boate medieval são paulo noite gay Foto: Arquivo pessoal

Do footing aos afters: vem com a gente fazer uma viagem pela noite gay de São Paulo nos últimos 100 anos

Lufe Steffen
Por Lufe Steffen

A cena LGBTQIA+ sempre esteve entre nós. Neste texto histórico de Lufe Steffen, contamos como ela passou de cinemas e ruas a clubes lendários

Balada gay, festa queer, bafo LGBT, fervo das empoderadas… Hoje em dia, é comum vivenciar esses eventos, principalmente na cidade de São Paulo, conhecida por sua vida noturna fervilhante. Afinal, a cultura da noite gay é uma realidade indiscutível. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que o que se ouvia sussurrar, à boca pequena, era algo tipo “boate para entendidos”, “festa alternativa”, e por aí afora. Para chegarmos até o momento em que a São Paulo tem uma das maiores comunidades LGBTQIA+ do mundo foi um longo caminho. Então prepare-se para (re)conhecer essa trajetória. Vamos embarcar no túnel do tempo da noite gay paulistana!

Primeira metade do século 20 (1900 a 1950)

Pois é, há cem anos, já tinha gay passeando na noite de São Paulo. Mas não existiam boates nem bares especificamente dedicados a esse público. Claro que a comunidade LGBTQIA+ da época frequentava os lugares básicos, onde todo mundo ia (héteros e gays): cabarés, restaurantes, inferninhos, cafés, teatros de revista, etc. Era tudo junto e misturado, mas é óbvio que o preconceito e a homofobia eram moeda corrente. Os “frescos” ou “pederastas” eram considerados figuras folclóricas e “marginais”, quase sempre ligados a uma espécie de “submundo” e, portanto se aproximavam das prostitutas, cafetinas, gigolôs, michês, malandros e contraventores em geral.

Havia, mesmo assim, um espaço relativamente livre para os LGBTQIA+ de então: a rua. Mais precisamente, parques, praças e boulevares no Centro da cidade (Praça da República, Largo do Arouche e afins). Era nesses espaços que ocorria o famoso “footing”, prática onde o povo ficava caminhando pra lá e pra cá, batendo perna, pra ver se “pescava” algum lance (namoro, amizade, transa, o que viesse). Era assim que as empoderadas da época caçavam. Olho no olho e corpo a corpo. Não tinha celular, nudes, aplicativos, whatsapp, Facebook, nada!!!

Esse período um tanto romântico da história LGBTQIA+ pode ser conhecido com mais detalhes em dois livros obrigatórios: Além do Carnaval, 2000, de James Green (imagem ao lado), e Devassos no Paraíso, 2000, de João Silvério Trevisan)

Anos 50/60: vem pra rua!

Já na década de 50, começam a surgir os primeiros points gays na cidade. Na verdade, eram bares que não se identificavam como gays, mas que a comunidade do babado “invadia”. Por alguma razão, o público LGBTQIA+ passava a dominar o bar e, quando o proprietário (sempre hétero) se dava conta, o local já era um ponto “bicha”. Assim, ficaram famosos bares como o Anjo Azul – todos localizados, novamente, no Centro.

Mas o grande centro gay do período viria no início dos anos 60: nascia a Galeria Metrópole, inaugurada em 1964, na Avenida São Luís, e que está de pé até hoje. Muitos gays testemunham que, desde a época da construção do prédio, as bichas já planejavam: “Quando esse lugar abrir, vai ser nosso!”. E de fato, elas dominaram o espaço desde a abertura, a ponto do local ser estigmatizado como um “ponto de veados”.

