Sertanejo no Rock in Rio Chitãozinho & Xororó. Foto: Reprodução

Sertanejo no Rock in Rio: oportunismo, preconceito ou síndrome de vira-latas?

Jota Wagner
Por Jota Wagner

A invasão da música sertaneja ao festival brasileiro soou, na opinião pública, como uma profanação a um solo sagrado. Faz sentido?

Na edição em que comemora 40 anos, a organização de um dos maiores festivais do mundo, o carioca Rock in Rio resolveu abrir de vez as portas da venda, admitindo o rentável e popular sertanejo em sua programação. Chitãozinho & Xororó, Ana Castela e Luan Santana, entre outros do gênero, se apresentarão.

Ainda que recente — e em meio aos borbulho de indignação e surpresa entre jornalistas, público e profissionais do meio —, já é possível dar algumas braçadas para além da arrebentação causada pelas discussões calorosas e boiar um pouco na reflexão. As perguntas, feito águas-vivas, vão passando por debaixo da gente. Se o Rock in Rio “nunca foi rock”, como admitiu a filha do dono e empresária Roberta Medina, por que então a música sertaneja demorou tanto para figurar nos line-ups? Afinal, são os artistas brasileiros mais ouvidos das plataformas. Além disso, dentre os ritmos populares, por que só o sertanejo causa urticárias em tanta gente, ao invadir um festival do tamanho do RiR?

São perguntas que se desdobram em muitas outras. Possível, neste momento, é começar a posicionar as hipóteses na tábua de ouija pela qual passearão os espíritos que regem o bilionário mercado da música pop nos dias atuais.

Uma vez perguntamos a um dos diretores artísticos do Rock in Rio qual a função de um festival no mundo de hoje. Afinal, as pessoas podem ir ao Allianz Parque para ver um show único de seu artista predileto, ou a uma casa menor, para efetivamente ver a banda que amam, em vez de acompanhar toda a apresentação por um telão gigante ao lado do palco.

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A resposta foi que um festival deve oferecer apresentações que o público não veria em outro tipo de evento. Além disso, tal aglomeração de artistas grandes em um lugar só faz com que as pessoas tenham acesso a diferentes tipos de música e pessoas.

No caso do Rock in Rio 2024, essas respostas não são satisfatórias. Afinal, por mais que se odeie música sertaneja, é praticamente impossível para um brasileiro não ter acesso a ela. Está em todo lugar. Muito menos ver, em um show do estilo, algo diferente. Dada sua magnitude financeira, o gênero se estrutura em um engessado formato estético, necessário para dar mínima chance ao erro e, consequentemente, a um prejuízo milionário — assim como o K-pop e tantas outras megacorporações musicais.

No entanto, por mais que a música salve e que a arte seja a expressão sublime da existência humana, a matemática segue soberana. E o Rock in Rio faz cálculos e identifica oportunidades. Em um país abarrotado de festivais, muitos deles franquias internacionais disputando a tapas o limite do cartão de crédito dos jovens, a estratégia de atrair novos mercados pode ser uma saída genial. E espalhado por todo o interior do país, o gigantesco público que alimenta financeiramente a música sertaneja estava sendo deixado de lado. Centenas de festivais brigam pelo jovem urbano, também periférico, mas nunca olharam para a nação de chapeludos e chapeludas.

Por tabela, Roberto Medina aproveita para se apresentar como um empresário artístico destruidor das muralhas do preconceito. Que o Rock in Rio nunca foi um festival somente de rock, todo mundo já sabia. Mas por que samba, funk e trap estiveram presentes nas últimas edições (e de tantos outros), sem execração pública?

Uma das respostas poderia ser a da origem social (e, nos últimos tempos, política) da música sertaneja; funk e samba são ritmos da quebrada. Incorreto. Associar a música sertaneja a caminhonetes, chapéus e botas caras é o mesmo que achar que todo rapper tem carro importado rebaixado e cordão de ouro no pescoço. A indústria da música pop vende, a quem paga o ingresso, apenas o sonho. Não sua realização.

Quem limpou a clareira, arou a terra, plantou e regou a música sertaneja é o jovem pobre do interior, dos municípios minúsculos nos confins do Brasil, tão explorado e tão sem oportunidades como o jovem periférico. E, nem de longe, branco. O agro pop não é o das fazendas gigantescas e tratores milionários.

Como um terceiro elemento para tumultuar essa rinha, há de se adicionar também um certo complexo de vira-latas em relação à música do campo. Beyoncé acaba de lançar um disco de cowboys, com diversos parceiros do universo sertanejo de lá. Os roqueiros das antigas idolatram Bob Dylan. “Indie folk”, de bandas como Mumford & Sons, é um gênero hypado pelos moderninhos brasileiros.

Música que bebe com absoluta naturalidade na cultura sertaneja, caipira, dos Estados Unidos. Se desdobrou e se desenvolveu tanto que iluminou todo um caleidoscópio musical. É difícil, em um festival estadunidense, europeu e brasileiro, não encontrar essa sonoridade.

Talvez seja tarde para correr atrás dessa miscigenação musical, que teve seus momentos no Brasil, com o rock rural de bandas como , Rodrix & Guarabira. Resta a todos, agora, o pavor congelante de que a música sertaneja brasileira tome conta de seus amados festivais.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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