The Killers The Murder Trilogy Foto: Reprodução

A trilogia “secreta” do The Killers: como o grupo se notabilizou por criar grandes histórias

Flávio Lerner
Por Flávio Lerner

The Murder Trilogy é um incrível “easter egg” dividido em três faixas da primeira fase da banda americana

O ano é 2004. Você coloca pra tocar o álbum de estreia de uma banda indie nova, ainda não muito conhecida, chamada The Killers. Sirenes e ruídos de helicópteros são os primeiros sons ouvidos. A faixa 01 é Jenny Was a Friend of Mine, uma das mais espetaculares da discografia do grupo de Las Vegas até hoje.

Nela, Brandon Flowers assume o papel de um personagem que está sendo investigado por um crime que ele jura que não cometeu. A letra inteira traz em primeira pessoa o discurso do nosso amigo que está enrascado, sendo interrogado pela polícia.

“Diga-me o que você quer saber, vamos! Não há razão para eu ter cometido esse crime, Jenny era minha amiga”, canta Flowers, em um dos refrões mais impactantes dos anos 2000.

O que nem todos sabem é que esse som — que, apesar de não ser single, continua a ser lembrado nos shows do Killers até hoje — é, na verdade, o capítulo final de uma trilogia narrativa criada pela banda: The Murder Trilogy, a Trilogia do Assassinato.

Tudo começa com uma música que não consta em Hot Fuss: Leave The Bourbon on The Shelf só viria a ser apresentada oficialmente em Sawdust, um compilado de sobras de estúdio, lados B, covers e remixes lançado em 2007. Nela, o frontman mais uma vez assume o papel de narrador protagonista, descrevendo a dor de cotovelo do seu personagem em um relacionamento conturbado com uma menina chamada Jennifer. Jennifer, Jenny… Sacaram a malandragem?

“Oh, Jennifer, você sabe que eu sempre tentei. Antes de dizer adeus, deixe o bourbon na prateleira, e eu o beberei sozinho. E eu vou te amar pra sempre, querida, você não vê? Eu não ficarei satisfeito até te abraçar bem forte”, canta.

A canção segue com sentimentos conflituosos entre o amor, o rancor e o ódio, pelo que parece ser um término indesejado por parte do nosso “herói”. Trechos como “me dê mais uma chance hoje à noite, e eu juro que consertarei as coisas” se contrapõem a outros, como “e eu nunca gostei do seu cabelo, ou das pessoas com quem você anda” — e o mais delicado: “quem é aquele outro garoto segurando a sua mão?”.

Não fica explícito, mas tudo indica que o protagonista da trilogia está numa ressaca braba [literal e moral], e consegue um encontro com sua amada naquela noite. E aí chegamos ao clímax com o capítulo 2 — Midnight Show, faixa 10 de Hot Fuss e outra das mais incríveis [e subvalorizadas] feitas pelo grupo.

Imprimindo um ritmo frenético, dinâmico, tenso e dançante, Midnight Show traz a letra mais ambígua, complexa e sutil do rolê. Também em primeira pessoa, Flowers canta: “Eu sei o que você quer. Vou te levar a um show à meia-noite. E se você conseguir guardar um segredo, eu tenho um cobertor no banco de trás da minha mente, e um pequeno lugar logo abaixo do céu”.

O verso “ela virou seu rosto para falar, mas ninguém ouviu seu choro” precede o primeiro refrão: “Dirija mais rápido, garoto!” — como se ele estivesse dizendo para si mesmo, em algum outro momento do espaço-tempo, ou, talvez, se referindo ao outro garoto de Leave The Bourbon…, aquele que segurava a mão de Jennifer.

“Eu sei que ainda há uma esperança, tem muita gente tentando me ajudar a superar” e “nós éramos algo tão bom” denunciam o desespero do rapaz em tentar reatar com Jenny [que aqui não tem seu nome nem apelido mencionados].

E depois do segundo refrão, vem, no break, o grande momento da trilogia: o assassinato.

“A maré alta não pode esconder uma garota culpada, com corações ciumentos que começam com gloss e cachos” evoca nossa imaginação a um píer, tarde da noite, onde o narrador combinou de se encontrar com Jennifer e tentar convencê-la a voltar com ele. Com a negativa, num provável ato de desespero ébrio e enciumado, ele, então, tira a vida da amada.

