DJs mulheres em Ibiza Amelie Lens tocando no Amnesia, em Ibiza, em 2023. Foto: Reprodução

Opinião: 22% de presença feminina nos line-ups de Ibiza é chamado à luta

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Estudo recente realizado pela Clubbing TV apontou que 78% dos DJs que tocaram na ilha nos últimos cinco meses são homens

Um novo estudo realizado pela plataforma espanhola Clubbing TV passou a régua na programação musical dos festivais e casas noturnas de Ibiza nos últimos cinco meses e fez uma comparação de gêneros na cabine de DJs nos últimos meses. Segundo o levantamento, 22% dos artistas que tocaram discos para os turistas são mulheres, trans e demais gêneros não fluídos. O número apresenta um aumento gradativo na presença de não homens entre as 980 atrações contratadas na ilha. Está melhorando? Sim. É para se comemorar? Não meeeeesmo!

Para contextualizar, vamos usar aqui um exemplo fictício, em um idioma que o macho entende: imagine que na comunidade de Quebra Pedra, 70% da população é formada por negros. No entanto, no time da vila, o Quebra Canela FC, apenas 20% dos jogadores não são brancos. Dizer que “branco joga mais futebol do que negro” não faz sentido, mas temos aqui outro dado importante: o técnico do time, Matteo Porpettone, é branco. E na diretoria do clube, formada pelos conselheiros do tradicional Quebra Canela, a grande maioria dos membros votantes também é branca. No time, portanto, temos um clássico e angustiante caso de sub-representação. Se os jovens negros não praticassem futebol, a perspectiva a ser analisada seria a de formação: porque não jogam bola na vila? Não têm acesso aos campinhos, quando criança? E, quando têm acesso, são tratados com respeito pelos professores? Mas, se praticam e jogam bem, o balaio é outro: o racismo estrutural.

No caso das mulheridades no mundo da música, os dois casos acontecem, e de forma gritante. Para iniciar uma carreira no mundo da música, precisam passar pela barreira das piadas, da desvalorização do talento (que as faz dependentes da imagem) e demais preconceitos. Há de se ter coragem e muita paciência para superar as barreiras impostas em um mercado em que técnicos, produtores, donos de gravadora e de clubes são homens, muitos deles com a cabeça enterrada em conceitos da época em que Ibiza era o lugar mais legal do mundo para curtir música eletrônica, décadas atrás.

No entanto, segundo levantamentos realizados em diversos lugares do mundo (e não exclusivos ao cenário da música eletrônica), persiste sim a sub-representação. Uma prova é que grandes festivais mundiais, como Tomorrowland e DGTL (ambos com filiais no Brasil), já ocupam seus line-ups com 40% ou 50% de mulheridades, muitas delas encabeçando noites, como Charlotte de Witte, Peggy Gou, Nina Kraviz e a brasileira ANNA. Ibiza, portanto, ganha mais um carimbo de cafonice. O festival do top DJ Marco Carola realizado na ilha, por exemplo, teve 90% de homens em seu line-up.

Carol Kaye
Você também vai gostar de ler 90 anos de Carol Kaye, lenda subestimada do baixo

Que não falta mina zica para comandar as cabines, já é sabido por qualquer que minimamente mantenha os olhos abertos para o tema. Só que aí, mermão, vem outro caroço: o mercado. Lembra da história do jovem negro que não tem acesso ao campinho do Quebra Canela FC? Pois é. Dados recentes apontam que, em cada dez grandes empresas da indústria musical, como gravadoras e produtoras, uma é liderada por mulheres. No mundo de Ritas Lee, Arethas Franklin e Blessed Madonnas, 6% dos direitos autorais são pagos a mulheres, mesmo com os rankings, desde tempos imemoriais, sendo liderados por popstars femininas. Onde é que está o erro? Nesse mesmo mercado aí.

Não bastasse a desvalorização e a sub-representação, dá-lhe abuso. Quase 80% das artistas, de todos os gêneros musicais, já relatam barras durante a carreira que vão desde o assédio descarado até brincadeirinhas bestas em estúdio. Quando um artista homem erra uma música, por exemplo, o engenheiro para a gravação e pede para ele repetir. Quando é uma mulher, a situação vem acompanhada de alguma risadinha cínica ou um comentário com os outros homens que estão na sessão. Dureza.

Se, ainda que lento, o aumento da participação não masculina no mercado da música é gradativo, não se trata de bondade do gênero dominante. A desigualdade vem diminuindo graças a muita briga, muito barulho e, principalmente, muita associação. As portas estão sendo abertas a pontapé pelas mulheres, que vêm se associando em coletivos que vão desde plataformas dedicadas às profissionais, como o WME, até ajuntamentos dedicados a valorizar o trabalho, como o female:pressure — plataforma internacional em que artistas e técnicas se encontram — e a Coletiva Humanas.

Ver, portanto, um estudo apontando 22% de presença feminina na programação de um local dedicado ao entretenimento noturno internacional como Ibiza não é motivo de festa. É mais um chamado à luta.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.