Às vésperas da oitava edição do Women’s Music Event, Claudia Assef e Monique Dardenne conversam com o Music Non Stop
Com a colaboração de Jota Wagner
De 20 a 23 de junho, São Paulo receberá o maior evento voltado ao protagonismo feminino no mundo da música do Brasil, o WME (Women’s Music Event). Com uma programação intensa, ele ocupará quatro locais emblemáticos da cidade: Heavy House, Biblioteca Mário de Andrade, Praça Dom José Gaspar e Casa Natura Musical.
O tema norteador desta oitava edição é o Joy Of Missing Out (JOMO), que traz um olhar mais humanizado acerca das experiências na contemporaneidade, “uma narrativa de aprendizado aliado ao prazer e a capacidade de se livrar do excesso de informação sem sentir culpa”, segundo as organizadoras — que estão antenadas ao que está acontecendo de mais importante no universo da música, e em temas que também são urgentes na atualidade.
Em mais uma conferência, o WME oferece painéis, oficinas, masterclasses, shows gratuitos, happy hours e amplas oportunidades de networking, destacando-se por sua capacidade de mobilizar a comunidade da música do país. Este ano, a programação contará com múltiplas potências profissionais desse ecossistema, entre elas Duda Beat, Amanda Magalhães, Juliana Linhares, Brisa Flow, Josyara, Júlia Mestre e Sarah Oliveira, além da madrinha Tulipa Ruiz.
O projeto é idealizado por duas grandes agentes da música e cultura do país, a jornalista e DJ Claudia Assef (também criadora deste nosso querido portal) e a gestora de carreiras e curadora musical Monique Dardenne. Entre alguns compromissos nesses dias que antecedem o evento, elas conversaram conosco compartilhando algumas das suas visões, impressões e expectativas sobre a edição, o pensamento por trás da programação e da história do WME, além de comentarem sobre fatos relacionados à sua relevância no cenário atual e seu constante crescimento. Confira como foi esse papo:
Jota Wagner: Eu queria começar tendo uma visão do momento em que, pela primeira vez, vocês falaram sobre o assunto. Quando vocês tiveram essa ideia de começar com o WME?
Monique Dardenne: Foi uma coisa muito doida, porque eu e a Clau começamos a nos encontrar em muitos painéis sobre mulheres na música, em conferências, há dez anos. Quando eu trouxe o Boiler Room para cá, a gente se encontrou no Projeto Pulso, na Red Bull. No final desse projeto, teve um painel que ela mediou entre 15 e 20 mulheres que estavam participando, e eu estava lá, amamentando a Malu, inclusive, e ela fez algumas perguntas que realmente me fizeram parar pra pensar. Quantas mulheres eu tinha colocado no BR? E, basicamente, de 50 a 60 pessoas, eu tinha colocado uma mulher. Quantas mulheres trabalhavam comigo? Percebi que não tinha mulheres ao meu redor.
Quando a gente saiu, eu falei pra elas: “cara, eu vou criar um grupo no Facebook chamado Mulheres na Música, porque a gente tem que continuar essa conexão”. Seis meses depois, eu estava com 400 mulheres nesse grupo, todas planilhadas, com nome, escolaridade, estado… Já estavam rolando muitas conexões ali. Na mesma época, eu e a Claudia combinamos um almoço para nos conhecermos melhor e ver o que a gente poderia fazer juntas. E aí foi paixão à primeira vista.
Claudia Assef: E aí a gente foi de um almoço para um bar, rodando, rodando, rodando e pirando. A gente teve a certeza que dali ia sair um lance profissional para mudar a nossa vida e a vida de muitas outras.
Jota: É engraçado, né? A Monique, mãe recente, atuando na produção direto, a Claudia pegando pesado no jornalismo e nos livros, e ainda assim deu energia, deu tempo pra se dedicar a algo tão grande como esse.
