Calor escaldante e grandes performances marcaram o primeiro dia deste Primavera Sound São Paulo
Texto por Claudia Assef e Flávio Lerner
Fotos por Tati Silvestroni e Observadordaimagem
Grandes festivais têm se especializado em virar arenas de entretenimento, populados por rodas gigantes, muitas ativações de marcas e influenciadores dos mais diversos. O primeiro dia da segunda edição do Primavera Sound São Paulo, que aconteceu neste sábado, 2, no Autódromo de Interlagos, mostrou que a franquia espanhola preferiu optar pela música em detrimento dos “acessórios”.
Sob um calor de 40ºC, o público que chegava no início da tarde foi recebido com sol de rachar e nenhuma nuvem no céu. A ocupação do Autódromo, com poucas ativações de marca e nada de brinquedos, privilegiou o deslocamento entre os quatro palcos (São Paulo, Barcelona, Corona e TNT Club, uma arena redonda e fechada, criada para abrigar atrações de música eletrônica).
Mas o que fez brilhar os olhos das 50 mil pessoas que foram ao Primavera nesse primeiro dia foi certamente a curadoria — um misto de novidades, com nomes consolidados em seus nichos e grandes artistas com décadas de experiência.
A maturidade do desenho curatorial se espelhou no público, que variava entre geração X e millenial. A atmosfera era mais tranquila, porém não menos empolgada diante dos grandes shows que preencheram os palcos ao longo do dia.
Shoegaze e hits da Funhouse
O line-up do Primavera é recheado de ótimas surpresinhas que nunca são óbvias. Já no início da tarde, a banda londrina Black Midi trouxe seu indie esquisito e nervoso, monstrando que fazem jus ao posto de herdeiros diretos do Primus (lendária banda do baixista e vocalista Les Claypool).
Eles, que já tinham se apresentando no Primavera na Cidade, quarta (29), no Cine Joia, chegaram prontos para provar a força de um power trio, e conseguiram arrastar o público que chegava para o Palco Corona.
As pessoas se refrescavam com a ajuda dos pontos de hidratação, que distribuíam copos de água gratuitamente — como sabemos, é preciso que aconteça alguma tragédia para o óbvio virar lei. O dia só estava começando, então a estratégia de gastar versus poupar energia seria vital. Foi quando, depois da catarse energética do Black Midi, mais um show de alta demanda das pernas desembarcou no palco Barcelona, a banda canadense Metric.
Com mais de duas décadas de história, o grupo liderado por Emily Haines trouxe inúmeros hits na bagagem e não se deixou abalar pelo calor. Fez os indies que frequentaram casas como Funhouse, Milo Garage e Torre do Dr. Zero lembrarem de noites memoráveis ao som de pérolas como Help, I’m Alive e Combat Baby, com Emily no melhor estilo Debbie Harry, cool e sexy sem ser vulgar.
Como se não precisássemos de um intervalo para respirar, eis que os suecos do Hives começam a sua jornada de hits no palco Corona. A banda era mais uma dentre as atrações internacionais a ter certo odor de nostalgia. Na ativa desde os anos 90, passaram por diversas fases, e agora marcaram seu retorno com The Death of Randy Fitzsimmons, primeiro álbum em nada menos que 11 anos.
Aguentando o calor na raça, devidamente uniformizados com seus ternos pretos, os suecos entregaram exatamente que se esperava deles: energia e rock’n’roll frenético, com desfile de hits dos anos 2000 e várias tentativas de falar português por parte de seu frontman, Per Almqvist.
Felizmente, a lógica de distribuição dos palcos concentrou os quatro num raio de distância aceitável e que não inviabilizou o bate e volta entre um e outro. Após o suadouro do Hives, havia três opções bem tentadoras: Slowdive, no palco São Paulo, CSS, no Barcelona, e L_cio, no TNT Club.
Finalmente um show mais “tranquilo” e o momento mais apropriado para estender uma canga, o Slowdive atraiu quem queria um som mais viajante e uma oportunidade para descansar as pernas. A experiente banda formada no final dos anos 1980, na Inglaterra, trouxe o peso onírico do shoegaze para lá de bem tocado e um bom domínio técnico do poderoso soundsystem do palco à beira da perfeição.
Os fãs, muitos de camiseta com estampa da banda, puderam se deliciar com a chapação dreampop do grupo, apesar da ausência dos vocais de Rachel Goswell, que estava com uma infecção e foi substituída por Neil Halstead.
Homenagens: de Bezzi a Rita Lee
Celebrando 20 anos de existência, o Cansei de Ser Sexy não fez feio no Palco Barcelona, mas estabeleceu muito mais conexões com o passado do que com o futuro. Tocou seus hits, agradou os fãs e tirou risadas com o carisma de Lovefoxxx e as animações propositalmente toscas que passavam no telão, fazendo referências a memes, desenhos e games dos anos 1990 e 2000.
