Patife Foto: Acervo pessoal

Uma estrela na contramão: DJ Patife conta como encontrou a felicidade dirigindo um caminhão pela Europa

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Entre toca-discos e boleias, uma sensacional história de equilíbrio e realização

A primeira coisa que a maioria das pessoas poderá pensar, ao começar a ler a entrevista que fiz com o DJ Patife, estrela mundial do drum’n’bass, grande responsável pela divulgação de um ritmo que começou nos guetos e alcançou novelas da Rede Globo, e que agora cruza a Europa dirigindo caminhões, é o clichê da efêmera vida artística: a que dura pouco e que obriga um “ex-artista” a viver tristemente para pagar as contas, de volta ao “mundo dos comuns”, tendo de obrigar-se a um emprego chato.

Não existe engano maior. A conversa com Wagner Ribeiro de Souza, ele em sua casa, em Algarve, em Portugal, e eu daqui do Brasil, no meio da natureza, onde escrevo este texto, me trouxe uma das mais reveladoras e emocionantes reportagens que já fiz. Uma história de amor, de realização pessoal e, principalmente, de equilíbrio.

Ela desconstrói o deslumbre tão comum a todos os que imaginam o que é ser um artista, e também a tantos que sonham com isso, no início de suas carreiras. Pontos de vista que vão lavando a consciência, conforme conversamos, como um banho de cachoeira.

“A maior ilusão [da carreira artística] é você achar que você é algo. Que você é um superstar, que faz sucesso… Se achar além daquilo que é”, conta.

Patife acabara de passear com seus discos pelo mundo. Em 2023, tocou no Panamá, Colômbia, Brasil, Sérvia… E só não fez mais porque teve de segurar a gana de sua agência na Europa, para que as viagens da música não atrapalhassem suas outras viagens, dentro do caminhão. “Estou vendo se consigo parar uns 40 dias por ano, para atender aos pedidos de gigs.”

Sim, o DJ segue sendo um dos mais relevantes nomes do drum’n’bass mundial, requisitado nos clubes e festivais, mas não pretende (para desespero de seu agente) deixar de lado sua outra grande paixão. Foi para a Inglaterra em 2015, para fazer apenas um verão. Não voltou mais, tamanhos eram os convites para seguir tocando. Mas onde entra o caminhão?

“Durante toda esta minha vida como DJ, muitos jornalistas me perguntaram: se eu não fosse DJ, seria o quê? Motorista. Antes do DJ, quem nasceu dentro de mim foi o motorista. A primeira viagem que fiz com meu pai, com cinco ou seis anos, me marcou muito. Meus pais são baianos e eu me lembro de forma vívida. Eu conto pra você, Jota, e começo a sentir tudo de novo. Meu pai pegando o ônibus Itapemirim, na rodoviária antiga do Glicério/SP. Lembro que comi um coxinha e passei mal durante a viagem, na Dutra. Minha avó gostava muito de excursões. Vivíamos indo para Aparecida do Norte/SP, ver a basílica, Poços de Caldas/MG, Serra Negra/SP, Barra Bonita/SP, Campos do Jordão/SP… Eu simplesmente amava!”

Wagner transmite, ao contar sua história, uma paixão tão intensa, e talvez até maior, em relação às inúmeras que ouvimos de artistas falando de seus primeiros shows, viagens ou prêmios. São relatos, no entanto, inundados de pureza, e não de ambição. É o amor pelo caminho, e não pelo destino.

“Sempre tive o dom da direção. Minha avó ficava espantada comigo porque o ônibus parava, íamos à igreja e, ao sair, eu voltava para o ônibus, batido. Nesse mesmo período, meu tio tinha um caminhão e vivia fazendo a rota São Paulo – Rio de Janeiro – Governador Valadares, e eu colava nele. Até que um dia ele me deu, de presente, um volante. Eu colocava esse volante em cima de um banquinho, pegava as havaianas da minha mãe e as virava de ponta cabeça, para simular o acelerador, o freio e a embreagem, e um desodorante Avanço, que era o câmbio”, continua.

“Resumindo a história, eu cresci com essa coisa de fazer 18 anos e tirar carta na categoria B [para motoristas profissionais]. Porém, com 21 eu já estava na Inglaterra, correndo atrás da jungle music, dos clubs, das raves… E essa coisa do motorista ficou em mim. Quando alugávamos as vãs para as tours, eu sempre ia dirigindo, junto com o DJ Marky. Levava os DJs pra cima e pra baixo: Manchester, Newcastle, Brighton… Um apaixonado pela estrada.”

Patife

Foto: Acervo pessoal

Ouvimos o tempo todo as histórias das pessoas que tinham seus empregos “chatos”, ordinários, e que sonhavam com os palcos, com a vida cheia de glamour do mundo da música que, ao terem seu talento finalmente reconhecido, tinham a oportunidade de largar tudo para “viver o sonho do rock’n’roll”. Patife dirige seu bólido na contramão, do alto de sua experiência de vida.

