Michael Jackson Imagem: Reprodução

15 anos sem Michael Jackson: a figura mais ambígua da música pop

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Mirando em Peter Pan, Michael Jackson acertou no personagem de O Médico e o Monstro. Abusador ou abusado? Vítima ou algoz?

Há 15 anos, os principais canais de TV dedicados à música nos Estados Unidos, como MTV e BET, começaram a exibir maratonas de videoclipes de Michael Jackson. A internet teve um aumento de tráfico de até 20%, causando quedas de serviços de gigantes como AOL e Google. Ao ligar a TV, o assunto era unânime: o astro havia morrido de ataque cardíaco aos 50, causado pelo exagero de remédios administrados por seu médico, apenas duas semanas antes de começar uma turnê mundial com ingressos completamente esgotados. O mundo se despedia do Rei do Pop.

A noticia foi um terremoto que separou a figura do ídolo em duas placas tectônicas distintas no mundo do entretimento, e ambas se distanciam cada vez mais, conforme o passar do tempo. Em uma, dança o garoto prodígio, cantor, músico e dançarino incrível, como o mundo jamais havia visto. Vítima das piores agruras da vida. Explorado quando criança pelo próprio pai. Um artista que tentou, durante toda a sua vida, recuperar a infância perdida, e cuja inocência infantil foi abusada por pessoas gananciosas até o dia de sua morte.

Em outra, vivia, na mente das pessoas, o abusador de crianças, frio a ponto de criar um parque de diversões na própria casa com a intenção de atrair jovens deslumbrados pela oportunidade de conhecer um astro famoso. Um monstro que se aproveitou de crianças com câncer, prometendo tratamento, ou contratando astros mirins do outro lado do mundo e trazendo-os para morar com ele.

Michael Jackson, o garoto prodígio

Michael Jackson

Foto: Reprodução

Os superlativos fizeram parte do destino de Michael Jackson, para o bem e para o mal. No que diz respeito à sua carreira artística, não existe ser humano vivo que conteste sua genialidade. Começou sua carreira artística ao oito anos de idade com o grupo Jackson Brothers, que mais tarde se tornaria conhecido em todo o mundo como os Jackson 5. Um projeto criado pelo pai, Joe Jackson, boxeador aposentado e músico frustrado que viu nos filhos uma verdadeira mina de ouro. O menorzinho dos irmãos já era reconhecido como o grande talento da turma.

No final da adolescência, conseguiu a duras penas (e processos judiciais) se livrar das amarras paternas e partir em carreira solo. Aliou-se ao Midas da soul music, Quincy Jones, e lançou álbuns que mudaram o mundo da música, aliando canções incrivelmente populares com uma qualidade técnica inimaginável. E não parava por aí. Além de fazer música de primeiríssima qualidade, Michael era um showman perfeito. Desenvolveu um estilo de dança que seria copiado por garotos e garotas de todo o planeta em seus quartos, quintais e pátios da escola. Enfileirou álbuns perfeitos entre 1979 e 1987, momento em que reinou absoluto nas paradas de sucesso e recebeu, merecidamente, o título de Rei do Pop.

Para se ter uma ideia do gigantismo artístico de Michael Jackson, em uma cena do documentário This Is It (2009), com cenas dos bastidores para a turnê que faria se não tivesse falecido, o artista aparece ensaiando com sua enorme banda em um estúdio, mas algo parecia incomodá-lo, toda vez que chegava sua hora de começar a cantar. Mandava parar a música e começar de novo. “Tem algo errado”, comentava. Depois de algumas tentativas, virou-se para um dos guitarristas no canto da sala. O músico não estava tocando a sétima nota de um dos acordes. No meio da execução, o astro identificou um erro mínimo, de um instrumento que ele não tocava, o que o tirava da perfeição sonora que seus ouvidos exigiam.

Jackson ganhou fortunas imensas de dinheiro que o levaram, junto com a idolatria de todos que estavam ao seu redor, a desenvolver a mais excêntrica personalidade do mundo da música. Encarnou-se, por vontade própria, no personagem Peter Pan, o menino que não queria crescer, criado por J.M. Bardie. Falava como uma criança de dez anos de idade, construiu para si um rancho com parque de diversões e o chamou de Neverland (a Terra do Nunca, de Peter Pan) e não se preocupava em usar sua fortuna para atrair pessoas, geralmente de índole muito duvidosa. Foi quando viu, a partir da década de 90, seu mundo particular ruir, protagonizando uma tragédia tão gigantesca e onipresente quanto a que construiu no mundo da música.