Fachada do Cine Metrópole nos anos 60: point que foi adotado pelos gays. Foto: Blog Salas de Cinema de São Paulo, de Antonio Ricardo Soriano/Divulgação

Começava assim o desfile dos gays, que viviam subindo e descendo as escadas rolantes da galeria, caçando. Os bares instalados dentro e no entorno da construção logo foram também tomados: Barroquinho, Leco, Paribar (que voltou a ser hype das novinhas nos últimos anos). Sem falar no Cine Metrópole, também dentro da galeria: outro ponto de paquera e pegação. Mais recentemente, o cinema foi resgatado pelo empresário André Almada, da The Week, que produziu festas LGBTQIA+ ali. Mas atualmente o cine está lacrado.

Aliás, os cinemas de rua do Centro da cidade também serviam como pontos de ferveção na noite gay paulistana dos anos 50 e, principalmente, 60. Eram inúmeros: Art Palácio, Olido, Arouche, Windsor, Metro, Comodoro, Barão, Ipiranga, Marabá (que está vivo, aos 76 anos!)… Mas esse é um capítulo à parte.

Cinemas serviam como ponto de ferveção gay em SP nos anos 50 e 60. Foto: Blog Salas de Cinema de São Paulo, de Antonio Ricardo Soriano/Divulgação

Sem falar no primeiro Autorama da cidade: tratava-se do quadrilátero que cercava o Teatro Municipal, englobando as ruas Barão de Itapetininga, 24 de Maio, São João, 7 de Abril… De noite, o povo ficava andando ali, enquanto as mais privilegiadas passavam de carro para escolher os eleitos. Mas não era michetagem: era paquera mesmo. Dali surgiam casais, transas e tudo o mais.

Até então, nada de boate gay. As casas noturnas continuavam sendo basicamente heterossexuais, embora os gays as frequentassem também. Somente no final da década de 60 surgiriam as primeiras. Uma delas foi a pitoresca Hi-Fi, instalada no andar de cima da lendária loja de discos Hi-Fi, em plena rua Augusta, lado Jardins.

Wanderléa era uma das artistas que mais tocavam na pista de dança da boate Hi-Fi, na rua Augusta. Divulgação

O Hi-Fi era um cubículo enfumaçado (lembre-se que ainda não era proibido fumar em locais fechados), com uma geladeira (!) enorme num canto e uma micropista de dança tocando Wanderléa, Supremes, James Brown, Ronnie Von, B.J. Thomas… Há quem diga que no Hi-Fi só iam gays acompanhados. Outros afirmam que o local era um ponto de flerte, mas que era difícil flertar num lugar tão pequeno e apertado. Ali perto, existiu também na Rua Augusta o bar Intend’s, que ficava dentro de uma galeria.

Na mesma época, surge o K-7. A casa ficava num sobrado da rua Bela Cintra, Jardins, quase na esquina com Alameda Santos. Também pequena e apertada, vivia sofrendo blitz da polícia, que certa vez chegou a levar o público pra cadeia. Sob qual acusação? Ninguém lembra, mas vale mencionar que vivíamos a fase mais truculenta da Ditadura Militar.

Inaugurada em 19 de agosto de 1971, a Medieval, na rua Augusta, foi a primeira boate abertamente gay de São Paulo. Reprodução do documentário São Paulo em Hi-Fi, de Lufe Steffen.

Os proprietários do K-7 eram Fernando Simões e Elisa Mascaro, casal que também comandava restaurantes chiques. E foi então que, em 1971, a dupla decidiu transformar o restaurante Medieval, situado na primeira quadra da Rua Augusta sentido centro (ao lado do shopping Center 3), numa boate gay. Nascia o primeiro palácio LGBT da cidade.

