Historiadora da Unicamp vem passando a limpo toda a produção musical feminina até o final do século XX. Uma coleção de histórias incríveis!
Descobrir e catalogar todas as compositoras brasileiras que lançaram música no Brasil. Todas!
“Se lançou uma música sequer, já entra na minha lista”, me conta Carô Murgel, historiadora formada na Unicamp.
No ambiente do registro de obras musicais brasileiro a documentação é escassa, confusa e, até a criação do ECAD, nos anos 70, descentralizada. Adicione ao balaio de dificuldades a praga do patriarcado, que fazia com que o nome das mulheres fosse limado do registro das obras feitas em parceria com homens, e obrigava mulheres a assinarem suas composições musicais com pseudônimos masculinos. Isso faz da missão de encontrar e listar as compositoras brasileiras desde o século XVIII um trabalho hercúleo.
Impossível? Basta trocar meia hora de proza com Carô para sacar que, para ela, não é. De perfil elétrico e assertivo, sua fala corrida joga o entrevistador sem bóia em mar brabíssimo. Perguntar é desnecessário. Basta se deixar levar pela corrente das suas palavras e compreender que não caberia a outra pessoa o devido reparo histórico da figura feminina no mundo da música brasileira.
São aquelas histórias de vida que nos fazem acreditar, por mais reticentes que sejamos, em um plano universal maior, que trabalha em segredo para colocar, ainda que com certa demora, as coisas todas em seu devido lugar.
Tudo foi se colocando para colocar no colo de Murgel a missão de vida de encontrar, desenterrar e expor toda a incrível produção feminina no mundo da música, transformando-a em uma espécie de Indiana Jones das canções brasileiras: uma aluna de história da Unicamp, boa de violão, que tocava MPB nos barzinhos da cidade para pagar o pão (e outros derivados do trigo). História de dia, música de noite.
Não bastasse a dobradinha, ela foi chamada para trabalhar na implantação da internet no Brasil. O começo de tudo. Anos românticos, em que víamos na rede mundial de computadores uma grande biblioteca universal, reunidora de todo o conhecimento e acessível gratuitamente a todos os seres informatizados do planeta. A mulher estava lá, abrindo a clareira da informação. Antes dos provedores de internet, dos portais de notícias e, principalmente, das redes sociais e dancinhas de TikToks, movimento que tirou da rede o foco de consumo de informação e pesquisa, e a chutou para o campo do entretenimento estupidificador.
Basta visitar o website que Carô criou lá nos primórdios (e que existe até hoje), o MPBnet, para uma viagem no tempo e testemunhar como eram as páginas na aurora da internet. Foi quando a historiadora se viu no olho do furacão da revolução digital da informação, conhecendo o sistema por dentro, que decidiu focar seu trabalho na pesquisa da história musical brasileira e, rapidamente, partindo para o papel das mulheres nesse universo.
Desde então, Carô Murgel perceveja pelos arquivos da Biblioteca Nacional, escavinha os porões bagunçados da internet que conhece tão bem, passa a mão ao telefone e liga para as compositoras, mesmo desconhecidas, ou seus familiares, tudo para catalogar, de A a Z, todas as minas fazedoras de música, desde o século XVII até o XX — muralha temporal que levantou para suas pesquisas a fim de, um dia, terminar sua obra, que vai virar livro (a mim, parece mais correto chamar de enciclopédia). Faz tudo isso desde seu quartel-general, no meio de um sítio em Jundiaí, no interior de São Paulo. Me deu pontas de orgulho saber que é minha vizinha, aliás.
Durante a missão, foi desvendando histórias incríveis, principalmente na questão do machismo presente no meio. Tais achados, injustiças e o trabalho de Carô permearam nossa conversa na tarde quente. “Conversa”, entre aspas. A mim, coube apenas dar linha para a sua pipa mental, que voava na estratosfera.
Jota Wagner: Qual a sua história? Sua e desse trabalho que, para terminar, vai te demandar uns 180 anos…
Carô Murgel: É capaz de eu morrer e ainda não terminar essa pesquisa. Em todo momento eu descubro compositoras e parceiras novas. Vou descobrindo as que usavam nomes de homens, como por exemplo o Marcelo, o Demétrius, da Jovem Guarda… Aqueles caras que eu sempre ouvi, na verdade eram mulheres.
Sou apaixonada por música a vida inteira. Sou de 1963 e minha mãe ouvia os discos dos festivais. Fui criada com Chico, Caetano e Gil. Minha avó era pianista e, logo cedo, me deu um violão. Eu entrei em história na Unicamp em 83 e consegui me manter cantando em bar.
Foi nos bares que começei a reparar na questão dos autores. Muita gente não sabia quem eram os verdadeiros autores das músicas, tipo: “toca London London, do RPM“. A música é do Caetano!
