C6 Fest 2024 Cimafunk no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Do rap ao jazz, C6 Fest 2024 ratifica posto de melhor curadoria musical do Brasil

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Com a ajuda do clima e de atrações inspiradas, a segunda edição do festival confirma sua marca de “supercool”; ainda assim, melhorias podem ser feitas para 2025

Com a colaboração de Adriana Arakake, Claudia Assef e Flávio Lerner

A primeira coisa que nos vem à mente depois dos dias da maratona de shows do C6 Fest 2024 é que ele foi invertido de trás para a frente. Afinal, três dos melhores shows do final de semana foram justamente das atrações que abriram os palcos: Cimafunk, no sábado, e Squid e Paris Texas, no domingo.

Claro que a programação seguiu uma estratégia dos curadores, de trazer público já no começo do evento. Afinal, o C6 Fest tem uma pegada de festival diurno. O lindo e bem localizado Parque Ibirapuera também. E, para fechar a conta, São Pedro colaborou, com dois dias de clima ameno e sem chuvas.

Botar artistas inovadores e musicalmente sensuais no começo da tarde, logo ao abrir os portões, pode não ser algo tão surpreendente assim. Agora, vê-los roubar a cena de um line todo com shows sensacionais, isso sim é digno de brinde. E fica a dica: no ano que vem, chegue cedo!

A intenção da produção comandada por Monique Gardenberg de dar ao festival um clima cool e, como nos disse a própria, paradoxalmente intimista, deu certo. Sob a sombra de árvores, amigos comiam e bebiam, abastecidos por uma boa variedade de restaurantes convidados para o evento. A circulação flutuava, ora em meio à natureza dos jardins do Ibirapuera, ora por sua majestosa arquitetura. Afinal, o auditório, o Museu Afro Brasileiro e o Museu da Casa Brasileira estavam dentro do espaço destinado ao festival.

C6 Fest 2024

Público curtindo os balanços coloridos no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

O palco Arena Heineken, encaixotado em telões gigantes e a céu aberto, trouxe uma experiência cinematográfica aos shows noturnos, usando o palco do Auditório Ibirapuera com a parte de trás aberta para a platéia. A Tenda MetLife, em formato mais tradicional, contou com duas árvores enormes no meio do espaço destinado ao público. Simbólico, em tempos atuais. Ambos com sonorização perfeita para os artistas que tiveram a sorte de dividir conosco o final de semana. A programação voltada ao jazz mais tradicional ficou no Auditório Ibirapuera, belo e capaz de atender às altas exigências técnicas demandadas pelas atrações deste gênero musical.

Quem sofreu foram os DJs e live PAs do palco Pacubra, dentro do saguão do Museu da Casa Brasileira. A acústica da arquitetura causou reverberações que não ajudaram o público a obter o melhor dos que se apresentaram. Junto dela, a sua localização e quantidade de atrações trouxeram uma pegada de palco secundário, menos importante e atrativo que os demais, o que explica o seu esvaziamento.

Sexta-feira

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Charles Lloyd no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Na sexta-feira, a noite de abertura teve sua pompa e elegância concentradas no Auditório, em clima intimista, e com o brilho de Charles Lloyd. Aos 86 anos, Lloyd é a personificação da história do jazz, e merecidamente foi aplaudido de pé por vários e longos minutos. A noite também foi de Jihye Lee, que brilhou no comando de sua orquestra, com composições próprias que têm forte influência da cultura de seu país, a Coreia do Sul. A sexta ainda teve, na abertura, a dupla de brasileiros Daniel Santiago & Pedro Martins e encerrou com o guitarrista Jakob Bro, mostrando a amplitude e ecletismo do grupo de curadores.

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Jihyee Lee Orchestra no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Sábado

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Soft Cell no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Quem chegou no sábado sentiu seu queixo caindo logo ao pisar no parque. O cubano Cimafunk entrou para o hall de artistas que podem ser bons no Spotify, mas são incríveis no palco. Uma mistura de funk pesadão [o original, não o brasileiro] com música caribenha. Com chave de ouro, estava aberta a programação pop do C6 Fest 2024, para nos mostrar logo de cara a sua curadoria.

Nascido em Cuba, em 1989, o compositor, cantor e produtor Erik Alejandro Iglesias Rodríguez lançou seu primeiro disco em 2017 (Terapia), e pôs fogo na plateia com seu caldeirão de ritmos afrolatinos — salsa, guaguancó, rumba urbana, música ritual, além de soul, funk, jazz, hip hop e pop. “Cima”, a primeira metade de seu nome artístico, deriva de “Cimarron”, termo que se refere a pessoas escravizadas que fugiram e encontraram abrigo em comunidades remotas do país latino-americano. O show teve encerramento divertidaço, com umas 15 pessoas da plateia [incluindo a dona deste site] convidadas para subir ao palco e dançar a última música.

