Festival de Verão Foto: Duane Carvalho/Divulgação

“Não se faz festival sem coragem, porque tem tudo para dar errado”: um papo com o diretor artístico do Festival de Verão

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Responsável por mudar a cara do evento baiano, Zé Ricardo entrega a receita para se fazer um grande festival

Pela primeira vez na Bahia, Caetano Veloso apresentou o show onde toca o álbum Transa, de ponta a ponta. Foi um dos grandes momentos do festival, que teve seu line-up permeado pelos “encontros” promovidos pela curadoria. Foram de Daniela Mercury com Ilê Aiyê e Margareth Menezes a Seu Jorge e Mano Brown, passando por Gloria Groove e Péricles.

Mas como é colocar um line em pé, com tanta gente? Muitos que nunca se apresentaram no mesmo palco, conciliando agendas, estrutura, equipamentos… Zé Ricardo, tarimbado diretor artístico de grandes festivais (Mega Ricardo, como é chamado entre seus colegas), o homem responsável por mudar a cara do Festival de Verão de Salvador, hoje com 25 anos, nos contou.

No papo, Zé fala sobre pequenos e grandes eventos, narrativas musicais e, principalmente, paixão pelo trabalho hercúleo de juntar um time tão diferente para jogar em prol da música.

Festival de Verão

Caetano Veloso no Festival de Verão de Salvador. Foto: Duane Carvalho/Divulgação

Jota Wagner: Qual foi o objetivo do pessoal do Festival de Verão ao trazer você para a direção artística?

Zé Ricardo: Eles queriam que o festival se comunicasse de uma maneira global, e não só de uma maneira regional. Ressignificar a marca. Só que esse processo é duro, porque você passa por várias etapas para chegar nesse lugar. Você tem uma mudança de público, que achava que seu festival era de um jeito e agora vai entender que é de outro, mas leva um tempo. Precisa de muito rigor.

Eu acho que no primeiro ano (2023) a gente já se posicionou como um festival global, que tem uma conexão não só com o Brasil todo, mas com o mundo, e nesse segundo ano viemos para bater o martelo com isso.

Quando você sentou na cadeira de diretor, o que veio à cabeça? É um rolê com mais de 20 anos…

Primeiro, eu tive muito receito de aceitar o convite. A Bahia é um polo cultural muito forte. Existe muita produção de cultura aqui e eu sou carioca, apesar de ter uma relação muito grande com o estado, já que comecei minha carreira tocando com o Moraes Moreira.

Mas é preciso ter um mergulho muito grande. E pensei, também, em até que ponto as pessoas queriam realmente aplicar essas medidas de transformação. É aquela história: tem gente que quer ficar magro e com a barriga trincada, mas não quer ir para a academia. Então, é um mergulho muito forte. Mas entendi que a gestão do festival queria, e então foi!

Comecei a pesquisar tudo o que acontece na Bahia, principalmente nesta época do ano, e vi que tem uma oferta muito grande, com artistas de todos os cantos do Brasil, em shows de graça. Para um festival que cobra ingresso, é muito complexo competir nesse lugar.

Então, pensei em criar o projeto dos encontros justamente porque o que faz a diferença é ter um momento único. O cara pode ver o show da Gloria Groove, que tocou aqui em novembro. Mas, Gloria Groove recebendo o Péricles para cantar cinco músicas juntos, isso só rolou com a gente. Isso traz um ineditismo, não só para o público, mas para as marcas que patrocinam, para a imprensa, tem muita história para contar.

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Gloria Groove e Péricles no Festival de Verão de Salvador. Foto: Lucas Leawry/Divulgação

Como funcionou a escolha desses encontros? Você propôs a união dos artistas que dividiriam o palco?

Na verdade, em todos os projetos que eu faço, o encontro não é uma imposição, mas uma construção. Muitas vezes você chega com uma ideia e o artista dá uma lapidada. Por exemplo, cheguei para o BaianaSystem e propuz um show junto com um bloco afro, sugerindo o Timbalada, e eles respondem: “nosso sonho é o Olodum“. “Então bóra, vamos fazer!” Ficou foda!

Eu dou um norte, e a partir daí todos desenvolvem juntos. Às vezes, o artista propõe um nome que não tem nada a ver em termos de curadoria. É só uma vontade dele mesmo. Nas conversas, a gente decide por buscar outra pessoa. Tem uma construção.

O encontro é de verdade. A mágica é que os artistas estão felizes em fazer aquilo. Eles estão motivados. Por exemplo: Seu Jorge já participou de discos dos Racionais e também do Boogie Nights [disco solo de Mano Brown], mas o Mano Brown nunca tinha cantado em um show do Seu Jorge. E eles são amigos!

Quais são as maiores dificuldades em montar o line-up de um festival tão grande quanto esse?

Existem muitos obstáculos. O primeiro é você não se repetir, ter a certeza de que está fazendo alguma coisa inédita. Segundo, seu line-up é um espelho da sociedade, enquanto diversidade, pluralidade. E também, você conseguir se conectar com o público que você quer atingir.

Um diretor artístico é um propositor. Um festival é sobre troca de público, você entra nele e sai de lá com alguma coisa que você não tinha antes. Você sai transformado. Essa responsabilidade de fazer propostas para as pessoas tem de ser um norte. Eu também penso sempre em uma narrativa, colocando os artistas como protagonistas dela.

No Festival de Verão, estou falando de pluralidade e diversidade. E esses artistas é que são protagonistas dessa história.

