Fausto Fawecett Fausto Fawcett e sua performance “Favelost”. Foto: Divulgação

“Kátia Flávia foi o 1º rap de sucesso”: entrevistamos Fausto Fawcett, atração do C6 Fest 2024

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Cantor, escritor, poeta e “arregimentador de pessoas” se apresenta no dia 18, no palco Pacubra, com a performance “Favelost”

“O rap, como ritmo e poesia, é amplo, geral e irrestrito. Vai desde falas de sacerdotes até emboladores nordestinos. Vai de alguém que está rezando, de um louco andando e falando pela rua, até locutores esportivos.” Assim, o cantor, escritor, poeta e “arregimentador de pessoas” Fausto Fawcett, uma das atrações do C6 Fest 2024, justifica sua tese de que Kátia Flávia, presente em seu primeiro disco, Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros, de 1986, foi o primeiro rap brasileiro a fazer sucesso em nível nacional.

Falando comigo desde seu apartamento no Rio de Janeiro, Fawcett se prepara para apresentar aos paulistanos uma espécie de adaptação para os palcos de seu livro Favelost, lançado em 2012. “Desde 2006 faço shows em que incluo trechos do livro. A primeira apresentação em festival, com este formato, foi em 2007, no [festival carioca] Multiplicidade, com a colaboração de mais de 11 artistas plásticos.”

A obra literária — que se baseia em uma espécie de cyberfavela para onde foragidos da justiça e pessoas endividadas fogem para tentar ganhar uma grana em um mundo ilegal — assenta a trama em um terreno em que Fausto Fawcett está acostumado a habitar. O escritor, metaforicamente falando, representa aquele terreno baldio e sujo que resiste em meio ao crescimento desenfreado de enormes cidades paralelas, aglomerações urbanas agarradas em morros ou flutuando em vargens. Enquanto muito se fala, hoje em dia, nos ambientes tecnológicos, realidades virtuais ou multiversos, Fawcett se embrenha, através da ficção, nas comunidades que criam suas próprias leis e regras de comportamento para dar sustentação social ao que ele chama de “manchas urbanas”. É como se ele, na qualidade de poeta e músico, enxergasse e tentasse nos mostrar que existe uma “matrix” diferente.

“Favelost é um enclave, uma mancha urbana, que junta São Paulo e Rio. É uma espécie de Serra Pelada cibernética, terminal, para onde as pessoas vão como um último recurso. O disco e o show tratam de um casal que quer fugir para lá. Mas, para você ter acesso a esse lugar, você precisa passar por um baile. Uma espécie de pedágio dançante para aferir sua resistência. A ideia veio como uma espécie de homenagem a três coisas. A Noite Dos Desesperados [de Sidney Pollack, de 1969], um filme sobre concursos de dança que se faziam durante a grande depressão americana, oferecendo prêmios em dinheiro para o casal que ficasse mais tempo dançando. Realmente, uma noite de desespero. Outra referência era o ritual da Dança de São Vito…”

A chamada Praga De São Vito foi um raro e estranhíssimo surto de histeria coletiva entre os séculos 15 e 17. Pessoas, sem motivo aparente, começavam a dançar e algumas o faziam até a morte. O fenômeno, chamado de dançomania, teve vários episódios registrados na Europa e, no maior deles, atingiu 400 pessoas na França, vitimando vários “dançarinos” de infarto.

“… e, enfim, a última influência para a história foi o Baile da Ilha Fiscal. No momento em que o Brasil estava um tremendo caos, resolveram fazer uma festa. Em Favelost, então, nós narramos a saga desse casal até sua chegada ao baile.”

Realizado em 09 de novembro de 1889, o Baile da Ilha Fiscal foi um dos mais pitorescos episódios da monarquia brasileira. Sabendo de que o país estava próximo de se tornar uma república, o visconde de Ouro Preto, presidente do conselho de ministros, teve a estapafúrdia ideia de esvaziar os cofres públicos dando um baile nababesco no palacete da Ilha Fiscal (no centro histórico do Rio de Janeiro, então capital do país), com a intenção de agradar os simpatizantes da monarquia e mostrar seu poder para sociedade. O tiro, obviamente, saiu pela culatra, e o Baile virou sinônimo de orgia com o dinheiro público.

Favelost, em formato reduzido, já beliscou a noite paulistana antes do C6 Fest, em uma pequena temporada no Madame. A trupe que sobe ao palco enverga nomes como Paulo Beto (Anvil FX), Bianca e Rodrigo Brandão (Leela) e Jodele Larcher (projeções) para apresentar 11 músicas “extremamente dançantes, porque o festival pede isso. Para o projeto, eu pedi ao pessoal uma certa Kraftverve“. O show contará ainda com a participação especial de B-Negão e Fernanda Dumbra, do Fábrica de Animais.

Ao fundir, em sua ficção cyberpunk, São Paulo e Rio de Janeiro, Fawcett segue provocando, coisa que faz desde o início de carreira, e também sugerindo ver, através dos óculos de grossas lentes já integrados à sua personagem, algo que nós não conseguimos. Por muitas vezes, a única similaridade entre as capitais nos parece ser apenas o fato de terem sido largadas, lado a lado, no mesmo país. Conexão entre ambas, só mesmo a Via Dutra.

Mas Fawcett vê conexões justamente na oposição. Uma realidade arredondada em que, de tanto se afastarem uma da outra, se fundem, do lado de lá da esfera. “São Paulo e Rio são os dois grandes faróis. São as duas cidades para onde a grande mídia está sempre olhando. De certa forma, aquele sonho Kubischekiano de decentralizar o Brasil não rolou. Além disso, ambas tem alguns links, como o criminal. Comando Vermelho e PCC“. A política, o crime e a entidade viva resultante deste casamento estão na escrita e na música de Fausto desde o começo de sua carreira.