Anos 70: A década bicha

O Medieval marcou época. Todo decorado, como o nome dizia, no estilo dos castelos medievais, era um local chique e caro, pouco acessível aos que tinham menos recursos. Mas todo mundo queria estar ali, ver e ser visto. Os lendários shows de travestis e transformistas (não existiam as drag queens) atraíam o público, formado não só por gays, mas também por ricos, famosos e colunáveis, fossem gays ou não. Assim, era comum ver na casa celebridades como Elke Maravilha, Dercy Gonçalves, Clodovil, Dener, Chiquinho Scarpa, Fafá de Belém, Maria Alcina, Ângela Maria, o cabeleireiro Sylvinho, Rogéria

As festas temáticas do Medieval foram outro marco. A principal delas era a Noite da Broadway, que acontecia todo ano em 19 de agosto – data de inauguração da casa. A rua Augusta ficava interditada, e o público chegava desfilando suas inacreditáveis fantasias, diante dos holofotes na fachada da boate. Foi ali que, em 1976, a atriz e vedete Wilza Carla chegou na festa cavalgando um elefante!

As montações inesquecíveis do povo que frequentava a boate Medieval. Reprodução São Paulo em Hi-fi.

O Medieval reinou absoluto nos anos 70 e entrou em decadência somente nos 80, fechando as portas em 84. Mas àquela altura já existiam muitas outras casas gays. A principal concorrente da Medieval era a Nostro Mondo, aberta também em 1971, pela travesti Condessa Mônica. Se a Medieval era pros “finos”, a Nostro tinha um apelo mais popular, era mais barata. Localizada na esquina da Avenida Paulista com a Consolação, resistiu durante 42 anos (fechou em 2013). Mas seu auge foi mesmo nas décadas de 70 e 80.

Gerações e gerações de gays debutaram ali, assistindo aos shows de travestis e apadrinhados pela mãe de todas, Condessa (de dia, ele era Clóvis, oficial de justiça; de noite, se transformava em Mônica, a poderosa da boate). A Nostro foi ainda a primeira a fazer matinês gays aos domingos, dando força para as “novinhas”, as menores de idade.

Elenco da boate Nostro Mondo nos 70. Condessa Mônica é a terceira da esquerda para a direita. Reprodução/São Paulo em Hi-fi.

Uma das estrelas da Nostro era a transformista Miss Biá (que também trabalhava no Medieval). Biá tornou-se um ícone da noite, e continuou cultuada até seu falecimento, em junho de 2020, vitimada pela Covid-19, aos 80 anos. Nos anos 90, Biá marcou época na Nostro encarnando Hebe Camargo, que recebia em seu sofá celebridades como Regina Duarte, Bruna Lombardi, Raul Cortez

Em 1978, nascia outra famosa casa gay: a Homo Sapiens, ou HS, na Rua Marquês de Itu, no Centro, no mesmo local onde hoje funciona o ABC Bailão (boate gay dedicada basicamente ao povo que passou dos 50). A HS seguia a cartilha da Medieval e da Nostro, com shows de travestis e caricatas, mas inovou trazendo algumas novidades: strip-tease de rapazes, concursos de melhor corpo masculino, pocket-peças de teatro, shows de humor…

A HS tornou-se passagem obrigatória inclusive para celebridades gringas, como Freddie Mercury, que roubou a cena ao tirar a roupa e ficar de sunga em plena pista. A casa foi um grande point gay, resistindo até 1992.

Edu Corelli como DJ Selma Self-Service tocando na festa de despedida de Bebete Indarte para a Europa. Acervo Edu Corelli.

“O hype era o povo ir no Nation sexta ou sábado e combinar domingo de se encontrar na porta da Overnight com modelões bafo dos pés à cabeça pra impressionar os bofes e amapôs”, diz o DJ Edu Corelli sobre o início da ferveção clubber que veio com a chegada da HS. “Depois, todas migravam de carro ou carona pro HS, e o fervo era comer pastel na pastelaria na frente. A gente queria ver as travas luxo na porta, tipo Carlinha Machado e Charlote Maluf com roupas absurdas e o bafafá. Umas pagavam pra entrar no HS, e daí saíam pra rua pra passar o carimbo adiante. Uma pagava e passava pras amigas, que entravam com o carimbo borrado na faixa”, lembra Corelli, que chegou a tocar montado como Selma Self-Service anos mais tarde no Sra. Krawitz.

