Documentário sobre Elis Regina e Tom Jobim é uma ode à verdade, e vale cada minuto
Com imagens inéditas, Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você desvela a tensão e o lirismo dos bastidores de um dos discos mais importantes da música brasileira
Elis & Tom, álbum gravado em Los Angeles e lançado pela Philips em 1972, com dois dos maiores gênios da música brasileira, Elis Regina e Tom Jobim, ficou para a eternidade como um dos maiores e mais importantes registros da nossa música.
Produzido pela O2, o documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você — disponibilizado ontem (15) nas plataformas de streaming — traz cenas inéditas gravadas pelo produtor de Elis Regina, Roberto de Oliveira, e depoimentos de pessoas que testemunharam a execução do projeto do começo ao fim, como Andre Midani, Roberto Menescal e Cesar Camargo Mariano.
Nele, os diretores Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay expõem as facetas mais íntimas dos dois ícones, em uma narrativa lírica e suave, como a música da dupla.
Uma ode à verdade
Elis & Tom, o álbum, foi concebido na alcova da amargura, e o filme não faz questão nenhuma de esconder essa história. Na virada dos anos 70, a imagem de Elis Regina Carvalho Costa estava manchada de verde oliva. A cantora aceitou se apresentar na abertura das olimpíadas do exército em plena ditadura militar, causando revolta da classe artística e intelectual.
O erro fez com que a artista trocasse de produtor, recrutando Roberto de Oliveira, então um executivo de vendas da Philips com grande trânsito no circuito de shows universitários, colmeia dos jovens pensadores de esquerda. Ambos bolaram uma estratégia para reconstruir a sua imagem.
Antônio Carlos Jobim, por sua vez, vivia nos Estados Unidos, magoado com as rádios e o público brasileiro, que não consumiam mais sua música. “No Brasil, a bossa nova está morta”, dizia aos quatro ventos.
No Brasil. Porque no país onde agora vivia, o músico era endeusado pelos maiores nomes do jazz. Classificado como um gênio, foi o único compositor que mereceu um disco autoral inteiro gravado por Frank Sinatra. Chegou a ser o músico mais regravado no mundo, depois dos Beatles. Os olhares e sorrisos captados na apresentação dos dois em 1970, em um dueto inesquecível, é um dos grandes momentos do documentário.
Andre Midani e Roberto Menescal, à frente da Philips, buscavam um projeto especial para celebrar os dez anos de Regina na gravadora. Oliveira chegou com a ideia: ela convidaria Tom Jobim para um álbum, cantando as composições dele, com a banda brasileira que a acompanhava e com produção musical do marido, Cesar Mariano.
Todos sabiam que ele era um artista difícil. Além de naturalmente exigente e perfeccionista, havia cultivado um ranço gigantesco com o Brasil, a ponto de se negar a trabalhar com músicos e técnicos brasileiros, já que tinha acesso livre à nata da produção musical estadounidense.
A “solução” para convencer Jobim? Contar a ele só metade da história
Antônio Carlos só foi saber que não poderia escolher seus músicos e produtores em Los Angeles, quando não havia mais volta. Ficou puto, inconformado, a ponto de destratar Mariano na frente de Elis e todos da equipe.
“Você? Com suas pobres notinhas brasileiras? Não vai rolar! Beth [sua filha], liga pro Claus Ogemann!” — disse, na intenção de convocação seu arranjador alemão, com quem estava acostumado a trabalhar nos Estados Unidos.
Esse diálogo aconteceu no primeiro encontro entre os músicos, às 08h da manhã, na casa de Jobim em Los Angeles, para onde todos foram, direto do aeroporto.
“Esse foi o ‘bom dia’ que ele me deu”, conta Mariano no filme.
No café da manhã, todos provaram o amargo fruto da tensão que alimentaria boa parte das gravações. Mas a semente havia sido plantada muito antes.
Os santos de Elis e Tom não batiam há tempos
Ambos jogavam na retranca, desde o dia em que se conheceram. Cientes da genialidade um do outro, embalavam o ego em uma suposta timidez para se destratarem mutuamente, em eventos privados.