Claudia: Com certeza. Acho que isso dava mais energia ainda pelo fato de sermos mães, de trabalharmos numa indústria onde a gente via muita coisa com que a gente não concordava, mas não falava muito. Não era uma pauta na época ter poucas mulheres num line-up. Não existia esse clamor ainda por igualdade, a gente simplesmente aceitava porque era assim, só tinha homem DJ ou só tinha uma maioria de homens DJs. E ouvíamos que o motivo era que não havia profissionais mulheres. Isso dava energia para fazer um negócio que provasse o contrário.
Jota: E é louco porque em todos os gêneros musicais brasileiros, os primeiros ídolos foram mulheres: na MPB, no samba, no rock… Por que mesmo assim se construiu essa visão de que mulher não vende ingresso?
Monique: Eu acho que é muito estrutural da indústria. Todas as camadas desse ecossistema tiveram uma base masculina. Desde os donos das gravadoras, empresários, compositores, donos de festivais… A mulher sempre foi muito colocada nesse lugar da diva, da mulher que interpreta, mas nunca nesse lugar da mulher que tem um cérebro. A gente sempre foi diminuída, sabe?
Claudia: Eu vi uma fala da Madonna que, para mim, resume muito bem isso. Você pode ser cantora, mas nada de ser muito inteligente, nem ficar dando muita opinião. E quando você for cantora, você tem que estar bonita, você tem que ser magra, você tem que ter uma roupa curta, mas você tem que saber o seu lugar. E o seu lugar, por exemplo, não é compondo as músicas, não é falando o que você quiser, mas o que for passado para você.
Então, quando a gente se juntou, muito mais do que provocar ou causar, porque nessa época foi o começo de um levante, vamos dizer assim, a gente fez um planejamento muito frio e calculista: vamos lançar [um projeto] quando a gente tiver madura, quando tiver um produto pronto e muito bem pensado. Não vai ser só uma conferência — porque no começo a gente queria muito fazer a conferência —, mas um produto 360. Vai ter um site com informações? Vai ter um um cadastro de profissionais para que os homens parem de falar que não acham técnicas de som?
A gente vai ter tudo aqui para esfregar na cara, mas o nosso esfregar na cara sempre foi muito diplomático. A gente não foi para o pé no peito, mas foi para a informação, formação e construindo essas frentes que a gente achava que eram as frentes necessárias para virar um jogo no mercado.
Jota: A gente sempre fala muito de artista, do line-up, mas tem todo esse time de bastidor, das produtoras culturais, do pessoal da técnica. Como vocês veem a evolução disso desde que começou o WME até agora?
Monique: A gente tem um dado que prova como a indústria e as mulheres, principalmente, estão se reconhecendo. Quando a gente criou a premiação do WME em 2017, nós tínhamos 50 embaixadoras que faziam as indicações das 17 categorias. Na época, teve entre 150 e 200 nomes para 17 categorias. No ano passado, a gente teve 3.500 nomes. Em categorias como a de Produtora Musical, que lá atrás tinham dez indicadas, hoje a gente tem cem. Essa é uma prova em dados que a gente tem sobre essa espécie de reconhecimento.
Quando a gente pega a conferência do WME, tem aí quase cem mulheres à frente dos painéis, oficinas, shows, falando sobre busca, negócio, tecnologia, tendência, direitos autorais… Então há oito anos essa conferência acontece com diferentes temas e a gente tem profissionais falando de absolutamente todos os assuntos.
Agora, um dos grandes gargalos, realmente, é a parte técnica, que é um espaço que ninguém marca e que quase ninguém fala. Em São Paulo você consegue achar algumas mulheres. Nos nossos eventos, a gente tem quase 100% [de mulheres] na técnica, mas a gente está falando de SP.
Maravilha: Além do crescimento, o que vocês percebem também de transformação no WME, desde a primeira edição até o momento de hoje?
Claudia: Eu acho que tem uma questão de autoestima e de confiança da mulher que está no ecossistema da música, que melhorou demais. Assim, por mais que a gente não tenha hoje condições iguais, a gente vem se fortalecendo. Eu vejo como as mulheres se preocupam em contratar mulheres e como elas tratam essas mulheres que estão trabalhando junto. É muito diferente do que eu estava acostumada.