“Eu vejo muita gente se desiludindo porque aquela uma hora e meia, duas horas, em cima do palco… são meses para aquele momento acontecer. A gente entra no negócio achando que é sempre brilho, glamour e glória. Mas, cara, você tem de lidar com muita gente, tem de lidar com todo o ranço das negociações. Para mim, é muito difícil a relação com as alfândegas e imigrações. Por causa dos meus traços, sei lá, uns acham que eu sou terrorista, outros, que sou traficante. Tem muita coisa que, quando você faz quatro ou cinco vezes por semana, vai enchendo muito o saco. Eu me sinto feliz por ter dado uma desacelerada. O sobe e desce, um quarto diferente a cada dia, uma comida diferente toda hora, não estar com as pessoas que você ama…”

Não pense que Patife é um desiludido com a vida na música. “Eu também gosto da não rotina”, conta. O que o DJ e produtor transmite, no entanto, é um profundo conhecimento das alegrias e das armadilhas contidas na vida em turnês.

“Tudo passa, Jota. A fama, aquele lance de todo mundo estar te querendo, e hoje passa muito mais rápido do que no tempo em que tive meu lugar ao sol. Foram uns oito anos de Sambassim [canção de Fernanda Porto que ganhou o mundo com o seu remix], de música na novela, de rádio, TV, disco vendendo. Hoje em dia, com dois ou três anos, tudo já acabou para a nova geração.”

O sol, após a pandemia, segue brilhando forte para o DJ, com a retomada forte dos festivais e eventos. Mas foi justamente o lockdown que o trouxe de volta ao sonho de infância. Então, com quase 30 datas marcadas por todo o mundo, o fechamento dos eventos com aglomeração foi, como para todos os artistas, abrupto. Sem nada o que fazer, percebeu uma demanda enorme na Europa: a de caminhoneiros.

Após 18 meses de treinamentos e documentações, Souza pegou a estrada, e renasceu.

“Eu sou uma pessoa que gosta muito de estar no silêncio, de refletir, e, cara, a estrada é incrível pra isso. Aquele monte de paisagem, as playlists, que são infinitas, cada música me conecta a um momento. Eu ali, em outro mundo, em um lugar que não é meu. Em vez de estar na Via Dutra ou na Bandeirantes, eu estou subindo a A10 ou a M25, na Inglaterra. É uma sensação de realização muito grande. É um ganho de loteria. É a vida estar valendo a pena novamente. Eu me sinto com 15 anos de novo, como se estivesse fazendo algo pela primeira vez. É um sentimento de estar vivo tão grande, que para por em palavras, é muito difícil.”

Conforme ouço as palavras apaixonadas de Wagner, começo a me sentir como ele. Visualizo as estradas, a rotina, a paixão pela simplicidade. Mais do que isso, pela importância de cada pequena peça nesta grande engrenagem do mundo, um lugar em que a idolatria, o assombro pelos grandes feitos, segue tão valorizada.

O que seria do artista brilhando no grande palco sem o pessoal da técnica, da logística, da segurança e da limpeza? Patife, o DJ que encanta as pessoas com sua música, também as serve, cumprindo uma função social na qual os astros são anônimos.

“Isso é meu projeto de vida, que ficou ainda mais forte com a pandemia. Eu comecei a trampar com 11 anos, cara, entregando pizza no Brooklin [bairro de SP]. Com 13, já comecei a trabalhar de office boy, rodando São Paulo inteiro. Sempre tive meu sustento muito cedo. O prazer de ter seu dinheirinho, de comprar meus discos, minhas fitas. Me ver em uma posição em que eu não estou prestando pra nada me machucou muito no âmago”, continua.

“E essa história do caminhão tem uma coisa muito forte para mim. Além de ser uma honra trabalhar com isso… cara, eu estou levando alimentos, frutas, de fato, estou fazendo isso que estamos falando: cumprir meu papel no mundo para ele continuar girando. Eu sou uma das peças.”

Para quem está acostumando a entrevistar artistas que evitam a todo custo expor qualquer fraqueza, que não respondem nada além do último lançamento musical, blindados por assessores de imprensa e estratégias de comunicação, eu me sinto conversando com alguém que tocou o Tao. Um profissional que descascou a cebola inteira, falando sobre o que realmente significa estar no mundo.

“Como essas pessoas são tratadas mal, Jota. O caminhoneiro, o pessoal da faxina, o pedreiro, o povo que constrói o mundo, que leva e traz, que deixa limpo. São tão subestimados… Minha família [esposa e dois filhos pequenos, todos vivendo em Algarve] é muito feliz por me ver realizando mais uma parada.”

Somos todos trabalhadores.

Patife lança novo álbum em 2024. Já está “70% pronto”, segundo o artista.

“Tá uma salada musical, me lembra os tempos das equipes de som. Tem música lenta, R&B, house, drum’n’bass… É um álbum vivo meu.”

Assim seguem suas viagens, através da música ou pelas estradas. Para o caminhoneiro Wagner Ribeiro de Souza, alimento é música. Para o DJ Patife, música é alimento.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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