Michael Jackson, o astro controverso

Música negra Cinebiografia Michael Jackson

Foto: Reprodução

A partir de 1993, Michael Jackson começou a responder por diversas acusações de abuso sexual contra crianças. Em nenhuma delas, foi condenado. Mas a complexidade das histórias foi tamanha, amplificadas pelo fato de estarem acontecendo dentro do pequeno reino do rei-criança-absolutista, que praticamente tudo pode ser contestado, seja em sua acusação ou em sua defesa.

Uma das poucas certezas que se tem sobre a vida de Michael Jackson é a destruição psicológica que sofreu quando criança. A figura paterna, tão importante na construção do ser humano, foi um homem cujo único alimento era a ambição financeira. Para se ter uma ideia de quem era o pai do garoto, logo após a morte do filho, Joe Jackson foi procurado pelo Fantástico, da Rede Globo, para uma entrevista. O cara avisou que aceitaria desde que, em troca, o programa promovesse o novo grupo de garotos que estava empresariando.

Jackson assistia aos ensaios dos filhos com um cinto enrolado na mão. Se alguém errasse, era surra certa. Obrigou os cinco artistas mirins a uma jornada de trabalho análoga à escravidão, e as preocupações pairavam somente no desempenho artístico. No campo dos afetos, era cada um por si. Com 15 anos de idade, durante uma turnê, Michael foi trancado em um quarto de hotel com prostitutas pelos irmãos, que avisaram que ele só sairia de lá após ter perdido a virgindade. O garoto ficou por horas chorando e implorando para sair, e os outros Jacksons só aceitaram libertá-los quando as próprias garotas de programa começaram a exigir que a porta fosse aberta, avisando-os que aquilo estava indo longe demais. Para o pai, tudo havia sido feito pelo bem do garoto, para que se tornasse um artista perfeito. E efetivamente deu certo, no campo técnico. Mas a um custo alto demais, e injusto demais.

Quando Michael Jackson se aliou ao músico e produtor de talento inquestionável Quincy Jones, sua vida se transformou. Lançou Off The Wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987), obras-primas da música. O grosso da fortuna acumulada pelas vendas de álbuns e shows agora ia para ele, e não para um pai opressor. Era seu dinheiro, para que fizesse o que queria. E ele só fez merda.

O Médico e o Monstro

Terror - Michael Jackson em Thriller

Michael Jackson em “Thriller”. Imagem: Reprodução

Para repor o afeto que jamais teve, usou da fortuna aparentemente infinita e foi reunindo, em torno de si, a mais assustadora corja de interesseiros que poderia encontrar. Um lamaçal psicanalítico que fazia com que o astro atraísse réplicas do seu pai. Incluindo aí os pais das crianças com que se envolvia.

Exemplos não faltam. Mirando em Peter Pan, Michael Jackson acertou no personagem de O Médico e o Monstro. Tudo, nas tragédias do cantor, é dúbio e nebuloso. Abusador financeiro ou abusado financeiramente? Vítima ou algoz? Um inocente garoto que só queria fazer a outras crianças o bem a que não teve direito, ou um doido de pedra que achava que o mundo só servia para satisfazer aos seus prazeres?

Percorrer esta fase da biografia de Michael Jackson, além de embrulhar o estômago, confunde completamente nossa capacidade de julgamento, dada a absurda quantidade de versões, becos sem saída, pistas falsas, desmoralização das vítimas (ou seriam vis estelionatários chantageadores?) promovidas por advogados e, principalmente, altos acordos financeiros possíveis em um sistema judicial onde tudo podia ser resolvido na base da grana.

Afinal, de um lado temos um artista com síndrome de Peter Pan, muito visado pela mídia sensacionalista, que constrói para si um mundo protegido do assédio externo, onde tudo é lindo, com parquinho de diversões, carrinhos de cachorro quente e decorações lúdicas e infantis. Do outro, temos um mansão cujo quarto principal esconde um outro, mais ao fundo e bem longe da porta, que é vigiada por um alarme de presença.

De um lado, um astro com trejeitos infantis que afirmava em entrevista não saber o que era interesse sexual, e que todas as relações que tinha com crianças eram puramente fruto de amor (palavra usada à exaustão por Michael Jackson) fraternal. Do outro, uma pequena coleção de revistas pornográficas mantidas no quarto, algumas delas com impressão digital das crianças que lá dormiram. Havia o benfeitor que convidava sempre centenas de crianças, acompanhadas dos pais, para passar o dia brincando junto com o Rei do Pop. Por outro lado, Michael desenvolvia uma “amizade” especial com alguns deles, que eram convidados para acessar sua mansão e, em diversos casos, passar noites dividindo o próprio quarto.

