A mulher que inventou o punk
No Dia Internacional da Mulher, uma homenagem a uma das maiores pioneiras da música e da arte
“Tu és Patti Smith, e sobre esta pedra, construirei o punk.”
E assim se fez, pelas mãos dos apóstolos da artista que realizou o alicerce do imenso castelo contracultural responsável por uma das maiores revoluções comportamentais e estéticas da história da música.
Quando Ramones, Talking Heads, Iggy Pop, Television, Blondie e, mais tarde, do outro lado do atlântico, Sex Pistols, The Clash e tantos outros artistas começaram a edificar as torres sujas do castelo caótico da estética punk, Smith já repousava, sólida feito rocha, sobre Nova Iorque. Já havia vivido e feito mais do que muitos de seus discípulos fariam em toda uma carreira. Não em composições musicais, mas na vida real.
Em 1976, a filha de uma cantora frustrada de jazz (que lhe havia presenteado um disco de Bob Dylan, quando criança) já havia se mudado para NYC, dormido em bancos de praça, feito bicos em livrarias, ido a Paris, se apresentado na rua, morado no Chelsea Hotel e tomado, para si, bares como o Max Kansas City e o CBGB, em escrituras lavradas pelas palavras de sua poesia marginal, que recitava sem medo algum, em cima do palco.
Seus versos descreviam os livros que lera, a vida que vivera e, profeticamente, tudo o que ainda enfrentaria.
Garotos rebeldes e inocentes da primeira geração do punk rock viam nela mais do que uma mulher. Viam um oráculo. A rocha sobre a qual deveriam construir sua igreja, como bem recomendaram os deuses do rock’n’roll. Não houve herege ou traidor nessa missão. Todos cumpriram o mandamento à risca.
A coragem com que Patti Smith se entregou à arte é extraordinária. Largou tudo e partiu, sem um puto no bolso, de New Jersey a New York. Sem planos, sem segurança. Punk.
Subiu ao palco do CBGB, em 1974, a convite da banda residente Television. Andrógena, de cabelo desgrenhado, sem maquiagem. Tomou o microfone:
“Jesus morreu pelos pecados de alguém, não os meus
meus pecados são meus, só meus
pertencem a mim”
Depois dessa introdução, tomou para si a música Gloria, da banda dos anos 60 Them, e ocupou-a. Usou apenas o refrão e escreveu uma nova letra. Uma letra punk. Todo mundo estava lá. Todos entenderam.
Quando chegou a NYC anos antes, deparou-se com a frustração do movimento hippie. Estava ciente disso. Dylan havia contado a ela, através de sua música. Patti Smith então, inventou o “ser punk”. Uniu falta de grana e sede de viver a ensinamento de punks de outros séculos, como o poeta Charles Baudelaire e os poetas beat, que tanto cultuava.
Encontrou o amor no fotógrafo Robert Mapplethorpe, tão inquieto quanto ela. O “artista de sua vida”, segundo a própria Patti. Sentiu-se ainda mais segura para o mergulho na arte. Fotografia, poesia, pintura, música, tudo ao mesmo tempo. Morou em quartos pútridos e em hotéis falidos, de camas cheias de pulgas e água enferrujada saindo da torneira. E se divertiu com isso.
De matriarca natural, aceitou tranquilamente a coroa de grande rainha de um movimento cultural. Seu reino se tornou um império. E rainhas não tem mandato. São rainhas para sempre.
Sabedora disso (e de tantas outras coisas), segue no trono até hoje. Escrevendo livros, tirando fotos, fazendo música e lançando discos. A Patti Smith de sempre. Já era madura em 1974, e ainda é menina, aos 77 anos. Apaixona-se por lugares, flores e pessoas. Tudo vira arte.
Segue expandindo seu império, sem mostras de cansaço. Assim são os fardos dos monarcas. 11 álbuns de estúdio, três ao vivo, 17 livros, 80 exibições em galerias de arte pelo mundo (foi curadora de mais 30), e mais de 200 leituras de seus textos e poesias.
Pedra imensa, sobre a qual uma infinita igreja segue sendo construída, por pedreiros artistas de antigas e novas gerações, dos quatro cantos deste planeta (redondo).
Patti Smith é a mais perfeita definição do que é ser uma lenda viva.
E o punk, amizade… o punk é feminino.