Do outro lado, Jaloo e Gaby Amarantos representavam os brasileiros começando a festa, para logo darem lugar a um show impressionante de Romy. Nós já esperávamos por uma boa apresentação, mas a energia da cantora do The xx com o público foi bastante especial. Surpreendeu a quantidade de pessoas que conheciam seu trabalho solo e estavam lá para reverenciá-la, chegando ao ponto de ecoarem gritos à la torcida organizada: “Romy! Romy! Romy!”.

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Romy no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

A artista também se mostrou profundamente tocada pela recepção, admitiu que aquele era um momento especial para si e agradeceu, mais de uma vez, a cada indíviduo que estava naquela tenda. Desavisados que caíssem de paraquedas teriam a certeza de que ela era a atração principal do segundo dia de C6 Fest — e por isso, nós apostamos: esse seu projeto solo vai muito longe! Em sua versão solo, Romy lembra momentos inspirados de Tracey Thorn, vocalista do Everything But The Girl, com seu jeito manso e sofisticado de cantar sobre bases de house music com pegada pop, soltadas ali na hora pela produtora musical Francine Perry. Além de fazer um grande set ao vivo com músicas autorais, as duas se divertiram e honraram a fama de party animals dos ingleses.

Enquanto isso, a Arena Heineken seguiu com os sensuais shows de Ayra Starr e de uma verborrágica RAYE, que se mostrou tremendamente espontânea (a ponto de fazer um fã do front cair em lágrimas ao ter seu CD autografado ali mesmo), carismática e com um incrível potencial vocal. A dona do recorde de seis vitórias em sete indicações no Brit Awards foi responsável por um dos espetáculos mais bonitos e emocionantes — e pensar que ela já compôs para Beyoncé e produziu para Rihanna, mas era constantemente rejeitada como artista solo por sua gravadora.

Enquanto a britânica encantava geral, muitos já se dirigiam à Tenda MetLife para não perder a [teoricamente] atração mais esperada da noite — a estreia de Soft Cell no Brasil. A ansiosa animação do público, que por tanto tempo esperava pelo grupo no país, acabou vendo um show musicalmente cansado. No universo do synth-pop, em que grande parte dos elementos da música sobe ao palco programada por baterias eletrônicas e sintetizadores, é realmente mais difícil ousar ou apresentar algo diferente do que ouvimos em casa.

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RAYE no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Impossível não lembrar da declaração recente do vocalista Marc Almond, de que se sentia como “um celular velho com apenas um ponto na barra da bateria, e sem carregador”. Talvez isso ajude a explicar um público relativamente pequeno, e que se tornou ainda menor tão logo o grande hit da banda, Tainted Love, foi tocado. Ainda assim, foi um acalento ver uma figura tão importante da música, um autêntico combatente da luta anti-homofobia desde os anos 1980, vivo e feliz, cantando músicas que podem ter ficado tecnicamente para trás, mas cujas mensagens seguem atuais e urgentes.

Foi um check na lista de shows para ver antes de morrer para muitos e talvez um dos últimos de Marc Almond, que, sem seu parceiro original de banda, Dave Ball, tem viajado com um músico substituto, o alemão Philip Larsen, além de dois backing vocals e um saxofonista — instrumento que se tornou uma marca registrada no som do Soft Cell. Mais um ponto para a curadoria do C6 Fest, que entende que o valor histórico de um artista, às vezes, vale mais do que capacidade de performance atual.

Quase simultaneamente, o Black Pumas entregou seu show perfeito de soul music bem tocada, bem cantada e, principalmente, contemporânea. O grupo já havia se apresentado no Brasil recentemente (no Lollapalooza 2022) e, ciente disso, apostou na fórmula certa para matar a saudade de quem voltou para vê-los. Baladas e hits marcaram o espetáculo.

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Black Pumas no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

A belíssima voz do frontman Eric Burton fez o público cantar junto várias canções, assim como seu imenso carisma e simpatia levaram geral ao delírio quando desceu do palco e passeou cantando no meio dos espectadores. A música sensação, Colors, parecia que fecharia a apresentação, até Burton voltar apenas com o violão para uma interpretação comovente de Fast Car, de Tracy Chapman.

O encerramento dos dois palcos principais ficou por conta da dupla 2manydjs, em clima de festa. Um set ótimo, competente e “real”, mas longe da fúria rock’n’roll das discotecagens de Steven e David Dewaele de tempos atrás. Ainda assim, o “pegar leve” dos irmãos foi mais do que suficiente para manter a tenda cheia, sorridente e animada.

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2manydjs no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

A programação da Arena e da Tenda se encerrou às 22h, e gerou uma pequena confusão. Os seguranças barraram o acesso ao palco Pacubra, único espaço com programação até a madrugada. Todo mundo, obviamente, decidiu correr para ver os shows remanescentes ao mesmo tempo, e a decisão de segurar o povo do lado de fora resultou em reclamação e alguns copos de cerveja voando em cima da pobre equipe. A circulação foi liberada cerca de 15 minutos depois, e o público encheu a pista para ver o show de Fausto Fawcett, Favelost, preparado com carinho para o evento, com participações de B Negão e a potente Fernanda Dumbra.