Em 1978, nascia outra famosa casa gay, a Homo Sapiens, ou HS, na Rua Marquês de Itu, no centro de SP. Reprodução São Paulo Hi-FI.

No entorno da HS, surgiam vários outros lugares: os bares 266 West Bar, Man’s Country, Batuk Bar, o famoso, boêmio e “perigoso” Val Improviso (precursor dos “afterhours”, ainda que não existisse essa expressão), entre outros – transformando a região num efervescente ponto de encontro dos entendidos. Vale lembrar que ali já existia (e continua existindo) o restaurante Chopp Escuro, eterno reduto gay aberto durante toda a madrugada; e também o Caneca de Prata, o bar gay em atividade mais antigo da cidade: abriu em 72 e segue aberto, 45 anos depois.

A ferveção e montação eram intensas na pista do HS, onde chegaram a tocar DJs do under como Marquinhos MS. Reprodução São Paulo em Hi-Fi.

Outras boates que nasceram na segunda metade dos 70:

Cowboy: mesas com telefones pro povo discar de uma mesa pra outra, era assim a caçada!

Roleta: na Rua Rego Freitas, Centro (onde mais recentemente existiram as também gays Planet G e The Sensation): reza a lenda que no prédio vizinho morava o criminoso que praticou o famoso “crime da mala”. As bichas viam o homem descer de madrugada carregando uma mala, talvez recheada de pedaços de corpo humano!

Gay Club: na Rua Treze de Maio, Bexiga: era um café-teatro. Das dez à meia-noite, o povo assistia a peças de teatro gays, como Os Rapazes da Banda e Boy Meets Boy. Depois, o local virava boate com pista e tudo.

Pica-Pau: no Largo do Arouche, Centro (onde hoje funciona a sauna gay Champion): boatona básica que também apresentava peças de teatro antes de a pista abrir.

Off: na Rua Romilda Margarida Gabriel, no Itaim: abriu em 79, comandada pelo jornalista Celso Curi, que tinha criado a primeira imprensa gay do Brasil (a Coluna do Meio, do jornal Última Hora, que durou de 76 a 79). O Off era um clube privê com sócios. Foi a primeira casa a se afastar do Centro da cidade. Virou um point hypado que durou até 86 – aí, transformou-se em espaço teatral e depois deu origem ao Guia Off de Teatro, que Celso edita até hoje.

(Para conhecer mais sobre a noite gay paulistana das décadas de 60, 70 e 80, assista ao documentário São Paulo em Hi-Fi, de 2016, de Lufe Steffen – este que vos escreve)

E as mulheres?

Sapatonas, fanchonas, ladies, entendidas, machonas, caminhoneiras, sáficas, lésbicas… Os termos eram inúmeros, carinhosos ou não, mas era assim mesmo que elas eram identificadas. O grande point da mulherada desde os 70 era o famoso Ferro’s Bar, no Viaduto Martinho Prado, no mesmo local que nos anos 2000 abrigou o Xingu, outra casa LGBT que marcou época.

Fechada do lendários Ferro’s Bar no Viaduto Martinho Prado. Reprodução da internet

O Ferro’s era um bar, restaurante e pizzaria bem popular, frequentado por artistas e intelectuais e, principalmente, pelas lésbicas. Havia várias tribos de mulheres: as que chegavam de carro, as que chegavam de moto, as militantes esquerdistas, as feministas, as estudantes da USP…

O zine Chana Com Chana

Ali muitas panfletavam seus fanzines e filipetas de manifestações. Um dos zines mais famosos era o Chana com Chana, lançado em 1981 e distribuído e/ou vendido em vários pontos da cidade, entre eles o Ferro’s.

Para quem tinha mais “poder aquisitivo” e queria ser fina, o point era o Moustache Bar, atrás do Cemitério da Consolação. Testemunhas afirmam que ali imperava a beleza total. Mulheres chiques e glamourosas, algumas ricas, muitas usando terno, gravata, chapéu e fumando charuto.