Eu estou nessa desde a Santa Ceia, né? Vou fazer 50 esse ano, e eu trabalho desde os 20. São quase 30 anos. E aí eu vejo essa mudança, visível e sendo falada, sendo muito compartilhada. Esse cuidado das mulheres umas com as outras. Hoje você tem mulheres em cargos de liderança em gravadoras, coisa que, meu Deus, as gravadoras foram construídas com os tijolos mais arcaicos do patriarcado.
Maravilha: Nesta edição, o WME está trazendo assuntos diversos que nos atravessam, como saúde mental, que também é uma outra coisa tem tudo a ver com a realidade da mulher. Como se deu a escolha do tema “JOMO” como norteador do projeto neste ano?
Claudia: Eu acho que a gente vive sob um estresse que é de um acúmulo de funções. Isso durante um tempo foi uma coisa bonita. “Nossa, mulher é muito foda porque a gente tem uma capacidade de concatenar muito mais tarefas do que um homem.” Como se fosse um grande privilégio. Na verdade, isso faz com que a nossa força se achate ao longo do tempo. Assim é o que a gente vê nos memes aí, aquelas mães que se escondem embaixo de um casaco e deitam no sofá fingindo que são o casaco só para poder dormir cinco minutos. Você precisa de ajuda, você precisa de tempo de lazer, você precisa dividir tarefas. Quando você é mãe, sobretudo, que as tarefas sejam divididas igualmente.
Então essa coisa do JOMO veio muito a calhar, porque depois da pandemia, a gente viu que os artistas e produtores saíram fazendo evento a torto e a direito, até para conseguir recuperar esse tempo perdido, levantar um pouco de grana, pagar suas dívidas, e tudo certo com isso. Mas vamos lá: a gente tá vendo aí esse esse 2024 que já trouxe esse monte de cancelamentos e as pessoas exaustas, pessoas que usam drogas até morrerem, suicídios, é muita carga.
Quando eu fui para o SXSW neste ano, estava todo mundo nessa de FOMO, que é o Fear of Missing Out — não pode perder tal palestra, tal evento, tal show. E na contramão disso, um dos criadores do SXSW ia dar uma palestra que eu nem cheguei a conseguir ver, porque eu totalmente vesti a camisa do JOMO e não fui, e era sobre o Joy of Missing Out, que é quando você se dá ao prazer de poder perder algumas atividades para poder encontrar pessoas, respirar esse ar de criatividade, em vez de ter uma agenda tão atribulada que você volta exausto.
E aí eu trouxe isso, conversei com a Mô e a gente achou que tinha muito a ver com esse momento, sobretudo quando se trata de mulheres que estão sobrecarregadas. Muitas ainda não têm uma carreira consolidada na música e têm que fazer outras coisas para poder pagar as contas, e têm que se vender como artista, e têm que ser mães…
Então, nessa edição, a gente está convidando as pessoas a se permitirem esses momentos de respiro de ir lá comer um brunch com a gente, que é uma das atividades novas. Trocar uma ideia.
Monique: E aí a gente trouxe esse conceito porque tem alguns pontos. Primeiro, a gente tem uma transmissão [por streaming] e esse conteúdo fica disponível por 30 dias, então você pode aproveitar o JOMO. E tem o Circuito JOMO, que tem algumas atividades. Tem esse brunch que abre a conferência no sábado com comidinhas gostosas tomando um espumante… Tem uma marca, Brutal Fruit, que está assinando, e a gente vai ter uma roda de samba e chorinho na sacada. Então você começa essa programação já nesse momento relax. A executiva Fernanda Paiva, que era da Natura Musical, vai falar sobre esse conceito. Aí a gente tem o Speed Team, que virou o Olho no Olho. A gente não quer usar o termo speed.
