O ciclo completo do The Killers: como é o show de 20 anos de ‘Hot Fuss’
Flávio Lerner esteve em Las Vegas para a performance que celebrou duas décadas do álbum de estreia do grupo americano
“Algumas pessoas vêm a Las Vegas e perdem tudo; é assim que acontece. Mas que esta noite sirva como um lembrete: às vezes, funciona do jeito contrário”, proclamou o vocalista do The Killers no Colosseum, dentro do Caesars Palace — um dos principais hotéis da cidade americana onde tudo é grande, extravagante, chamativo, artificial.
Aquela noite de 24 de agosto era especial. Praticamente igual às outras cinco que a precederam, e também provavelmente às outras quatro que ainda viriam até o dia 1º de setembro, encerrando uma saga de dez shows voltados a Hot Fuss, o álbum de estreia do grupo comandado por Brandon Flowers. O LP fez 20 anos em 07 de junho, nos dando aquele sabor agridoce de que o tempo, de fato, passa [e para quem ainda estivesse em negação, a grande quantidade de fios grisalhos e cabeças calvas presentes esfregava na cara a crua realidade].
Hot Fuss é um senhor disco de indie rock que representa bem a estética daquela cena do começo dos anos 2000, e talvez um dos mais subestimados pela crítica, que costumeiramente coloca outros, como Is This It (The Strokes) e os dois primeiros do Interpol, como os definidores de uma era. Talvez pelo fato de o grupo ter, anos depois, furado a bolha e conquistado os normies, consagrando-se como uma das maiores e mais populares bandas [e, portanto, uncool, ou uncult] do novo milênio, a sua obra inaugural seja menos levada em conta do que deveria.
Mas tudo está ali. Os versos espertos [e alguns não tão espertos assim, como o icônico “I’ve got soul, but I’m not a soldier”] de Flowers, os poderosos riffs de guitarra de Dave Keuning, o baixo suingado de Mark Stoermer e a precisão rítmica do batera Ronnie Vannucci Jr. Os grandes hits, que se encadeiam na primeira metade da obra — Mr. Brightside, Smile Like You Mean It, Somebody Told Me e All These Things That I’ve Done —, e as tão aguardadas canções menos bombásticas, mas que não devem em nada aos singles, como Jenny Was a Friend of Mine, Andy, You’re a Star, Believe Me Natalie e Midnight Show; músicas que ajudaram a formar o caráter musical de muitos millenials, como o deste editor, e que dificilmente constam nos setlists atuais.
Como o próprio Flowers contava no começo do show, ele veio de uma pequena cidade de Utah a Las Vegas trabalhando como um garçom e apostou tudo em três homens que mal conhecia. Jackpot! Aquele momento no Colosseum era de full circle, não apenas pela celebração de duas décadas da pedra fundamental da banda, mas também por voltar a reunir sua formação original depois de anos, já que Keuning e Stoermer haviam pedido um tempo. E o local não poderia ser outro se não a cidade natal do The Killers, que desde sempre é onipresente nas suas composições, na sua estética e no seu coração.
Las Vegas — ou pelo menos a sua strip, região turística e central — é uma espécie de fuga da realidade, um mundo dos sonhos recheado de entretenimento 24 horas por dia e luzes de neon cintilantes. A strip tem como base os seus colossais hotéis, em que a hospedagem de clientes é apenas um detalhe. São neles onde você encontra os restaurantes, os delirantes cassinos e as salas de teatro. O Venetian, por exemplo, tem uma área que simula os canais de Veneza, com direito a passeios de gôndola acompanhados por canções italianas ao vivo e um céu azul fake, recheado de núvens, que mais lembra o cenário de O Show de Truman.
A Cidade do Pecado é, portanto, terrivelmente kitsch, mas ainda assim, divertidíssima. De alguma forma, a identidade musical do Killers transluz esse conceito. Flerta com o cafona em alguns momentos [o que foi se intensificando com o passar dos anos], mas na medida certa, sem ficar cheesy demais, talvez até sendo um guilty pleasure dos indies mais esnobes. Hot Fuss, sobretudo, é eufórico, dançante e emocionante, mas com uma boa camada de profundidade que o diferencia do puro edonismo frívolo de Vegas.
Poder assistir a um show voltado a um álbum tão significativo foi, sem dúvidas, singular, embora a vibe para se jogar não fosse das melhores para a grande maioria que estava em um dos assentos numerados do anfiteatro. Podíamos até ficar de pé, mas meio engessados, diferentemente dos poucos fãs privilegiados que conseguiram pegar a pista junto ao palco.
Além de todas as canções, executadas na devida ordem, e dos discursos ensaiados de Flowers — tocantes, porém repetidos palavra por palavra a cada noite —, a apresentação trouxe uma introdução e um encerramento teatrais e uma palinha de Luck Be a Lady, de Frank Sinatra, antes da especialíssima Midnight Show, uma espécie de opera-disco-rock insana que fala sobre um infame crime passional.
Depois de tocadas as 11 músicas, uma bônus: Glamorous Indie Rock & Roll, faixa 8 da versão britânica de Hot Fuss que, como relatado por Brandon, nasceu como ironia àquela mesma cena indie que os desprezava no começo, mas que acabou sendo interpretada por muitos como uma ode ao indie rock [“e que hoje eu percebo que eles é que estavam certos”].
Findada a execução do disco, uma pausa para o bis. No retorno dos músicos, Brandon surge com outro figurino, um extravagante paletó que remete a Vegas, e os Killers emendam uma sequência surpreendente de canções de outras eras. Sim, quase todas hits, como Human, Caution, Runaways, Read My Mind e a finaleira When You Were Young, mas ainda houve espaço para o inusitado com Sam’s Town e Uncle Jonny, duas grandes faixas do segundo LP, Sam’s Town.
Sem falar em Bright Lights, o single mais recente, um recorte exato deste momento de ciclo completo em que a banda volta a sua formação original, celebra 20 anos de seu primeiro disco e ainda homenageia a fabulosa cidade de Nevada de onde veio.
Esta segunda metade traz diferentes músicas conforme a data frequentada, o que dá um pouco mais de espontaneidade a um show que segue quase o mesmo script a cada noite [o que não é necessariamente ruim]. Como nas roletas dos cassinos, você precisa apostar e rezar para que o aleatório lhe presenteie com aquela música do The Killers que você sempre quis curtir ao vivo, mas nunca teve a oportunidade.