Nos anos 70 havia ainda a Dinossaurus, boate totalmente frequentada por mulheres. Nos anos 80, surgiriam outros points para as garotas, entre eles: Shock House, que tinha shows de artistas como Ângela RoRo (antes, o local se chamava Hunters e era gay, mas já muito frequentado pelas mulheres); o Feitiço’s, na Vila Olímpía (onde surgiram as primeiras mulheres cantando e tocando violão, criando essa tradição); e Bug House, no Baixo Augusta. Nos anos 90, um dos marcantes foi o bar Pride, na Alameda Itu, todo decorado como um navio de marinheiras. Outro, o agitadíssimo Club Z, nos Jardins.

Anos 80: padecendo no paraíso

Falando em anos 80, a década começou agitada, com novos locais abrindo. Muitos bares já existiam desde os anos 70 (Anjo’s, Narciso’s, Studio Twenty Four), mas surgiam também muitas boates:

Colorido, na avenida Brigadeiro Faria Lima, Itaim: local chique e envidraçado que chegou a ter shows de Claudia Wonder e Patricio Bisso.

Claudia Wonder foi uma das mais marcantes performers da cena gay de São Paulo nos anos 80. Divulgação

Mistura Fina, na Rua Major Sertório, Centro: se dizia a “maior casa gay do Brasil”, tinha lanchonete, salão de jogos e até pista de patinação.

Village Station Cabaret, na Rua Rui Barbosa, Bexiga: local enorme, com palco gigante, jantares luxuosos, café da manhã no fim da balada, pistona, cine pornô, e ainda foi a primeira casa a ter dark room, diz a lenda.

Malícia, na Rua da Consolação, Jardins: aberta em 86, foi uma das pioneiras na região que viria a ser, nos 90, um dos grandes setores gays da cidade.

Fachada do Malícia, onde o DJ Marquinhos MS popularizou as bombásticas noites de quarta-feira. Reprodução.

Rave, na rua Bela Cintra, Jardins: boate gay chique para as “finas”, aberta no início dos 90 mas com “jeitão de 80”, durou até 1999. Um fato trágico marcou o lugar: em 92, o empresário-socialite Aparício Basílio da Silva, dono dos perfumes Rastro, foi assassinado. O criminoso era um rapaz que Aparício conheceu dentro da boate. E, apesar do nome, a Rave nada tinha a ver com a febre das raves de techno, que surgiriam na metade dos 90.

Flyer da boate Rave, que foi reduto das finas na década de 90

Vale citar ainda os espaços de rock, que eram locais democráticos onde todo mundo ia: gays, héteros, artistas, celebridades, roqueiros, góticos, punks, dândis, enfim, todas as tribos da década mais pós-moderna de todas. O principal deles, claro, foi o Madame Satã, aberto em 83 e que durou até 92, quando então passou por várias fases e nomes diferentes. Voltou à cena recentemente e continua de pé, com o nome de Madame. Nos 80, a casa tinha entre seu público gente como Rita Lee, Cazuza, Supla, Angeli… Marcou época ali a travesti Claudia Wonder, com seu famoso show Vômito do Mito. Outros points roqueiros onde os gays também iam: Rose Bom Bom, Radar Tantã, Napalm, Dama Shock, Espaço Retrô

Documentário Madame Satã, Pague Para Entrar, Reze Para Sair

E finalmente, o grande olimpo: a Corintho, em Moema, ao lado do Shopping Ibirapuera, inaugurada em 1985 pela super-empresária Elisa Mascaro (a mesma que havia capitaneado o Medieval). Agora viúva, Elisa comandou com mão de ferro a Corintho, elevando-a à enésima potência do que tinha sido o Medieval. Um palco enorme com escadarias luminosas, apresentando megashows que contavam com 12 bailarinos e 12 travestis em cena – enfim, luxo puro, só perdendo para a Broadway mesmo.