A dificuldade é encontrar a coerência. Porque não é sobre estilo de música: colocar dois caras que fazem samba, dois que fazem rap. Não é sobre isso. É sobre que olhar você vai apresentar ao público, um dia após o outro. Um show complementa o outro.

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Palco Ponte. Foto: Duane Carvalho/Divulgação

O momento pós-pandêmico trouxe algo diferente ao seu trabalho?

Trouxe, mas muito mais de uma maneira operacional…

Muitos festivaleiros reclamam de custos…

Tudo teve um aumento de 40%. Banheiro químico, grade, cachês… Mas você não pode repassar isso para o ingresso, porque o público ficou muito tempo sem trabalhar. Então você tem o mesmo volume de patrocínio, só que o seu custo aumentou. Obviamente, você tem de repassar alguma coisa desse custo para o ingresso, mas não os 40%.  Se você passa 10%, ainda fica com um défict de 30%.

Também tem acontecido uma demanda muito grande de festivais. Uma demanda que não é muito real, mas está acontecendo.

Vai até quando essa “bolha” nos festivais?

O que eu sinto é o seguinte: o boom da vontade do público de sair de casa, de se encontrar, foi maravilhoso. A economia deu uma subida e as pessoas estão otimistas, comprando seus ingressos no cartão de crédito. Parcelando-os. Essas prestações logo vão se encontrar. Quando isso acontecer, as pessoas não vão poder mais ir a seis ou dez festivais. Então, elas vão escolher os que proporcionarem a melhor experiência, a coisa mais única.

O Rock in Rio, por exemplo, não entra nesse lugar, porque é um festival que é de experiência. Se você tiver dinheiro para ir em só um festival, você vai no RIR. Ele vai te entregar algo que outro não vai.

O Festival de Verão caminha para isso. Para um acabamento de ser um festival onde, se as pessoas tiverem de escolher, vão optar por ele, que tem coisas únicas, uma experiência melhor. As pessoas precisam confiar em uma marca. Essa é a dificuldade da montagem de um line-up e da estrutura.

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Lulu Santos e Gabriel o Pensador no Festival de Verão de Salvador. Foto: Lucas Leawry/Divulgação

A juventude brasileira escolheu o festival como o seu rolê nos últimos tempos. O que os festivais têm, que seduz tanto?

O festival tem uma coisa sedutora, que é o “não saber”.  O não saber seduz muito.

Você vai para ver uma coisa, mas não sabe o que vai encontrar a mais. Essa sensação de que vai encontrar pessoas que não são só o seu público. Gente que é diferente de você e que pode se interessar.

Acho que é um movimento inconsciente do cérebro das pessoas. Nossa mente é programada para buscar o novo. Cientistas dizem que nós estamos sempre buscando novas soluções para o mesmo problema. Mas a gente atrofia nossa mente tentando ficar presos em conceitos ultrapassados, que não levam ninguém a lugar nenhum. Somos nós que damos uma invertida na nossa mente.

Eu acho que o festival propõe o novo. Tem uma frase do Gilberto Gil que é maravilhosa: “o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. A música, antigamente, era assim. Você comprava um vinil maravilhoso e saía contar para os amigos. “Já ouviu? Não? Então vamos lá pra casa!” Ficavam os dois, olhando para cima, malucos, ouvindo o vinil.

Fazer curadoria de festival é uma projeção desse comportamento adolescente?

Exatamente. O que eu estou fazendo é propor: “olha galera, eu vou mostrar pra vocês agora o Àttooxxá, escuta!”. É isso o que um diretor artístico faz. Ou pelo menos, é isso que eu faço (risos)!

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Àttooxxá no Palco Ponte. Foto: Duane Carvalho/Divulgação

Os festivais pequenos e médios estão tendo que se encaixar dentro de uma agenda concorrida de eventos. Que conselho você daria para quem faz festivais menores?

Existem duas coisas básicas para se fazer um festival: rigor e coragem. Você não faz um festival se não tiver coragem, porque, na verdade, um festival tem tudo para dar errado.

A verdade é essa. Num evento de música, morrem pessoas. A sua responsabilidade, o seu comprometimento com absolutamente tudo, tem de ser inegociável. Segurança não é negociável.

E rigor, porque você é muito seduzido a colocar o número 1 do Spotify porque aquele cara vai vender. Mas aí você não está construindo marca, uma história. Um festival que não está trabalhando no almoço para pagar a jantar precisa ter rigor de curadoria. Tem uma proposta clara. Ele não confunde o público dele.

O público sabe o que é um festival que tem alma e curadoria. Por isso, ele se conecta com ele. Por isso, ele vai e vira um fã. Um festival tem de buscar fãs, e não só vender ingresso. Tem de fazer com que a marca possa ser objeto de desejo das pessoas. Que as pessoas não possam deixar de ir. E isso requer rigor e coragem.

Os festivais independentes do Brasil, os que acontecem em Manaus, Minas, Recife… esses, que colocam seis, sete mil pessoas em cada edição, eles são heróis! São espetaculares. São eventos que fomentam as músicas que serão ouvidas nos próximos anos. Que abrem espaço para os artistas. Que preparam artistas para estar no palco do Lollapalooza, do Festival de Verão, do Rock in Rio…

São maravilhosos. E pela curadoria ser feita por pessoas apaixonadas — geralmente os donos, que vendem casa, carro, penhoram bens da mãe para fazer o evento —, esses festivais vêm com uma capacidade artística muito mais potente do que o de um produtor que não entende nada de música e está afim de fazer dinheiro.

Tem mais um ingrediente que deve ser colado. Paixão.

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Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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