Somente uma galera muito específica se identificaria com todos esses elementos, e parte dela estava presente, se emocionando no front. Ainda sobrou espaço para Bezzi, música que homenageia o DJ e jornalista Alexandre Bezzi, amigo da banda e personagem da cena noturna paulistana da época.
O contexto de tempo e espaço muito específico que forjou o CSS explica o sucesso da banda, mas também impõe dúvidas sobre a capacidade do grupo em continuar na ativa. O feeling, ao final, foi de que esta tinha sido apenas mais uma reunião esporádica, assim como fora em 2019.
[Clique aqui para ler o review completo do show do Cansei de Ser Sexy.]
A pluralidade do line-up trouxe uma mistura de indie, pop, eletrônico e MPB. E foi sob o manto da divindade que a principal atração nacional da noite se apresentou. Marisa Monte fez um show cheio de hits, que culminou com uma emocionante homenagem à Rita Lee ao lado de Roberto de Carvalho, que, emocionado, a acompanhou no palco.
Juntos, eles tocaram Doce Vampiro e Mania de Você.
Enquanto isso, no Palco São Paulo, a norte-americana Kelela encarava sozinha a missão de comandar um show num espaço daquele tamanho. Acompanhada por bases pré-gravadas, ela se desdobrou entre preencher o microfone e o ambiente, com músicas lançadas ao longo dos quase dez anos de carreira.
Com projeção elegante, que trazia elementos monocromáticos como forma de ajudar no preenchimento do palco, ela fez um show potente e moderno: “Só de estar acompanhada dos olhos de vocês eu já me sinto segura”. Bonito.
Rave da geração X
Era chegada a hora de ver de perto o show que todo fã de Pet Shop Boys sonhava em ver, uma apresentação da tour Dreamworld, que vem varrendo o mundo somente com os maiores hits da dupla formada em 1981, em Londres, e que nunca deixou parou.
Experiência, repertório, bom gosto. Esse trinômio pautou a noitada do público, que a essa altura concentrava um altíssimo número de fãs que certamente não estavam vendo o Pet Shop pela primeira vez no Brasil — na última contagem, consegui lembrar de umas cinco ou seis passagens por aqui, incluindo a fantástica apresentação no Tim Festival, em 2004.
A movimentação nunca foi um forte da dupla, especialmente no caso do tecladista Chris Lowe, 64, que parece estar respondendo a emails durante a apresentação. Elegante como sempre, Neil Tennant, 69, desfila cantando com a característica voz analisada e quase spoken word, suas letras ácidas e críticas, como Rent (“I love you, you pay my rent”) e Opportunities (“I’ve got the brains, you’ve got the looks, let’s make lots of money”).
Com visuais afiadíssimos no telão, o show não teve nenhum aspecto de saudosismo. Pet Shop fez uma apresentação de melhores momentos da longeva carreira, mas em nenhum momento havia cheiro de mofo no ar. Uma dupla que se apresenta com vontade de tocar, elegantemente saltando de uma década para a outra, seguindo com coerência sua narrativa como observadores da sociedade, cumprindo o papel de hitmakers da dance music.
Entregaram com louvor e foram acompanhados em uníssono pela plateia por diversas fases de sua carreira ali no Palco Barcelona: Where the Streets Have No Name (I Can’t Take My Eyes Off You), Left to My Own Devices, Domino Dancing, You Were Always on My Mind, It’s Alright, Go West, It’s a Sin, West End Girls e, o grand finale, Being Boring, pois está aí uma coisa que nunca foram; chatos.
Desfecho em alta rotação com The Killers
A escolha do The Killers como headliner deste Primavera Sound São Paulo se mostrou acertada. Foi um showzaço.
Brandon Flowers é um senhor frontman — deu tudo de si, foi simpático do início ao fim, arriscou frases em português [confesso que “e aí galera, tudo beleza?” me quebrou], chamou fã pra tocar bateria e parecia genuinamente se divertir o tempo todo. Nasceu pro ofício.
The Killers é uma das maiores bandas de sua geração. Nascida em 2002, rompeu pouco a pouco todas as barreiras e deixou de ser aquele supertrunfo indie para se tornar uma espécie de novo U2 — desde sempre, uma das maiores inspirações de Flowers. Hoje, é inegavelmente uma banda de rock de arena.
Mas nem tudo são flowers. Fãs das primeiras fases do grupo sentiram falta de músicas icônicas, como Bones, Sam’s Town, The World We Live In e, especialmente, Jenny Was a Friend of Mine. A faixa 01 de Hot Fuss — e o derradeiro capítulo da especialíssima Murder Trilogy — talvez seja a maior e melhor representante do “The Killers 1.0”.
Preterida por hits mais recentes, a ausência de Jenny… foi simbólica. Era como se Brandon, o baterista Ronnie Vannuci Jr e cia dissessem aos die hard fans: “Sabem aquela banda indie que era a paixão exclusiva de vocês? Pois é, ela não existe mais”.
[Clique aqui para ler o review completo do show do The Killers.]