Tesouro das baladas do país

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Não é só o ar seco de São Paulo neste período de estiagem que me tem feito espirrar. Há duas semanas, tenho revirado flyers, mexido em gavetas empoeiradas procurando fotos, desenterrado roupas e garimpado vinis velhinhos meus e de um batalhão de gente de várias épocas e tribos diferentes, mobilizada numa gincana maluca com uma só missão: montar uma exposição que será inaugurada em 30 de setembro (prometo para logo mais informações) digna da ferveção que é a noite brasileira.

Minha casa, nesses dias de preparação para esta que será a primeira mostra dedicada à vida noturna nacional, está parecendo um depósito, cheia de caixas e sacolas carregadas de verdadeiros tesouros.

São flyers do tempo do onça, discos absurdos sobre os quais eu só tinha ouvido falar e nunca botado as mãos, roupas surradas que em outros tempos serviram para deixar seus donos em dia com a moda, coleções de fitas cassete com sets históricos, recortes de jornais, pôsteres, documentários em vídeo, livros, toca-discos, revistas, sapatos, chapéus e, principalmente, pilhas e mais pilhas de fotos de baladeiros, dos anos 70 até os dias de hoje. Ainda não dá para dar muitos detalhes, mas a exposição está programada para abrir as portas no fim de setembro, em São Paulo.

Para conseguir garimpar material suficiente para contar a história da noite nos últimos 40 anos, foi preciso ir atrás de quem ajudou a construir tudo desde os primórdios. Depois de montar uma lista com mais de cem pessoas que poderiam ajudar, emprestando materiais, e botá-las numa planilha, separadas por décadas, veio a hora de efetivamente ir atrás dos tesouros. Numa cidade como São Paulo é preciso dar um salve especial para os motoboys, porque sem eles uma operação como essas seria inviável.

Mas eis que sábado lá estávamos eu e meu marido às margens da represa de Guarapiranga, extremo sul de São Paulo, numa cena que parecia tirada de A Ilha da Fantasia (para quem tem menos de 30 anos, era uma série de TV que envolvia turistas e staff de um hotel numa ilha paradisíaca).

Esperávamos ali o empresário da noite Ângelo Leuzzi, que foi dono do Rose Bom Bom, lendária casa noturna dos anos 80, e sócio do B.A.S.E., clube que apresentou a música eletrônica para a classe média, e Lov.e, outro marco da noite, que viu cenas como a do drum”n”bass e a do techno explodirem em São Paulo no fim dos anos 90 e começo dos anos 2000.

Um cara com esse histórico pedia um garimpo in loco – imagine o que seria um motoboy atravessando a cidade com três décadas de “noite” na garupa. Leuzzi deu as coordenadas para o encontro: “Me esperem no bar tal, de lá vai dar pra ver um píer azulzinho”. Enquanto esperávamos tomando um chope, ele chegou de lancha pra nos buscar. Depois de alguns minutos, atravessando a represa, estávamos em sua bela casa, onde o boxer Hans olhava quase tão curioso quanto nós para caixas abarrotadas, prontas para serem defloradas.

Mergulhar a fundo, por exemplo, na história da concepção do Lov.e, clube que eu frequentei e muito, me deixou emocionada. Cuidadoso, Leuzzi tinha guardado até as folhas de fax que ele e sua então namorada, Flávia Ceccato, trocaram com o artista responsável pela concepção visual do clube, o americano Peter Schroff. Isso em 97.

Dos anos 80, uma das imagens que me fizeram tremer foi um slide com um grupo de punks sentados na frente do Rose Bom Bom original, na Haddock Lobo. Isso sem falar no cardápio em alumínio do B.A.S.E., filho único de seu “pai”, que o emprestou com a expressão no rosto de quem está deixando a filha adolescente sair com um namorado novo.

Queria aproveitar para agradecer a todos que têm ajudado a mim e à minha equipe (Gaia Passarelli, Camilo Rocha, Vitor Angelo e Lísias Paiva), emprestando esses objetos de altíssimo valor sentimental. A gente sabe que está lidando com relíquias inestimáveis e insubstituíveis. Mas certamente o resultado vai valer a pena. Agora, com licença, que preciso voltar para a minha cápsula do tempo.

Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo de 06/09/2010

Claudia Assef

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Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

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