Alice Ruiz tem música com Itamar Assumpção mas, em toda a publicação que aparece, está lá somente o nome dele. É uma dupla. Eu não queira ser cantora, minha voz dá uma morrida no final (risos). O que eu gostava mesmo era de mostrar música.
Depois, acabei indo trabalhar na RNT, que implantou a internet no Brasil. Fui uma das criadoras do manual de instruções usados para fazer a UOL (risos). Lá em 1995.
O MPBnet foi o primeiro site de música brasileira, que eu criei para atrair o pessoal das ciências humanas para a internet. Porque não tinha nada para eles.
Na RNP tinha médico, biólogo, escalador de montanha… Gente de todas as áreas fazendo coisas para atrair todo mundo para a internet comercial, que abriu em 1995.
Havia um sonho, naquele começo, de catalogar o mundo…
Exato, eu entrei para a internet nesse espírito. Foi uma forma de eu continuar fazendo o que eu gostava, que era mostrar as canções e os autores para as pessoas. Quando voltei para o mestrado em história, já existiam todos os provedores de internet.
Pesquisei [no mestrado] as compositoras da vanguarda paulista. Depois fui pra coisa das compositoras. No doutorado, descobri que a Alice Ruiz escreveu vários textos feministas, para os jornais de lá. Meu doutorado foi sobre ela, chamado Póetica Feminista de Alice Ruiz. Os meus textos são facílimos de ler, porque eu tinha pavor daquelas teses herméticas. Eu acreditava no Mário Prata, que dizia que a tese devia ser um tesão (risos).
Foi aí que as pessoas começaram a me perguntar: “e outras compositoras?”. Percebi que elas não conheciam nada sobre isso.
Atualmente, Carô já passou dos sete mil verbetes de cantoras brasilerias. E a conta segue aumentando…
Foi então que você começou a perceber sobre os fatos “estranhos” nos registros das músicas feita por mulheres…
Havia muitos casos de composições em que o parceiro não as registrava. Então, elas não recebem os direitos autorais. Parece tudo certo, porque seu nome está no disco, mas no ECAD consta só o compositor. E isso inclui grandes nomes como, por exemplo, o [maestro Heitor] Villalobos. A Melodia Sentimental, que é uma das músicas mais conhecidas dele, na verdade, tem letra da Dora Vasconcellos, uma embaixadora brasileira em Nova Iorque.
Ela quem levou o show da bossa nova ao Carnegie Hall. Uma mulher que investiu na cultura brasileira. Ela era uma poeta. Todas as músicas do disco Floresta Amazônica, que tem Melodia Sentimental, são dela, e nenhuma está registrada em seu nome. No ECAD existem 300 regravações de Melodia Sentimental, porque, afinal, é um Villalobos cantado, e os familiares dela não recebem nada em direitos autorais.
São casos absurdos…
Do século XIX até os anos 1950 você vê muito marido registrando músicas em seu nome. O disco está no nome da compositora, mas o registro no ECAD em nome do marido. O casal então se separa, o homem fica com os direitos, e a mulher, nada.
Isso tinha a ver com a legislação? Ou era uma questão de preconceito, mesmo?
As mulheres não podiam criar. Existia essa moral burguesa. E é preciso deixar isso bem claro, porque as classes altas não estavam nem aí pra isso. Se você pegar, por exemplo, a Marília Batista, ela tocava violão com 14 anos em 1930, na rádio, parceira do Noel Rosa. Mas ela era da família Monteiro Barros. Neta de barão, da aristocracia carioca. As classes altas nunca deram bola para a moral pequeno-burguesa, que era de restrição às mulheres.
A Virgina Woolf conta muito bem em seu livro, Um Teto Todo Seu, que até o século XIX as mulheres não podiam herdar. Se você fosse a única herdeira de uma família rica, o dinheiro ia para um tutor, que te pagava uma mesadinha. Podia até sumir com o dinheiro.
Então as mulheres não tinham direito a ter dinheiro. Não tinham direito a criar. Não tinham direito a nada.
Você vai ver várias autoras que adotam nomes masculinos. Inclusive tem exemplos até recentes. A J. K. Rowling assinou assim porque seu editor lhe disse que “ninguém vai comprar um livro de mulher”. E é a escritora mais vendida no mundo. Não é uma coisa que deixou de existir. Continua.
Mesmo com o avanço das plataformas digitais?
Com as plataformas digitais, eu vejo que muitas não fazem o registro no ECAD. Gravam, lançam digitalmente, mas não registram, esquecem de colocar seu nome na composição.
Aqui, cabe um mergulho burocrático. Mesmo disponibilizando um disco no Spotify, por exemplo, é preciso que qualquer autor se associe a uma das várias uniões de compostores, e registre cada música, identificando quem são os compositores, os intérpretes e até os músicos. Isso permite ao ECAD mapear o caminho dos direitos autorais, garantindo que o pagamento chegue até o criador.
