“Festa é guerra”: Mamba Negra celebra 11 anos com novo festival
Cashu e Laura Diaz conversaram conosco sobre o aniversário de sua festa independente, ativista, resistente, política e divertida
Dá para fazer um festival preocupado com as questões sociais, a diversidade e ainda misturar música, dança e resistência? Segundo a Mamba Negra, projeto que celebra 11 anos neste sábado, 18 de maio, dá sim. “Nunca foi hedonismo, sempre foi guerra”, nos contam Laura Diaz e Cashu, DJs e empresárias da noite underground de São Paulo.
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O festival, que celebra mais um aniversário da Mamba, apresenta ao público um baita de um line-up, com Karol Conká, KENYA20hz e grande elenco. O destaque é para a participação da ícônica Marina Lima no show da Teto Preto, projeto musical de Laura.
O rolê acontecerá na Fabriketa, locação ocupada por várias festa independentes no Brás, em São Paulo. Começa às 17h e vai até as 09h da manhã. Descole seu ingresso aqui.
No meio da correria da produção, Cashu e Diaz falaram com a gente sobre a história, a luta e as muitas vitórias da Mamba Negra, uma festa que cresceu organicamente e hoje arrasta um público fiel, de diversos cantos do país.
Jota Wagner: Como é fazer uma festa agora, que a Mamba Negra já é uma entidade com vida própria? O planejamento muda, já que existe uma expectativa do público?
Laura Diaz: Cada Mamba é única e muito especial. Mas os festivais são um momento superimportante em que as pessoas têm a oportunidade e a experiência mais completa e complexa da Mamba expandida no espaço e na narrativa das pistas. Conseguir ver artistas do Brasil inteiro e do mundo, tanto nas performances, quanto na música e nas artes visuais, reunides neste grande eventão, é quase como se estivesse instaurado o crime do próximo grande evento depois da Madonna em Copacabana (risos).
É um evento histórico, todas as bichas y queer desse Brasil têm que comparecer. O povo se programa para vir pra cá. Tivemos essa grande sorte e essa grande responsabilidade de conseguir dialogar muito bem com as gerações mais novas. Ainda vemos gente que vai há dez anos na Mamba misturada com pessoas abordando a gente pra contar: “é a minha primeira Mamba! Acabei de fazer 18 anos e vir do Norte! Me programei pra estar presente e me tornar kokobra!”. O festival é esse Megazord de delícias, né?
Este ano está um pouco menor do que o do ano passado, afinal, não estamos isoladas e muito menos alheias ao contexto econômico de crise. Temos também esse contraponto, de entender a conjuntura da cultura independente nesse momento histórico-político. Vemos grandes festivais tendo dificuldades e festas de pequeno e médio porte lutando muito para conseguir resistir e continuar entregando qualidade e diversidade.
Ao longo do tempo, vocês tiveram esta preocupação em crescer? Fazer uma festa maior do que a anterior…
Cashu: No comecinho, não… Mas eu acho que com o tempo, fomos vendo a necessidade de ir profissionalizando o rolê. Precisávamos ter mais gente para entregar as experiências que criamos, e isso significa gerar mais orçamento para circular nessa rede LGBTQIAPN+. Algo como: “não dá pra fazer num lugar pra 400 pessoas? Bem, se juntarmos forças em um lugar um pouco maior, com mais gente na festa, dá”.
Laura: Desde o começo a gente pensou no que é o comportamento de uma mamba negra. Ela é inteligente, calculista, desconfiada… A mamba é dificílima de criar em cativeiro sem escapar — e te matar (risos)! E as cobras têm um lance… Não têm energia de sobra para ficar gastando em bote que não vai dar certo ou em bicho que ela não consegue digerir. Ela abocanha só o que consegue absorver. Não dá para tentar pegar um boi se ela está pequenininha ainda. Sempre foi sobre darmos um passo de cada vez, andarmos um pouco mais lentas, mas em bando, tentando descobrir, conquistar e respeitar nosso tempo na construção de algo sólido. Nunca ficamos pensando, “ai, vamos bombar a festa, dominar a cena mundial”. E até que conseguimos, né? Desculpa (risos)…
Isso se reflete até em um material superbacana que acabamos de fazer sobre conscientização e transparência da Mamba. Fizemos essa “abertura de contas” da Mamba Negra, para o povo entender o que estamos fazendo e parar de soltar polêmicas de forma displicente. É mais do que justo que a gente se reporte à nossa comunidade, especialmente pra ela valorizar e reconhecer suas ferramentas de luta: quem ganha mais com a Mamba ainda é o rolê independente e essa ampla rede de profissionais LGBTQIAPN+ que recebe e gira esses recursos. Não é sobre lucro.