Vamos fazer artistas se encontrarem com programadoras de festivais importantes do país inteiro, mas muito com essa relação horizontal.
Maravilha: Muitos projetos, mesmo alguns que propõem pautas inclusivas, muitas vezes acabam não tendo um olhar pra algumas questões importantes, como o etarismo ou a ausência de indígenas na maioria dos espaços, por exemplo. Por que iniciativas como o WME são tão importantes?
Claudia: Ainda tem uma percepção de que a gente está fazendo isso porque é para caçar cliques ou porque é moda. Não, é porque esse cenário tem que mudar, um cenário onde você ainda tem os homens brancos mandando e tudo mais, e existe um PL que vai incriminar muito mais uma criança do que um estuprador. Enfim, é tanta loucura que se a gente não enfia isso na cara das pessoas, eu não vejo como esse mercado pode mudar.
Eu acho que a gente está fazendo aqui um trabalho que é de formiguinha, a gente está no oitavo ano. Mas o lado legal é que ele vem sendo, de certa forma, copiado, o que eu acho positivo. Em muitos aspectos, a gente inspira o mercado a se movimentar para esse lado também. Porque se for olhar a nossa situação, eu e a Monique somos duas mulheres privilegiadas de São Paulo, que sempre tiveram empregos, de famílias que puderam apoiar. E a gente tem isso para trazer essas minorias e dar luz para essas lutas e batalhas que são muito urgentes, emergentes na verdade. É o mínimo que a gente pode fazer.
Monique: É muito “moderno” o que a gente está fazendo. Entre aspas, porque era o que deveria estar acontecendo. Mas quando você vê as conferências do Brasil, tantos assuntos abordados, é muito difícil. Então a gente tá bem feliz, aliás, que saíram muitas publicações falando justamente sobre esse olhar que estamos tendo. Tem artistas trans dando oficina, tem artista indígena falando sobre música contemporânea, mulheres do Pará questionando sobre o apagamento dos artistas do Norte e Nordeste em grandes festivais… É uma programação muito atual.
Maravilha: E é muito importante que não sejam essas pessoas falando apenas de um lugar, tipo, “oi, vamos falar sobre a sua dificuldade”, né?
Claudia: Não, não, não. É sobre a excelência delas, sobre a potência delas.
Maravilha: Qual é a expectativa de vocês para o WME 2024?
Monique: O crescimento de uma conferência estabelecida como uma conferência de música. Isso é uma vitória tão grande. Porque antigamente a gente ouvia: “ah, é a conferência das meninas”. Não é mais a conferência das meninas. É uma conferência foda de música. Esse ano a gente tá sentindo que o projeto deu uma crescida, sabe? É o reflexo do nosso trabalho. Vemos amigas e mulheres de todo o país vindo para o WME.
Claudia: Dez anos atrás, eu encontrava a Monique em várias conferências e o nosso painel tinha um nome fixo: Mulheres na Música. Aí botava uma jornalista, uma DJ, uma booker e a gente sentava ali. Mas sobre o que é o painel? É sobre jornalismo, é sobre produção musical, é sobre o mercado fonográfico, é sobre vinil? A gente pode falar sobre qualquer coisa, né? “Não, vocês vão falar da experiência de vocês, como é que a mulher tá no mercado da música.”
Era sempre assim. Eu falava: “gente, eu não aguento mais!”. E esse foi um dos gatilhos que nos levaram a criar o WME. Essa falta de noção, era como se… era quase que uma cotazinha ali.
A gente tem o nosso projeto há oito anos. Então é muita mudança se você for ver em retrospectiva, com relação a anos de dominação do patriarcado, quanto a gente andou. Ainda falta muito, mas muita mudança aconteceu, de fato.
Serviço
Women’s Music Event (WME) – 8ª Edição
Heavy House
Biblioteca Mário de Andrade
Praça Dom José Gaspar
Casa Natura Musical
Passaporte Completo: R$ 140,00 + taxas
Passaporte Digital: R$60,00 + taxas
Ingressos disponíveis via Sympla