Conheça o Museu do Hip Hop de Porto Alegre — o 1º da América Latina
Jota Wagner conversou com o coordenador Rafael Rafuagi para entender como surgiu — e prosperou! — a iniciativa
Inaugurado em dezembro de 2023, o primeiro museu voltado ao hip-hop na América Latina — o Museu da Cultura Hip Hop RS, ou simplesmente Museu do Hip Hop — fica curiosamente em Porto Alegre. Coube aos rappers da capital gaúcha o mérito de integrar o país a um movimento mundial: o de registrar a história do gênero musical surgido na segunda metade do século passado, em Nova Iorque. Nasceu lá, mas já nos anos 80 se tornou relevante (imprescindível, na verdade) para jovens periféricos de boa parte do mundo.
Todo mundo se perguntou: “mas… Porto Alegre?”. Por que o primeiro museu do continente não foi criado na Cidade do México, em São Paulo, ou Medelin? Conversando com o correria Rafael Rafuagi, coordenador do museu (e de muitos outros projetos atrelados a ele), a gente entende e se apaixona. Há anos, ele e sua turma fazem parte de um movimento sensacional, que valoriza a história do do rap gaúcho e, principalmente, o utiliza como base para transformações sociais.
“Jota, foi a maior treta do mundo fazer um museu do hip-hop no Rio Grande do Sul. Envolver autoestima, ego, a pergunta do ‘quem nasceu primeiro’… Mas a gente foi tão contundente e, de alguma forma, tentou ser o mais justo possível, que até quem era contra, hoje se soma à iniciativa”, conta.
É verdade, os primeiros eventos do museu do hip-hop de POA receberam nomes como Mano Brown, Orochi (RJ) e vários outros. Todo mundo sacou que, não importante onde fosse, estava mais do que na hora do movimento ter um lugar onde sua história estivesse registrada. Na jornada do novo espaço há paixão, há busca por igualdade e justiça, há muita sola de sapato gasta. Preste muita atenção nas palavras de Rafuagi:
“Salvaguardar o patrimônio, a história e o acervo do hip-hop está em processo em todo o mundo. Tendo em vista a chegada do cinquentenário do hip-hop, essas ações afloraram. Teve o Museu do Grafitti, em Miami, o Hip Hop Museum, no Bronx… Quando acessei essa informação, já tendo a experiência com a Casa do Hip Hop aqui em Porto Alegre, surgiu o embrião da ideia”.
Em 2016, o rapper Only Jay, influência na cidade, foi assassinado por motivos banais. A perda bateu forte e foi um incentivo para discutir ideias que resultariam na criação do museu. A história estava se perdendo, e correria o risco de acabar sendo contada apenas nas páginas policiais dos jornais.
“A gente viu, ali, a forma como ele foi enterrado. Ele, Nitro Di [fundador do grupo Da Guedes], fizeram história. O Only Jay foi uma das maiores referências em turntablism, no scratch, na produção de beats. Era um cara carismático, alegre, envolvido com o pessoal da rua. Dependia de nós contar para uma criança quem ele foi”.
O que vemos hoje em Porto Alegre é fruto de um longo processo, no qual Rafuagi pretendeu envolver o maior número de pessoas possível. Fóruns foram organizados nas cidades satélites da capital gaúcha para discutir as histórias locais. Os encontros serviram de orientação para a montagem do acervo. Num segundo processo, chamado Na Estrada, o grupo viajou mais de 1.500 quilômetros pelo Rio Grande do Sul, buscando as origens dessa cultura no estado e recolhendo doações de obras para serem expostas. Hoje, o Museu da Cultura Hip-Hop ocupa uma sede de quatro mil metros quadrados. Claro que não foi nada fácil.
“Havia um estigma, um preconceito por parte da vizinhança com o movimento hip-hop”, continua Rafael. Sacando que era uma turma majoritariamente idosa, o museu desenvolveu uma horta orgânica para integrar a comunidade ao redor, trazendo a vizinhança para dentro do complexo. Mas não se trata só da faixa etária. “O Rio Grande do Sul é um estado totalmente racista, conservador. Nós criamos um movimento de resistência em frente a tudo isso.”
Confira o restante da entrevista!
Jota Wagner: A primeira geração do hip-hop já está entrando na melhor idade…
Rafael Rafuagi: O Gilson Salles tem quase 80 anos, o Gê Powers aqui no Rio Grande do Sul tem 65. Então, tá chegando esse debate sobre envelhecer com saúde, envelhecer no hip-hop. Isso nos ajudou a pensar em um futuro mais digno para essa primeira geração.