Não é por dinheiro e não é por prazer, porque também não nos dá mais prazer. É uma enorme responsabilidade. É um risco. É uma urgência. Então, só pode ser por acreditar, sabe? A gente acredita que é realmente uma perspectiva de futuro, que sozinho você pode até ir mais rápido, mas juntes vamos mais longe.
Estamos nessa batalha porque a gente entende que é vida e morte. É questão de discutir vulnerabilidade, representatividade, espaço de trabalho, possibilidades de vida menos precarizadas. Depois da pandemia, crescemos muito, especialmente nessa volta. E naturalmente, está rolando uma dificuldade que é econômica também, dos festivais predatórios, com ingressos que valem um mês de aluguel.
Muitas coisas discrepantes e ao mesmo tempo. Mas a gente vê que tem necessidade de cultura. Tem efervescência, e a Mamba se tornou, ao longo destes dez anos, uma referência mundial, o núcleo candente do que a gente chama de “undergrande”: um lugar de um culto ecumênico, em que a galera de todo o eletrônico e da cultura independente, das pistas, dos fronts e dos bailes marca de se encontrar. A galera da Batekoo é muito irmã no público, trajetória e produção, e também frequenta e engrandece a festa, assim como a galera queer, trans e ballroom. Todos vão e se encontram. É o nosso lugar.
O arquétipo da pessoa que vai na Mamba pela primeira vez hoje é o mesmo da que ia nas primeiras festas?
Laura: Não, porque a gente não é mais o mesmo, graças a Deus… A sociedade também mudou.
Cashu: A sociedade mudou bastante. Em 2013, era mais jovem de esquerda, de faculdade, mais cis e mais branco. É até difícil falar, porque é uma diferença muito grande na quantidade de público também. Atingíamos 400 pessoas, hoje são quatro, cinco mil. Como tem mais gente, abrange tudo, tanto a galera que ia, lá atrás, quando públicos diferentes e de diversos lugares.
A Mamba Negra ajudou no desenvolvimento de diversos artistas. Como vocês veem isso?
Cashu: É muito bom. Quando começamos, a Mamba era feita para isso. Uma plataforma para artistas dissidentes conseguirem despontar. Uma plataforma de difusão artística, principalmente para trans, gays, mulheres… É muito gratificante ver que isso realmente dá certo. Os artistas nos falam sobre essa pressão em tocar na Mamba Negra pela primeira vez, porque sabem que é uma data muito importante, que te faz ser chamado para outros rolês.
Muita gente já tocou na Mamba e muito mais gente ainda quer tocar. Como é o processo de curadoria?
Laura: É muito o aqui e o agora. Ficamos atentas ao que está acontecendo. A cena, o contexto, as coisas que estão rolando, as pessoas que estão lançando música. Eu sou muito da pesquisa “analógica”. Gosto de ver show ao vivo e ver como são as performances. A Cashu tem circuldo no mundo inteiro, vendo um monte de coisa boa, fazendo conexões incríveis com as galeras mais legais.
Cashu: É uma mistura, tanto de som, quanto de ser artistas novos, pessoas que a gente quer dar oportunidade. Meio misturado. Também chamamos artistas que estão com a gente há muito tempo. Mas é difícil. Tem muita demanda, todo mundo quer tocar.
Laura: Tem os que estão no meio da casa, que carregam a identidade da Mamba…
Cashu: É um mix meio difícil.
Como é a relação de vocês e das outras festas com o poder público?