A Corintho foi até cenário do filme Anjos da Noite (1987, de Wilson Barros), que mostra shows de travestis famosas como Margot Minnelli (hoje residente na Itália), além da clássica cena na fachada da boate, com os famosos neóns e a chuva artificial caindo sobre o ator Chiquinho Brandão, encarnando a personagem Lola.

A megapista de dança da Corintho, em Moema, da mesma dona da já finado Medieval: o palácio gay dos anos 80. Reprodução Anjos da Noite.

Festas lendárias de Carnaval, de Réveillon e à fantasia, multidão na porta, pegação nas ruas próximas da boate, enfim, a Corintho foi o grande palácio gay dos 80, como o Medieval havia sido nos 70. Em 91, Elisa deixou o negócio, que ainda resistiu até 1993. Hoje o local é uma igreja evangélica.

Mas a década de 80 ficaria marcada por uma triste mancha: a epidemia da AIDS. A doença, chamada de peste gay, começou a pintar por aqui no início dos 80. Em 83, começavam a morrer as primeiras vítimas célebres, como o costureiro Markito. Foi pânico geral.

Grandes shows da Corintho: Broadway perdia! Reprodução.

A epidemia passou como um rolo compressor por cima da comunidade gay (já que, no início, os gays eram os principais atingidos pela síndrome), fazendo com que a noite LGBT da época se tornasse um tanto sinistra, e levando a uma decadência das casas noturnas dedicadas a esse público, já no fim dos 80.

Ao mesmo tempo, surgia sorrateiramente um outro movimento, que começava a pulsar numa certa boate aberta no porão de uma galeria na rua Augusta, nos Jardins. Era a Nation.

Anos 90: clubbers, techno, raves, afters, outings, internet, celular…

Nation: embrião dos clubbers, marcou o início de uma pegada eletrônica para a cena que na época se chamava GLS. Acervo Renato Lopes.

Aberta em 88 e fechada em 92, a Nation foi a primeira casa clubber da noite gay paulistana. Ali nasceram os fundamentos do que viria a ser conhecido como movimento clubber, inspirado nos club kidz de Nova York (cuja história real está no filme Party Monster, de 2003, com Macaulay Culkin). A Nation chegou a ressuscitar brevemente em 2017, pelo DJ Mauro Borges.

Liderado pelos DJs Renato Lopes e Mauro Borges, o clube (porque a partir dali não se falava mais boate, casa noturna, discoteca ou danceteria, e sim clube) abriu as portas para a década de 90. E logo no começo, em 91, já nascia outro ponto fundamental: o Clube Massivo, na Alameda Itu, criado por Mauro (que havia deixado a Nation ) e Bebete Indarte (ex-hostess da Nation) – que se tornaria a promoter mais hypada do Brasil.

O Massivo tornou pop o que a Nation fazia de forma mais underground. Assim, o clube passou a sair na mídia (inclusive na MTV Brasil, então recém-nascida em 1990), principalmente em outro baluarte da década: a coluna Noite Ilustrada, que Erika Palomino escrevia no jornal Folha de S. Paulo às sextas-feiras a partir de 1992, e que passou a ser a cartilha de todos os adeptos da noite e da cultura clubber.

(Para saber mais sobre a noite e a cultura clubber dos 90, leia o livro Babado Forte, 1999, da própria Erika Palomino.)

A famosa gaiola do clube Massivo: quando ser clubber virou notícia nacional. Acervo Renato Lopes.

O Massivo trouxe de volta o espírito dos 70, a moda disco e seus hits, instalou a mania por figurinos garimpados em brechós, divulgou de vez a cultura dos “modelões”, lançou modas como as “salivantes” almôndegas e gírias como “uó”. Foi uma avalanche. Os gays lotavam a casa, mas não só: astros globais, colunáveis e celebridades em geral adoravam dançar nas disputadas gaiolas penduradas acima da minúscula pista.