O grande lance de Fausto Fawcett, com suas falas em spoken word sobre bases eletrônicas, é justamente o conteúdo das letras. E a má acústica do espaço tirou de todos esse tesão. Não se reconhecia uma só palavra do que Fawcett recitava. Depois dele, Valentina Luz fechou a noite, tocando até as 02h da manhã. Antes dos dois, para um espaço quase vazio, tocaram DJ PB e Pista Quente.

Domingo

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Dinner Party no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

No domingo, o C6 Fest começou duas horas mais cedo, confundindo o público, que não chegou para a abertura comandada por Jair Naves. A sensacional Squid assumiu a tenda às 15h15 e fez uma das melhores performances do festival. Os garotos são capazes de uma mistura complexa, e ainda assim, facilmente reconhecível de influências. O público amou e o show foi curto, muito curto. 45 minutos para um vulcão de talento.

Não deu tempo nem de respirar. Paris Texas assumiu o palco Heineken logo depois para nos lembrar como é um bom e clássico show de rap. Três MCs foram o suficiente para botar fogo no Ibirapuera. A música dos moleques, claro, ajuda. O grupo traz rock, breakbeat e funk, tudo temperado na medida. Foi como ver a timeline da música pop se fundir e se romper ao vivo, algumas vezes. Como se Sex Pistols entrassem de sopetão no ensaio dos Beastie Boys e plugassem Prodigy na mesa de som para começar um ensaio. Louco, sujo, encantador, o show terminou com uma roda de pogo iniciada pelo DJ da banda e que deve ter sido vista por astronautas, tamanha a energia gerada ali.

Noah Cyrus, que cuidou do povo no horário seguinte, trouxe ao festival aquela bicada de mainstream pop ao evento, com direito ao truque de ganhar bandeira brasileira do público e pendurar no suporte de microfone. Foi uma apresentação competente e lotada de fãs.

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Squid no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Com o produtor musical Daniel Ganjaman no comando e convidados do quilate de LinikerPreta Gil, era chegada a hora de ver
o Baile do Cassiano, uma grande festa celebrando um dos maiores mestres da soul music brasileira, compositor de grandes sucessos como A Lua e Eu e Primavera, entre vários outros.

Batia o relógio suas 18 badaladas, horário em que a programação do C6 Fest prometia incendiar de vez. E em relação à quantidade de público e gritarias emocionadas, foi mesmo o que aconteceu. Cat Power veio para matar a fissura dos brasileiros em ver Bob Dylan com seu violão e gaitinha charmosamente mal tocada se apresentando no país. Destilou todos os clássicos do disco perfeito de 1966, Blonde on Blonde, dando às canções um arranjo próprio, trazendo-as para seu folk preguiçoso. Não era Dylan, nem Cat Power. Mas àquela hora, meu amigo, em uma noite como aquela, o povo queria era festar.

Com a tenda também lotada, Pavement entrou com o jogo ganho. O primeiro acorde de todas as canções já puxava uma gritaria de gol de seleção em final de Copa do Mundo. E quando é assim, na cabeça do artista, basta fazer o seu e tá tudo certo. Pavement tocou músicas do Pavement, ao estilo Pavement, para fãs de Pavement. Tem como dar errado?

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Paris Texas no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Imediatamente condecorada com a medalha de banda mais bonita do festival, Young Fathers emocionou com som, performance e técnica sensacionais. Menos barulhento do que se esperava, porém muito mais pesado e cheio de groove. Assim como Paris Texas, uma renovação bem-vinda ao rap. Mas no caso do Young Fathers, mais sofisticado. Uma bela banda, funky no talo.

O encerramento do palco Heineken ficou por conta do canadense Daniel Caesar. Do alto de seus 29 anos e com hits super-romanticos, o cantor e compositor emocionou a plateia, que berrava seu nome e cantava todas as letras. Além de ser dono de um carisma impressionante, o Caesar tem a potência vocal de um anjo e fez jus ao fandom que pudemos presenciar no gramado do Ibirapuera, com direito a várias faixas com dizeres “eu te amo, Daniel” e até camisetas feitas sob encomenda.

O palco Pacubra ficou para a dupla de clássicos DJs houseiros Meme e David Morales, ambos assolados pelos mesmos percalços dos artistas da noite anterior. Ficamos imaginado como teria sido a performance dos dois em um dos espaços abertos do festival, com sistema de som definido e cheio de grave, obrigatórios em uma boa festa de house music.

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Cat Power no C6 Fest. Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop

Talvez teria sido mais inteligente montar dois espaços destinados a DJs: um pequeno e intimista, para as atrações que disputavam espaço com as estrelas dos outros dois grandes palcos, e um maior, aberto no momento em que a música do festival encerrasse (22h), com capacidade para absorver todo o povo do C6 Fest reunido em lugar só, se acabando na pista em clima de after até a hora de voltar para casa.

Ainda assim, o saldo foi tremendamente positivo, e o C6 Fest encerrou sua segunda edição consolidando seu status como o festival mais descolado do Brasil na atualidade, com um mix de público diverso e de atrações que deixaram todo mundo mais feliz para encarar a segundona.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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