A ambígua estrofe “I took my baby’s breath beneath the chandelier” revela a genialidade da composição, pois pode ser traduzida de duas formas: a romântica-metafórica — “Eu deixei meu amor sem ar debaixo do lustre” — ou a crueza literal: “Eu tirei o ar do meu amor debaixo do lustre” [sim, estou falando de sufocamento, caso não tenha ficado claro].

O tal lustre citado é uma alusão ao céu, formado por “estrelas e atmosfera”. “E então eu a vi desaparecer no show da meia-noite” — eu não sei vocês, mas pra mim tá bem claro que o maluco matou a mina e jogou o corpo no mar.

O terceiro e derradeiro capítulo da nossa trilogia vem com a já citada Jenny Was a Friend Of Mine. O interrogatório também é repleto de afirmações de duplo sentido e que se conectam com as outras músicas.

“Ela não conseguia gritar enquanto eu a apertava forte” dá a entender o relato de um abraço forte em Jenny, mas que, na verdade, seria o momento do sufocamento. “Eu não ficarei satisfeito até te abraçar bem forte”, lembram? “Ela disse que me amava” é outra frase encontrada nos dois capítulos finais.

E pra não deixar dúvidas, nas versões ao vivo de Jenny…, Brandon Flowers se notabilizou por fazer um gesto de enforcamento com uma das mãos e mudar a letra: “Ela chutou e gritou enquanto eu segurava a sua garganta”. Macabro.

The Murder Trilogy ao vivo

Apesar da grande história desenvolvida, a trilogia do assassinato só foi tocada ao vivo em raras ocasiões. O site Setlist.fm tem o registro de dois casos: na cidade de Athens, no Estado da Geórgia [EUA], e em Sydney, na Austrália — ambos em 2007.

No YouTube, encontrei essa gravação remasterizada de um show que, segundo o autor do upload, rolou em Las Vegas, entre 2006 e 2007.

Inspirações

Como um grande fã de The Killers nos anos 2000, a Murder Trilogy me fascinou. Para além de três grandes músicas [sobretudo as duas de Hot Fuss] e do “easter egg” que elas guardavam, as composições revelam a vocação criativa do quarteto para contar grandes histórias — um dos segredos para o sucesso estrondoso que conquistariam a partir de então.

Brandon Flowers, é claro, não tirou absolutamente tudo da sua cabeça do zero. Em entrevistas, revelou ter se inspirado em duas fontes. Ao The Guardian, em 2006, o vocalista disse que a ideia de compor músicas sobre assassinatos veio da canção Sister, I’m A Poet, lançada por Morrissey em 1993. A frase “The romance of crime” [“O romance do crime”] ressoou forte dentro dele.

Além disso, Jenny Was a Friend of Mine foi baseada em uma história real: o assassinato de Jennifer Levin, famoso na década de 1980 como o caso “The Preppy Murder”. Em 26 de agosto de 1986, a jovem de 18 anos foi encontrada sem vida no Central Park, em Nova Iorque, morta por Robert Chambers.

Chambers, antes de confessar o crime, tentou se justificar, dizendo que “Jenny era uma amiga”, e, depois, tentou meter que ela teria morrido depois de atacá-lo durante o ato sexual.

Em 2019, um documentário chamado The Preppy Murder: Death in Central Park se aprofundou no caso, trazendo relatos inéditos e imagens exclusivas. Eram os anos 80. Jennifer Levin foi descrita como promíscua, e boa parte da imprensa dos Estados Unidos comprou a versão da defesa de Chambers, quase culpando a vítima pela própria morte.

No fim, Robert foi condenado a apenas 15 anos de cadeia, de 1988 a 2003. A mãe de Jenny, Ellen Levin, viu, indignada, o criminoso pegar posteriormente uma condenação maior por tráfico de drogas do que pelo assassinato de sua filha.

The Killers no Brasil

O Killers é uma das principais atrações do Primavera Sound São Paulo. Em 02 de dezembro, o grupo fecha o Palco Corona, a partir das 21h35. Antes, no dia 30 de novembro, se apresenta em show solo no Tokio Marine Hall, também em São Paulo.

Será que vai tocar Jenny Was a Friend of Mine?

Flávio Lerner

https://flaviolerner.medium.com/

Editor-Chefe do Music Non Stop.

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