O sucesso do Massivo abriu caminho para outros bares e clubes associados ao mundo clubber, como AZE 70 e Latino (ambos de Bebete), Boutique, Bloom, Katz, e o lendário Sra. Krawitz. Este, aberto em 92 e comandado pelo promoter Nenê, foi palco das festas mais absurdas dos 90, com as “montações” chegando a níveis alucinantes.

Glaucia ++, Valerinha, David (Pet Duo), Bruno Doctor, Ana (Pet Duo) e amiga numa das noites intermináveis da Lôca. Acervo A Lôca.

Na sequência, Nenê virou promoter de uma casa aberta discretamente em 1995: a Lôca, ela mesma, na rua Frei Caneca. Nascida como Samantha Santa (que durou seis meses), na Lôca rolaram alguns dos primeiros afterhours da cidade, mas o grande trunfo da casa foi a Grind – projeto de rock para o público LGBT, criado pelo DJ André Pomba, e que revolucionou a noite gay. Inaugurada em 1998, a Grind morou na Lôca durante quase 20 anos – deixou a casa em 2017, indo se abrigar no Desmanche, na Rua Augusta (local onde nos 2000 existiu o Vegas).

A Grind foi um dos grandes marcos da Lôca, sua história é contada no livro Tragam os Cavalos Dançantes, de Lufe Stefen

Mas é impossível falar de afters sem mencionar o mais lendário da cidade: o Hell’s Club, que agitou o Columbia, na rua Estados Unidos, Jardins, entre 1994 e 1998. A festa abria às cinco da manhã de domingo e terminava por volta do meio-dia. Ali surgiam novos fundamentos da cultura clubber: o techno (disparado pelo DJ Mau Mau), o ecstasy (hoje banalizado e apelidado de “bala”), a luz de laser, e o inesquecível bordão impresso nos flyers: “Don’t Forget Your Sunglasses!”.

DJ Mau Mau e Pil Marques, novinhos, em clássica foto do Hell’s Club. Acervo Pil Marques.

A essa altura, metade da década, podemos dizer que a noite gay paulistana se dividia entre dois grandes grupos: o clubber, ligado à música eletrônica e ao cada vez mais forte techno; e o gay básico, que frequentava boatonas ainda herdeiras do esquema dos anos 80. No segundo grupo, brilharam casas como Mad Queen e Gent’s (ambas em Moema), B.A.S.E./Diesel (no antigo Hotel Danúbio, na Brigadeiro Luiz Antônio), Disco Fever (aberta em 97 por Mauro Borges no mesmo porão onde existira a Nation), So-Go (aberta em 99 na alameda Franca, Jardins ), o clubão Level (na Barra Funda), e as ainda hoje existentes Tunnel (aberta em 93 na Rua dos Ingleses ) e Blue Space (aberta em 96 na Barra Funda ).

Esse grupo também frequentava bares, a maioria deles situada nos Jardins: Gourmet (aberto em 1990 e fechado em 2017, depois de 27 anos de serviços prestados à comunidade gay), Paparazzi (no mesmo espaço onde existiu o Malícia e, depois, o Latino), Allegro, Pitomba, Hertz, Bar du Bocage, Flyer Bar… As muito finas continuavam indo ao bar-restaurante Ritz, também nos Jardins, aberto em 81 e ainda vivo.

Laurent Garnier (centro) com o crew da Sound Factory, com Julião (regata) como cicerone. Acervo DJ Julião.

Já o primeiro grupo não era tão radicalmente gay, e se aprofundava cada vez mais na música eletrônica de raiz, indo a lugares como a Sound Factory, primeiro na Penha e depois em Pinheiros, e se jogando na febre das raves e megaraves, que se multiplicaram como Gremlins na segunda metade da década: em sítios, fazendas, parques, galpões, fábricas, onde desse. Rapidamente, porém, as raves se popularizaram, se banalizaram e muitas se descaracterizaram. Os fervorosos da música eletrônica foram se abrigar então em casas abertas na segunda metade dos 90, como Florestta, Lov.E, Stereo (depois rebatizada de D-Edge, ela mesma), Manga Rosa, U-Turn… Sem falar da Parada da Paz, que se inspirou na Love Parade de Berlim e aconteceu de 97 a 2000, deixando saudades.

