Do rock à house, do pop ao jazz, praticamente tudo o que ouvimos veio da África
O branco ama a música negra, mas não os negros. A frase, repetida em estudos dedicados à origem da música, explica por que, muitas e muitas vezes na história, artistas e autores foram invisibilizados em livros, revistas e até mesmo na própria arte que criaram.
Há muitos exemplos em que um gênero musical foi apropriado pela gravadoras, que descobriam artistas brancos para popularizar um estilo criado e desenvolvidos pela população negra. O caso mais notório? Elvis Presley e o rock’n’roll.
Aprofundando-se na história, descobrimos que praticamente todos os gêneros musicais de grande sucesso na música pop tem raízes na cultura negra.
Se socialmente as raças dominantes foram criando narrativas para se apossar da criação (e dos lucros) de diversos cenários artísticos, antropologicamente, não tem como esconder. Veio tudo da África. Este Dia Nacional da Consciência Negra é bom para nos lembrar disso.
Vamos falar de história? Siga o fio!
O banjo é africano
O principal instrumento usado na música country americana é africano. E foram os escravos que o criaram e ensinaram os primeiros brancos americanos a tocá-lo. Qual foi o “pagamento” que receberam pelas aulas? A classe dominante usou o banjo para começar a escrever as cook songs, canções que ironizavam e ridicularizavam o meio de vida dos escravos nos Estados Unidos, em tom de comédia.
As cook songs são a origem da música country americana. Antes disso, um artista negro, DeFord Bailey, foi quem se apresentou primeiro, em Nashville (1927), tocando o estilo considerado como alicerce do country, acompanhado de uma gaita — outro instrumento que se tornou indispensável no gênero.
Tocar pode, ouvir não
O jazz foi criado, basicamente, por negros que não conseguiam ler as partituras de música clássica. Confusos com aquela sopa de símbolos, resolveram improvisar, dando vazão a uma encantadora represa de criatividade, buscando sonoridades e ritmos adaptados da história da terra mãe e do blues, cantando nas lavouras.
Ligados na fantástica criação negra que nascia, casas noturnas de renome, como a Cotton Club, contratavam artistas negros para se apresentar todos os dias. Só que, no próprio club, negros não eram admitidos. Só branco podia ouvir e dançar.
Com o doo-wop, a mesma coisa
Uma das vertentes vocais do jazz, o doo-wop é a base do R&B, estilo musical que influenciou artistas que vão desde Taylor Swift a Michael Jackson. O gênero musical ficou tão famoso em Nova Iorque, que a comunidade italiana resolveu se apropriar das composições, mudando as letras e criando para grupos para se apresentar em áreas onde negros não eram permitidos.
A comunidade branca também resolveu meter a mão no doo-wop mas, para não passar a ideia de que tocavam música de negros, mudaram o nome do gênero para “barbershop“.
Trocar o rótulo, mandar na indústria e nas premiações
Outro gênero que sofreu um golpe com a troca de rótulos foi a música eletrônica. Criado e desenvolvido por negros desde o início, viu a indústria usar a mesma tática do doo-wop para dar aula de racismo sistêmico e inverter o eixo de poder do gênero, “criando” a EDM (Electronic Dance Music), que hoje controla a imensa maioria do fluxo financeiro deste mercado. Basta olhar para os maiores festivais e os DJs mais bem pagos. Só branquinho, tanto no palco, quanto na administração das empresas, quanto na plateia.
Ao olharmos para a lista histórica de premiações como o Grammy, por exemplo, nada faz sentido. Menos de um quarto dos vencedores são negros, e a disparidade se estende até mesmo em gêneros musicais que, por percepção geral do público, são totalmente dominados por negros, como o jazz e o hip-hop.
A origem do pop
Obviamente, tanto por questão de hegemonia política, quanto de poder financeiro da indústria musical, toda a música pop veio dos Estados Unidos. Após o final da segunda grande guerra, o país tratou de divulgar sua criação artística mundo afora, virando o jogo até mesmo com seus colonizadores, a Inglaterra.
Tudo o que está no topo das paradas, desde a década de 50, vem basicamente de três estilos musicais: o blues e o country, originários das chamadas “plantation songs“, cantadas por escravos nas lavouras; e o black gospel, cantos espirituais originários adaptados para a língua inglesa, em um processo de sincretismo parecido com o vivemos aqui, no Brasil, na criação do samba.
Esta tríade gerou tudo o que ouvimos. Soul, rock, funk, hip-hop, a música eletrônica… uma bela cadeia criativa que envolve desde Beatles e Madonna a Iron Maiden e o funk carioca.
O “Rei do Rock”?
Pois é. Por muito tempo, o autointitulado rei do rock foi o branquinho Elvis Presley. O que levou muito tempo para nos contarem é que, antes dele, a cantora Sister Rosetta Tharpe criava o som que seria apropriado por executivos das gravadoras, e remodelado em um astro jovem, bonito e branco, perfeito para adentrar, via aparelhos de TV, nas casas da classe média americana.
Johnny Cash, Little Richard e o próprio Elvis jamais negaram a influência de Tharpe em sua música.
Uísque, energético e tênis branco
Em mais um dos tristes momentos da história da música, as festas (que aqui chamamos de “eletrônicas”) embranqueceram. Ou, usando um termo mais apropriado, gentrificaram. Coisa de jovem rico, branco, brindando em praias paradisíacas de Ibiza ou em rooftops das grandes capitais.
É tanta plastificação estética (inclusive nas cabines dos DJs), que muitos se esquecem que a origem de gêneros musicais principais deste cenário, como a house music e o techno, surgiram nos guetos periféricos, feito por (e para) o público negro.
Frankie Knuckles, o padrinho da house music, e The Belleville Three (Derrick May, Juan Atkins e Kevin Saunderson), os pais do techno, são exemplos. Mas existem muito mais artistas negros que, com o tempo, foram invisibilizados ou renegados a segundo plano, na história da dance music — como explica perfeitamente o documentário What We Started (Cyrus Saidi, Bert Marcus, 2018).
Moral da história?
Quem é racista está, quase sempre, caindo em contradição quando “curte uma sonzeira”. A não ser que essa pessoa só escute música clássica, polca, valsa e afins.