Hoje, principalmente a geração do século XXI, não faz esse registro, então não recebem direitos de nada. E no caso das compositoras, elas só vão ser remuneradas na criação. Diferentes das que também são cantoras, que recebem cachê de shows, etc.
Você acha que este processo todo atravanca o registro de uma obra? Poderia ser mais fácil?
A verdade é que você não tem certeza de nada, nesse assunto. Um grande mistério. Quando comecei minha pesquisa, eu conseguia saber, via ECAD, quando uma canção foi registrada. Em 2018, mudaram essa forma de consulta para o público. Hoje eu não tenho mais informação. Não consigo datar as compositoras em cada um dos séculos. Tudo é muito obscuro. A pesquisa tem de ser no formão e martelo.
O que parece, para um artista iniciante, é que ele não bota muita fé na arrecadação e, por isso, nem se registra.
Não é difícil de se registrar. Nós, as mulheres, também trazemos com a gente essa insegurança. De nunca achar que é muito compositora. A gente sempre tem muita dúvida das coisas que a gente cria porque fomos ensinadas a duvidar do que a gente faz. Faz parte da história das mulheres; nunca tá bom.
Mas existem também casos de esquecimento. Conversei, por exemplo, com a Sueli Costa, antes de seu falecimento. A Sueli tem várias composições maravilhosas, e muitas delas, quando fui pesquisar, não estavam registradas no ECAD. Coração Ateu, gravado pela Maria Bethânia, e que entrou na trilha sonora da novela Gabriela, não estava registrada! Tocou tanto nas rádios, quando a novela estava no ar, e ela perdeu todo esse dinheiro. O dinheiro fica guardado, no ECAD, por cinco anos. Depois disso, você não pode mais reclamar a canção. Para onde vai esse dinheiro não reclamado, eu não tenho a mínima ideia.
Na sua pesquisa, quais são as maiores injustiças que você já captou?
Tem muitos casos, mas esse da Dora Vasconcellos me chocou especialmente, porque era Villalobos. Ele é idolatrado e já tinha feito coisas semelhantes com sua primeira esposa, a Lucília Guimarães. Quando ele entrou no conservatório, não tocava piano, apenas violão. Quem fazia as obras que possibilitaram sua entrada no conservatório era a Lucília. E ele registrava no nome dele.
Ele tem essa coisa, mas é um grande nome da música brasileira. Então, ninguém podia mexer com o Villalobos. E o caso da Dora é muito emblemático porque, um ano antes de morrer, ele deu uma entrevista contando que estava compondo uma nova ópera, que se chamaria Ameríndio, somente em cima dos poemas dela. Ou seja, ele admite a coisa! Existem fotos deles, juntos, compondo Floresta Amazônica. Não tem sentido ela não não ter os direitos recolhidos.
A Chiquinha Gonzaga, pioneira, também sofreu com este tipo de coisa?
Eu imagino que sim, até porque foi ela quem propôs a primeira associação de direitos autorais no Brasil. Diziam que a música é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro.
Outro casso muito emblemático é do primeiro samba gravado, Pelo Telefone, em nome de Donga e Mauro Almeida. O primeiro registro, na Biblioteca Nacional, foi feito somente no nome do Donga, até que um jornal descobriu que era uma coleção coletiva que incluía também a Tia Ciata e outros autores.
Quando Mario de Andrade fez um trabalho visitando os terreiros de candomblé, descobriu que muitas das composições que rolam em nome de outros compositores foram afanadas da produção dela. Como ela era do samba de roda, as composições eram coletivas, mas num cenário em que as manifestações eram muito femininas.
No samba de roda, as mulheres dançam o tanto que elas querem, e depois chamam os homens para a umbigada. É uma manifestação muito feminina. A Tia Ciata era dessa turma, e as criações eram muito coletivas. Eu tô aqui, cantando uma quadra, e outra pessoa chega e faz outra. Nos cantos de lavadeiras, os cantos de trabalho, a criação era feita por uma ou várias mulheres, mas nunca registradas.
Era muito fácil tirar as mulheres, e isso acontece até hoje. Em 2018, descobri que uma compositora chamda Beatriz Campos teve seu trabalho registrado pelo marido. Não é mais tempo de fazer uma coisa feia dessas.
Que conselho você daria para as mulheres que estão entrando no mundo da composição agora?
Entrar em associações, exigir os seus direitos, ir atrás dos parceiros e falar: “essa música é minha”. Entrar com processos de revisão… Mas é isso, as mulheres não gostam de confusão. Mas o mínimo é, pelo menos, fazer um outro registro com o seu nome e avisar: “olha, este é o correto”.