(Para saber mais sobre a revolução eletrônica e a história de seus principais DJs, leia o livro Todo DJ Já Sambou, 2003, de Claudia Assef, editora deste site.)

Saudosa pista do Lov.e Club, na rua Pequetita, em São Paulo. Acervo Eli Iwasa.

Unindo os dois mundos, havia um contexto social onde cada vez mais gente (incluindo famosos) se assumia como gays, lésbicas, bissexuais. Eram os famosos outings, turbinados por filmes que celebravam o “gay way of life” e o “pink money”, como Priscilla, a Rainha do Deserto ( 1994 ), que consagrou as drags.

A drag queen Silvetty Montilla, a mais pop de todas, num de seus shows divertidíssimos na Blue Space. Acervo Blue Space.

Ah, sim! Popularizava-se aí esse novo personagem: as drag queens, que no início eram hostesses, promoters ou humoristas, e tornaram-se as grandes pitonisas da cultural gay na década, indo parar até em familiares programas de TV, novelas, batizados, casamentos e eventos em geral. As mais famosas da década: Kaká di Polly, Salete Campari, Nanny People, Veronika, Márcia Pantera, Paulette Pink, Léía Bastos, Alma Smith, Grace Lesada, Simplesmente Nenê, Dimmy Kier (anos antes do BBB) e Silvetty Montilla – esta, a mais bem-sucedida de todas, com mais de 30 anos de carreira, segue como a mais disputada.

Jornais, revistas e guias dedicados ao público LGBTQIA+,  na época chamado de GLS – Gays, Lésbicas e Simpatizantes) explodem, acelerando o consumo e a visibilidade. As revistas mais famosas: a carioca Sui Generis, com cultura, moda, noite, comportamento; e a paulista G Magazine, estampando homens famosos (atores globais, jogadores de futebol, cantores, pagodeiros, DJs, modelos) em nu frontal com ereção – coisa inédita até então.

Mundo Mix: chegou agrupando de um tudo do universo que na época era conhecido pela sigla GLS. Acervo Beto Lago.

Coroando esse cenário, dois eventos importantes contribuíram para o estouro da noite gay na década, ambos nascidos em 1993 e ainda na ativa: o Mercado Mundo Mix, passagem obrigatória para todos, e o Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual. E claro: o surgimento da Parada do Orgulho Gay, em 1997, alavancou ainda mais a cena. O evento foi crescendo espantosamente, a caminho de se tornar a maior parada gay do mundo, já nos anos 2000.

Ufa! De fato, quem viveu a noite nos 90 certamente se lembra de toda essa efervescência. Se os anos 70 foram “uma década bicha”, os 90 foram um revival disso – e com mais visibilidade ainda, já que voltou à moda ser gay, após diminuir o terremoto provocado pela AIDS nos anos 80. A noite foi o grande palco para a comunidade LGBTQIA+ se reafirmar.

Ouça a playlist As 20 músicas mais viadas da face da terra

Ainda nos 90 surgem dois elementos que iriam revolucionar completamente a vida, não só da comunidade LGBT, como do mundo todo: a internet e os telefones celulares. Mal sabíamos nós que nos anos 2000 essas duas “coisinhas” transformariam radicalmente a vida noturna, as boates, a cena, a moda, a comunicação, o sexo, o amor, enfim, tudo! Mas essa já é uma outra história, reservada para quando chegar a hora de lembrar a trajetória da noite gay no século XXI. Até lá… Carpe Diem!

Esta matéria é oferecida pelo festival Milkshake

CLIQUE PARA VER FOTOS DO FESTIVAL MILKSHAKE