O museu é só a ponta do iceberg do projeto de vocês…
Exatamente. Nesses últimos oito meses que ele está aberto, há uma geleira imensa submersa, que dá sustentação a tudo isso. Se não fossem todas as pesquisas que fizemos, o processo de participação popular no movimento, entre outras ações, não seria legítimo como é. Ele é necessário e impactante na sociedade.
Nós já recebemos dez mil visitantes. O museu conta com patrocínio da Petrobrás e da Neo Energia, empresas que somaram em um momento fundamental. Hoje, temos 52 pessoas contratadas no projeto. São trabalhadoras e trabalhadores do hip-hop. Gente da área da produção audiovisual, da comunicação, da museologia, limpeza, segurança…
Temos também os eventos. Tivemos recentemente show do Marechal, lá do Rio de Janeiro, e também uma batalha de breakdance. Durante o desastre das enxentes, nosso museu virou um centro logístico. Juntamos 300 toneladas de donativos. O Mano Brown mandou uma carreta com cesta básica e ração. Filipe Ret mandou 60 mil litros de água. O Hungria nos mandou água. osgemeos mandaram outra carreta com cestas básicas. Vários artistas do movimento se mobilizaram. Ao todo, distribuímos ajuda para mais de 60 entidades sociais.
É o hip-hop sendo hip-hop, né?
Exatamente. Não é de hoje isso aí.
Como é que foi a recepção do poder público, quando vocês chegaram com essa ideia?
Precisou de um tempo. No início do projeto, era eu e um papel embaixo dos braços. Eu fiz uma linha de raciocínio que foi por dois caminhos. A gente precisava de um espaço físico para executar o museu. né? Muitas pessoas disseram para fazer um museu online, mas não teria o mesmo impacto que um museu físico, e não geraria tantos empregos.
Optamos por buscar um espaço físico pela via estadual, no Rio Grande do Sul, e pela via municipal, em Porto Alegre. Tivemos quatro oportunidades de espaços com o Estado, mas todos eles traziam uma problemática. Até que, no final da nossa busca, surgiu esse espaço em Porto Alegre. Era uma cracolândia, tinha mato mais alto que eu. Precisou de muita grana e muito trabalho para transformar num museu.
Vocês tiveram que construir a sede ou era um prédio abandonado?
Era uma escola que foi fechada pelo governo do estado em 2018 por uma argumentação muito falha. Certamente seria destinado à especulação imobiliária. Então aqui, pela área, pela localidade, ia virar um grande condomínio. Conseguimos uma permissão de uso por 20 anos, renovável.
O Ministério Público do Trabalho também nos apoiou, com verba vinda da reversão de multas sobre irregularidades trabalhistas, os TACs. Chegamos a entregar uma carta para o Lula, com reinvindicações para valorizar a cultura hip-hop em todo o Brasil. Então, o projeto daqui surge como algo pioneiro.
O acervo é dedicado ao cenário local, ou também contempla a esfera nacional e mundial?
Tem uma esfera mundial e nacional, mas obviamente, é majoritariamente gaúcho. Mas qualquer pessoa que queira contar a história é convidada a vir participar dos fóruns, das pesquisas e do acervo. Foi um processo tão democrático, justo, participativo, que até quem era contra hoje se soma à iniciativa. Não se trata só de uma parte da história ou de determinados grupos que são os mais famosos ou menos famosos. Tem também muita gente anônima, de dentro das comunidades. Muita gente vem aqui e espera que vai ver só história de gente famosa, e não.
Então, fazer o museu veio com a ideia também de que cada estado brasileiro crie a sua sistemática de museologia do hip-hop. Porque talvez daqui a cinco anos a gente possa pensar a criação do Museu Nacional a partir dessas bases estaduais.
Como o hip-hop brasileiro tem um envolvimento tão único em questões sociais, para além da música?
Eu vejo não só o hip-hop com esse compromisso de responsabilidade social, mas outras culturas também: o funk, a capoeira, o samba… Mas o hip-hop tem algo muito particular. Ele parte desses quatro elementos pilares fundamentais, que são o MC, o DJ, o grafite e o break. E o Brasil foi o país que, junto aos Estados Unidos, incentivou a criação desse quinto elemento, que é o conhecimento.
Quando a gente traz essa prática do conhecimento, talvez a gente consiga entender como lutar contra essa desigualdade social tremenda, essa falta de equidade entre os muitos setores da sociedade, em especial homens e mulheres. Aqui no Rio Grande do Sul, quando eu falo do racismo e da questão conservadora, está atrelado à relação colonial que o Brasil tem. Fomos um dos últimos países a abolir a escravidão, somente em 1888. Então há um propósito, há um caminho a ser percorrido, e tudo isso parte também dessas exemplificações, como o nosso museu aqui, de que é possível através de processos coletivos, participativos e democráticos.