A confusão segue ad infinitum: uma triste, inocente e bilionária celebridade é chantageada por pais inescrupulosos, funcionários que aceitam mentir para a polícia em troca de suborno, advogados e psiquiatras infantis de passado duvidoso. Do outro lado, um cara que sempre usou o dinheiro para conquistar as pessoas, pagando passagens aéreas, financiando tratamentos médicos, presenteando famílias com carros e contratando astros mirins através de suas empresas de gerenciamento artístico.

E o parágrafo mais doloroso para um repórter de cultura que gostaria de estar aqui celebrando uma série de álbuns perfeitos, obras-primas que são ouvidas de ponta a ponta e que ainda causam surpresa e emoção: de um lado, nenhum processo seguiu em frente, com condenações. Uns pararam pela metade, foram retirados mediante acordos ou engavetados por falta de provas. Há apontamentos, por parte da defesa, de depoimentos divergentes por parte das crianças e dos pais, além de vários casos de desmoralização dos acusadores e testemunhas, com comprovações de desvios de conduta no passado. Policiais foram acusados de impor às crianças, nos interrogatórios, declarações que atestavam os abusos, apoiados por uma mídia sensacionalista que transformava todos os envolvidos nos casos em celebridades imediatas — desde o porteiro do rancho Neverland até delegados que davam entrevistas diárias comentando as investigações.

No entanto, é amplamente comprovado por especialistas que, em casos de abuso, o estresse psicológico imposto à vítima é gigantesco, ainda mais em casos com exposição midiática. Além do mais, essas vítimas usualmente reprimem as lembranças traumáticas, interpretando-as de forma menos dolorosa ou simplesmente escondendo-as nos recônditos do inconsciente, e seu verdadeiro sentido só costuma vir à tona na fase adulta. Foi o caso do coreógrafo Wade Robson, “adotado” artisticamente por Michael Jackson quando venceu um concurso de imitações do astro na Austrália, aos cinco anos de idade. É o menino loirinho que aparece dançando em videoclipes como Black and White, Jam e Heal the World.

Robson não só defendeu, como testemunha, Jackson em dois processos contra abuso sexual na justiça dos Estados Unidos, como depôs, no livro Opus, publicado após a morte do ídolo, afirmando que “Michael Jackson é uma das principais razões pela qual eu acredito na pura bondade do ser humano”.

Em 2013, trabalhando como coreógrafo de sucesso em Hollywood, Robson teve dois colapsos nervosos que o obrigaram a abandonar a direção do filme Ela Dança, Eu Danço 4. Começou a fazer a terapia e, durante as sessões, sete anos de abuso vieram à tona, segundo afirmou em um processo que entrou contra o espólio financeiro e duas empresas de Michael Jackson, em 2013. Michael, segundo a acusação, dizia ao pequeno Wade “que eles haviam nascido um para o outro, e que o que faziam era uma expressão do amor”.

Neste momento, você deve estar tão confuso quanto o resto do mundo, e talvez tudo o que já viu, ouviu e discutiu sobre a vida de Michael Jackson o faça mover o pêndulo para um ou outro lado da balança. Mas uma centena de perguntas se ramificam a partir dessas histórias. Como alguém amparado pela melhor equipe de assessores e advogados do planeta não foi advertido de que aquele relacionamento fofinho com crianças poderia resultar em um problema gigantesco no futuro? Como um pretenso Peter Pan se envolve em dois casamentos e tem três filhos, sendo que o primeiro ocorreu um ano após as primeiras acusações na justiça?

Muita coisa mudou na esfera jurídica, tanto estadunidense quanto em outros países, desde que a primeira acusação contra Michael Jackson foi protocolada na justiça. Acordos financeiros não são mais permitidos para encerrar uma acusação em casos envolvendo abuso de crianças. Processos criminais e civis (os que pedem indenizações) devem seguir completamente separados, de forma que as investigações policiais não se encerrem enquanto não houver uma conclusão. Em maio de 2024, o Supremo Tribunal Federal brasileiro decidiu que é proibido desmoralizar uma vítima durante um julgamento.

Michael Jackson cumpriu seu destino. Transformou o mundo, tanto na música, quanto fora dela.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.