Laura: Eu não tenho palavras nem para descrever como nunca esteve pior. Para fazer uma festa no Vale do Anhangabaú, agora, você tem de falar com o Banco Itaú, tem de cercar aquele lugar e eles ainda têm a pachorra de falar que o ingresso é gratuito. Você está restringindo o ir e vir. As pessoas pagam imposto todo dia. É um absurdo aquele vale ficar o dia inteiro interditado, cheio de grade, impedindo as pessoas de atravessarem. Aquilo não funciona nem como espelho d’água superfaturado e nem como espaço público. São Paulo nunca esteve tão carente de espaços públicos. A situação é violentíssima.
É uma falta de respeito. Policiais e outros servidores públicos são empregados nossos, da população. Estão, na verdade, colocando a população contra a população e isso não é justo, não é certo e não é viável. A gente teve de retomar e ocupar todos estes espaços… As ocupações foram reintegradas… O lance não é fazer festa. O lance é “o que estamos celebrando”. Não vamos fazer Time Warp fechado lá. Não vamos. Não é o que a cidade quer e não é o que a gente acredita. É um absurdo, uma ofensa. Não é possível fazer cultura assim.
E frente a essas concessões bizarras que foram feitas ao espaço público, é preciso também defender um tratamento digno aos usuários de entorpecentes como uma situação delicada, que perpassa também as festas e o Centro de São Paulo. Nós somos uma ferida aberta no centro. Fazemos parte deste meio. Nós, a Mamba e todas as festas. Não estamos distantes de pautas como a da cracolândia. E o que está ocorrendo em São Paulo é uma política ultraviolenta de higienização do centro há mais de dez anos, que avança de forma mais violenta e descarada contra a população mais vulnerável.
O que está acontecendo é muito grave na cidade. Entendemos que fazemos parte de um contexto. O momento agora é de sobreviver à crise e ficar mais forte. Criar tecnologias de bando. Mesmo a nível federal, não houve nenhum grande movimento em relação a leis de incentivo e tampouco de reconhecimento.
Atualmente, nossa situação na Secretaria Municipal de Cultura é terrível. A questão é o que celebrar, onde celebrar, quais os fatos que temos. Estamos vendo muitas outras festas regredirem a técnicas de guerrilha, como os rolês em botecos próximos a praças, escapando da burocracia do poder público.
O que é hedonismo e o que é ativismo num rolê assim? Quando esses comportamentos se cruzam?
Laura: Pra mim, nunca foi hedonismo. Isso é papo de gringo de dez anos atrás.
Mas as pessoas não vão primeiramente para se divertir?
Laura: É que a gente sempre entendeu a celebração como guerra. Como eram nas ocupações. Festa é guerra. Festa é autonomia financeira, economia criativa, reconhecimento artístico, é um monte de coisa. É legitimação. Você toca na Mamba e outros lugares mais “coxa”, com cachê bom, vão te chamar em seguida. Nossas artes e artistas estão invadindo galerias de arte, reality shows, grandes festivais do mundo… São viradas importantes, espaços de atravessamento, de muitas linguagens e muitos meios. O “undergrande” precisa colher os frutos de tudo o que tem movimentado em vida. É sobre estarmos menos vulneráveis, é sobre ter direito a sonhar e realizar os trabalhos artísticos pelos quais damos a vida.
Qual a maior pressão e qual o maior tesão de fazer o que vocês fazem como meio de vida?
Cashu: Acho que a pressão é financeira mesmo, é a conjuntura que a gente vive atualmente na cena de São Paulo. Muitas festas estão enfrentando muitos problemas por conta de ter subido o valor de muita coisa.
Isso é uma reclamação constante…
Cashu: Está difícil conseguir pagar. Com a estrutura que fazemos, difícil cobrar também. Temos muita reclamação, então é uma balança complicada. Tentamos fazer da forma mais econômica para o público, para chegar a eles da forma mais barata. Mas como dependemos totalmente deles, é uma equação bem complicada.
O prazer é vivenciar isso mesmo. Ver a festas, a rede que gente criou. Essa rede de afeto. O momento da festa é sempre muito emocionante. Todas são únicas, justamente por conta desse caos. É difícil e superprazeroso, ao mesmo tempo.
Laura: Todos dia de Mamba eu tenho certeza absoluta de que, pelo menos durante aquelas 12 horas, eu estou no lugar mais legal do universo.