D-EDGE A pista do D-EDGE: clube paulistano virou alvo de polêmica nesta semana. Foto: Divulgação

A pista de dança é laica

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Vivendo momento delicado, o dono do D-EDGE tomou uma das piores decisões da carreira ao tentar conciliar cultura clubber e proselitismo religioso

Na última semana, Renato Ratier tomou um das piores decisões de sua carreira como empresário da noite no Brasil. Enfrentando duras questões pessoais, abriu seu clube, o D-EDGE, para um culto religioso liderado por Baby do Brasil, uma artista que se autodenomina “popstora”, fundou a própria igreja (Ministério do Espírito Santo de Deus em Nome de Jesus) e se envolve pessoalmente nas questões mais funestas do fanatismo religioso, como a esquizofrênica “cura gay” e a condenação a outras crenças, a ponto de pagar um gigantesco mico em pleno trio elétrico no Carnaval baiano de 2023, ao tentar apagar a herança afrodescendente de sua folia.

Alguém tinha alguma dúvida de que o culto em uma casa noturna que até uma década atrás recebia frequentadores diversos daria errado?  Nenhuma. Exceto para Ratier, que agora se desdobra em declarações à imprensa para consertar o malfeito (o Music Non Stop tentou contato com o empresário, mas não foi atendido até este momento), além de estar sujeito a responder solidariamente a uma ação do Ministério Público proposta pela deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP). A popstora Baby pediu, durante o culto, que quem ali estava “perdoasse os abusos sexuais”. Hediondo, como o crime. E como o pastor que propagandeou a “cura gay” em um dos maiores clubes de música eletrônica do Brasil. Uma verdadeira heresia.

Uma revolta entre os frequentadores da noite tomou o país, desde então. A pista de dança é um templo sagrado da inclusão, da diversidade e da fuga dos inquisidores. Sempre foi assim, desde a Belle Époque. E este templo foi profanado, com total desrespeito aos fundamentos da cultura clubber. A pista de dança é laica — uma vez inclusiva, recebe pessoas de todas as religiões, mas o desejo de converter o próximo deve ficar guardado na chapelaria.

Na fronteira do que a ciência ainda não pode explicar, começa o reino da fé. Todos nós somos assim, e se você não precisou se agarrar ao conforto inexplicável de uma oração, é porque não passou ainda por um perrengue brabo, um beco sem saída. No entanto, se quase todos os deuses são bons, quase todas as religiões são ruins. Um arcabouço burocrático construído pelos homens para restringir o acesso ao divino tão necessário a nós e nossas aflições. Infelizmente, muitos precisam enfrentar este serviço de atendimento ao consumidor espiritual através de padres, pastores e monges. Posto que Baby do Brasil reclamou para si usando como credencial a fama que construiu na época em que era uma pagã.

Ratier, assim como milhões de outros, entrou nessa por tal caminho, assolado por problemas pessoais que não devemos sequer mencionar aqui, pois dizem respeito apenas à sua vida íntima. Mas neste triste caso, é importante destacar a questão, pois muitos podem erroneamente supor de que se tratou de uma espécie de busca pelo dinheiro, poder e aproximação com a crescente comunidade conservadora do mundo. Seu erro foi justamente transformar um momento de dificuldade particular em um movimento de evangelização coletiva, de coronelismo espiritual.

Abrir uma casa noturna dedicada ao som criado em guetos de Chicago como um lugar seguro para gays, negros, latinos e periféricos demanda respeito, mesmo que uma imensa parte de seu público, branco e endinheirado, não tenha a menor ideia da história da música que está ali dançando. Para as pessoas que pagam o ingresso, é triste. Mas para o fundador de um clube que já recebeu em sua cabine nomes como Derrick Carter, DJ Heather, Gene Farris e tantos outros, é absurdo.

Mais uma vez, a pista de uma casa noturna dedicada a gêneros como a house e o techno é um local seguro, de aceitação e acolhimento. Um lugar onde a música une pessoas de todas as raças, gêneros e credos. Nunca foi, e jamais haveria de ser, um ambiente endemonizador, repleto de julgamentos, onde a existência de uma pessoa demande, meu Deus do céu, cura!

Que o episódio cristalize na cabeça de todo mundo que quer ganhar dinheiro com a cultura clubber: a pista de dança é laica!

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.