Misogyny in Music Parte da capa do relatório “Misogyny in Music”. Imagem: Reprodução

Relatório de comitê britânico mostra absurdos vividos pelas mulheres na indústria musical

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Chamado Misogyny in Music, estudo tem levantado discussões pelo mundo

Quando uma soprano ou contralto comete um erro durante uma sessão de gravação em um estúdio, geralmente ouve, vindo da sala de mixagem, piadinhas e risadas. Quando um cantor comete o mesmo deslize, recebe toques do produtor musical, com cuidado e respeito.

Esta é apenas uma (a das mais leves, diga-se) das diferenças entre o tratamento a mulheres e homens no mundo da música, de forma geral, segundo aponta o relatório Misogyny in Music (Misoginia na Música), publicado dia 30 de janeiro pelo Women And Equalities Comitee, parte do Parlamento Britânico.

O comitê ouviu profissionais, de ambos os gêneros, de gravadoras, estúdios de gravação, casas de shows e musicistas. Seu resultado é impactante, e poucos dias após sua publicação, está gerando discussões em todo o mundo.

Segundo o estudo (e a percepção de qualquer um que circula nos bastidores do cenário musical, convenhamos), profissionais mulheres são subestimadas, ganham menos e sofrem abusos de toda conta, incluindo crimes de ordem sexual.

As denúncias são escassas. A artista ou técnica que resolve expor tais agruras paga com o fim de sua carreira, quando é não é taxada de prolemática, descontrolada ou louca pelos membros do clubinho.

Em suas mais de 70 páginas, a pesquisa classifica a misoginia como “endêmica”. Afinal, as estatísticas geradas por homens e mulheres no mercado da música vêm sendo cristalizadas por décadas em um mercado em que as posições de poder são ocupadas por homens.

As mulheres conseguem condições de orçamento e contratos piores do que os homens? Sim, porque o dono da gravadora, o representante de artistas e repertório e o produtor musical fazem parte do mesmo clube, como diz o relatório, e tendem a um julgamento mais condescendente e respeitoso com o produto final, quando vindo da ala masculina do casting.

Pesa, ainda, o sexismo latente na indústria, incluindo o jornalismo musical. Os adjetivos “bela, charmosa e exuberante” geralmente precedem “talentosa” nas resenhas, contribuindo com um ambiente que dificulta ainda mais artistas iniciantes a darem os primeiros passos na carreira. Qualquer homem pode tentar seu lugar no indústria pop. Mulher tem que ter charme, ainda que “exótico”.

As mulheres ocuparam quase a metade (48,5%) do Top 10 inglês em 2023, conforme apura o Misogyny in Music, mas isso nem de longe representa igualdade no mercado musical, apesar do considerável avanço. Não chega a 14% entre as compositoras. Na arrecadação de direitos e cachês de shows, então, a diferença é assombrosa, salvo raríssimos casos, quase sempre vindo de mulheres artistas que decidem gerenciar toda a sua carreira, limando homens das posições importantes.

O texto é concluído com recomendações que vão desde campanhas do governo sobre o assunto a treinamento de profissionais da cadeia produtiva da música. A celeuma é planetária, e obviamente se estende ao Brasil, que vem discutindo o assunto graças à atitude guerreiras de artistas e ativistas, além de iniciativas como o WME, que confere o Selo Igual a empreendimentos culturais (de festivais a casas noturnas) que têm mulheres em pelo menos metade de seu quadro de colaboradores.

Tão logo foi publicado, o relatório britânico provocou um levante entre artistas, DJS, profissionais do meio e grandes veículos americanos e europeus.

Annie Mac, DJ e radialista, publicou em suas redes sociais: “Mulheres (cis e trans), e principalmente as jovens e negras, têm sido constantemente destratadas, subestimadas e colocadas em situações onde não estão em segurança”. A ex-BBC também aponta que o “dinheiro e, conequentemente, o poder, estão sempre nas mãos dos homens”.

A ONG Black Lives In Music saldou o estudo. “Estamos profundamente tocados pelos resultados pulicados pelo relatório. Valida nossas experiências, principalmente as das mulheres negras na indústria da música”.

“As recomendações do relatório são bem-vindas. Estamos ansiosas para vê-las materializadas pelo governo”, apontou Rebecca Ferguson, diretora da academia Ivors, associação de compositores britânica.

Outra executiva da música local, Silvia Montello, CEO da Associação de Músicos Independentes (AIM), comentou que “o estudo causa desconforto, mas infelizmente não trás nenhuma surpresa. Nos meus 34 anos na indústria, eu já testemunhei, vivi e lutei contra a desigualdade e discriminação que as mulheres ainda vivem na música”.

Criadora da campanha #MeToo, dedicada a tornar a indústria musical mais segura para as mulheres, a cantora Ellie Goulding é uma das vozes mais importantes dessa luta na Inglaterra. Falando sobre a pesquisa à Rádio 4, contou que “o cenário mudou um pouco, principalmente depois do movimento #MeToo. Mas é ainda muito importante que as pessoas sigam discutindo o assunto. Tem muita coisa ainda não falada. E eu sei que muitas mulheres não se sentem confortáveis em estúdios, acompanhadas somente de profissionais homens”.

A verdade é que o Misogyny in Music (que pode ser lido na íntegra aqui), avalisado por uma instituição respeitada, com uso de metodologias inquestionáveis, serve como o estopim de uma revolução discutida há tempos no meio musical e cujas exigências estão represadas há tempo demais. Arte é provocação, evolução e mudança. E as empresas e profissionais que vivem dela deveriam ser, primordialmente, facilitadores da evolução — e não o contrário.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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