a íntegra de Caranguejos com Cérebro, o Manifesto Manguebeat, escrito por Fred Zero Quatro:
Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.