Quando Roberto Menescal tentou apresentar Elis a Tom, ela o ignorou. Menescal tentou novamente, levando o artista à casa dela, que se recusou a abrir a porta, esperando-o na sala, onde se manteve dura como pedra. Em uma autocrítica revelada no documentário, contou que, à frente “daquele gênio, estava travada, com dez mãos e sete cabeças, sem saber o que dizer”.
Um corte sensacional mostra bem o quanto a compositora procurava se impor a Tom Jobim. Sabendo da importância daquele projeto, Roberto filmou tudo nos bastidores, e roteirizou algumas cenas, para serem editadas e usadas na promoção do disco. Em uma delas, bolou um encontro entre os dois no aeroporto, em LA. Ambos se encontram e dão um longo abraço no saguão. Tom leva Elis até seu carrão, abre a porta para ela. Ela não pensa duas vezes, ergue o banco e se senta atrás, forçando o músico à posição de motorista particular.
Cesar Mariano mostra a força de sua paciência durante as gravações. Sabendo que era marido da colega, Antônio fez do arranjador o alvo perfeito para atingi-la, ironizando tudo o que propunha ou fazia. Conforme segurava a bronca, suportando tudo com serenidade transcendental, ia dando linha para que o cantor fosse expondo uma gigantesca infantilidade, carente da idolatria a que estava acostumado. Revestido de suas frases geniais, sacadas hilárias e poéticas, o gênio da bossa nova foi sendo exposto como um garoto nu, na frente de todos.
Artistas são assim
Regina, por sua vez, lidava com seus demônios. A artista havia desenvolvido uma interpretação épica, contundente em sua voz e trejeitos, apurada em palcos brasileiros e europeus. Som e fúria. Batia de frente com Jobim, que dizia em sua música “usar mais a borracha do que o lápis”. Um confronto entre dois estilos diferentes.
A diva islandesa Bjork, ao encontrar no Brasil Pedro Mariano, filho de Elis e Cesar, perguntou: “Como sua mãe conseguia acessar lugares tão distantes emocionalmente? Eu jamais teria coragem de ir até lá, pois provavelmente não voltaria”.
Descreveu, precisamente, o que aconteceu com ela.
Paz selada
O ponto alto do documentário, de arrancar lágrimas, dá-se justamente no momento em que ambos despem-se de sua defesa. Abrem a guarda.
Ensaiando a música O Que Tinha De Ser, o então recluso patrono da bossa nova resolve, surpreendentemente, dar o primeiro passo. Sobe o tom na interpretação ao piano, “largando a borracha” e rabiscando acordes cada vez mais fortes e épicos, invadindo o universo de Elis e pedindo, quase implorando, um abraço maternal através da música.
A atitude emociona a cantora, finalmente acolhida. Ela sorri largo, aplaude efusivamente, acompanhada por Mariano, e dá um longo abraço no colega, marcando, enfim, um golaço. Estava selada a paz. E a partir daquele momento, as gravações do clássico Elis & Tom definitivamente desaguariam para o oceano dos grandes discos.
Ambos passaram, então, a praticar a generosidade no processo. Elis Regina assimilou as lições que tanto queria receber do mestre. Minimalizou sua interpretação vocal, assumindo a serenidade de Tom que, por sua vez, recolheu os espinhos de sua carapaça e passou a prestar atenção nos músicos.
Assumiu a derrota para Mariano e passou a praticar o melhor do seu bom-humor ao reconhecer o talento dos músicos. Ao elogiar a bateria de Paulinho Braga, por exemplo, disse que o músico “elevava a bateria ao nível de instrumento musical”. Sensacional!
Quando ouviu o resultado final do disco, como relata a matéria de Pedro Sanches para a Folha de São Paulo, Antônio Carlos ligou para Cesar Mariano e, num clássico pedido de desculpas Jobiniano, disparou:
“Mariano, eu sou uma pessoa acostumada a tomar banho de banheira, a água parada, a sujeira no meu corpo. Vocês, não, tomam banho de chuveiro, a água fresquinha, passando livre pelo corpo. Entendeu?”.
Esse, o Tom Jobim que queremos. E no disco, a Elis Regina que o mundo venera!
Com cem minutos, Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você está disponível no iTunes (Apple), Google Play, Vivo Play e Claro TV+. Os preços do aluguel digital devem ser consultados nos serviços de streaming.