Escrita e música que, por sinal, estão sempre tão concomitantes que se confundem. Na vida artística de Fausto Fawcett, nunca se sabe o que é livro, o que é disco ou o que é show. Um grande exemplo é justamente seu maior sucesso, Kátia Flávia. A história da “godiva do Irajá”, originalmente, é um longo poema. A leitura de seus versos, recitados por ele no circuito de clubs underground no começo dos anos 80, levava cerca de 15 minutos. Para entrar no seu primeiro disco, foi aparada para caber em uma música de três minutos. Anos depois, finalmente foi registrada em papel, na íntegra, como parte do livro Básico Instinto (1992).

Cacá Diegues, cineasta, perambulava pela noite carioca quando bateu de frente com Kátia Flávia em um desses inferninhos. Sugeriu a Fausto “gravar isso aí em disco” e, aproveitando-se da aconchegante geografia da Zona Sul carioca, onde se podia estar a um passo de qualquer pessoa importante, na década de 80, conectou Fawcett a Andre Midani, icônico diretor da Warner.

De baratas das ruas de trás em Copacabana à presença obrigatória em rádios dos municípios mais distantes, Fausto Fawcett e seus Robôs Efêmeros surfaram no sucesso com o cinismo necessário para escapar de suas armadilhas.

“A gente não esperava isso, porque tinha toda aquela perspectiva alternativa, do underground. Mas, se você prestar atenção, você vai descobrir que várias brechas se abrem dentro do mundo fonográfico. Nos anos 80, você andava na rua e ouvia o sucesso. Desde quando houve o casamento da televisão com a música, você conseguia entender o que fazia sucesso. E era normal você ver alguns artistas cult atingirem um enorme sucesso radiofônico, caso de Arrigo Barnabé, por exemplo, impulsionado pelas novelas de TV.”

Zé Ramalho, no primeiro disco, vendeu um milhão de cópias, com aquele surrealismo todo, que tinha a ver com os cantadores nordestinos, e fez um sucesso incrível. Voltando à Kátia Flávia, por um lado, havia uma possibilidade de fazer sucesso. Por outro, por causa da temática pesada… de colocar Belzebu na letra de uma música… Tem sensualidade, tem violência, tem informações inusitadas, como o míssil Exocet e a história de Lady Godiva, sem dar nenhuma satisfação. Nós colocamos na letra e o ouvinte que se virasse para saber o que era aquilo.”

É fácil, com os olhos de hoje em dia, errar feio na compreensão do primeiro disco de Fausto Fawcett. Um álbum que só é possível nascer na cabeça de um carioca, onde o cult é obrigado a conviver com o brega, com as barracas de rua, as gírias dos crias e a disputa pelo espaço urbano. Não é possível sobreviver no Rio sem cair de cabeça em uma espécie de miscigenação financeira, social. O rico anda de chinelo, o pobre com ouro, e ambos fazem negócios, principalmente subindo o morro.

Fausto Fawcett

Fausto Fawcett e sua performance “Favelost”. Foto: Divulgação

Kátia Flávia serviu a muita coisa. O sucesso foi inesperado, mas tinha uma pertinência com a época — uma época de saída, em termos, do espectro militar. Havia erotismo, um surto de classe média. As antenas estavam ligada para essas brechas. Finalmente, houve também uma conjunção da música com a estética da Rádio Cidade, muito influente no Rio naquela época, com o programa do Chacrinha e das novelas”.

Sem nunca deixar de ser cult, Kátia Flávia efetivamente retratou uma época e também apresentou a paisagem pela qual Fawcett transita e sempre transitou. Na década de 80, enquanto dançarinas à la Cassino do Chacrinha bailavam em tediosos aparelhos de TV em apartamentos pequenos e quentes, lá embaixo, no asfalto fumegante, prostituição e crime viravam manifestações culturais ou, pelo menos, uma forma de manter o trem na linha. A frequência da ação paralela e ilegal foi se transformando em permissividade, explicada para o resto do país através das aventuras de uma esposa de traficante que mata o marido, rouba uma viatura da polícia e anda pela cidade.

Isso é muito Favelost!

No C6 Fest, Fausto Fawcett se apresenta no dia 18 de maio, no palco Pacubra (Arena Heineken & Tenda MetLife), a partir das 23h.

C6 Fest

O C6 Fest é “filho” de dois dos mais renomados festivais brasileiros das últimas décadas, o Free Jazz Festival e o Tim Festival. Considerando toda sua história, que remonta aos anos 90, seus curadores já foram responsáveis pela vinda de artistas como KraftwerkBjörk, Massive Attack, Sonic Youth e Arlo Parks, entre outros.

Programada para rolar entre os dias 17 e 19 de maio, a edição 2024 acontecerá novamente no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e tem dois tipos de ingressos: um valendo para as atrações da Arena Heineken & Tenda MetLife e outro para assistir a todas as atrações do Auditório Ibirapuera. É preciso comprar um por cada data pretendida.

Confira a programação completa do C6 Fest 2024

Serviço

C6 Fest 2024

Datas: 17, 18 e 19 de maio
Locais: Auditório do Parque Ibirapuera e Arena Heineken & Tenda Metlife (Av. Pedro Álvares Cabral, 0 – Ibirapuera, São Paulo/SP)
Ingressos: Via INTI

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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