Música eletrônica sem partido? Relembre 8 momentos políticos dos clubes e raves
Nosso colunista Camilo Rocha nos lembra momentos em que a música eletrônica fez diferença na política
Rave é sem partido, clube é sem partido, certo? Afinal, quem vai para uma pista de dança onde bate forte o tambor eletrônico está ali para se divertir e esquecer dos perrengues da vida.
Embora seja perfeitamente legítimo usufruir a música eletrônica dessa forma, é importante saber que existe muito mais por trás dessa música e dessa cultura.
Os edifícios da disco, house, techno e bass music começaram a ser erguidos lá atrás por minorias socialmente oprimidas. Ao longo das décadas, pistas onde rolam esses sons funcionaram como porto seguro e plataforma de expressão para pessoas que são alvo de preconceito e silenciamento.
Eventos de música eletrônica foram (e continuam sendo) implacavelmente perseguidos por autoridades em muitos países. A nível local, qualquer subcultura ou evento eletrônico está inserido nas disputas por espaço e permissão que existem nas cidades.
Olhando assim, fica claro que é impossível dissociar a música eletrônica, o clube e a rave da política.
Elaborei uma lista com oito exemplos de como isso aconteceu ao longo dos anos, no Brasil e fora.
Origens da house music – A house music surgiu na cidade de Chicago na primeira metade dos anos 1980. Assim como sua mãe, a disco music, ela se desenvolveu em clubes frequentados principalmente por pessoas negras, latinas e LGBTQIA+. Clubes como Warehouse e Muzic Box, onde DJs pioneiros como Frankie Knuckles e Ron Hardy eram residentes, eram espaços seguros onde se criaram comunidades e resistência contra uma sociedade hostil.
Assista Chicago Music History 101: The Warehouse
Underground Resistance – Surgido em Detroit, o techno nasceu como um som transcendente e intenso, uma trilha rítmica e abstrata para uma cidade de prédios abandonados e glórias passadas. Fundado em 1989, o Underground Resistance (Mike Banks, Robert Hood e Jeff Mills) propôs uma abordagem mais política e combativa em clássicos como Electronic Warfare (guerra eletrônica) e Message to the Majors (mensagem às grandes gravadoras).
Message to the Majors – Underground Resistance
Leis anti-rave no Reino Unido – No início dos anos 1990, as raves e festivais ilegais haviam se espalhado como fogo pelo countryside britânico. O ápice foi o Festival de Castlemorton, que juntou 40 mil pessoas, durou 7 dias e foi parar no noticiário da TV. A resposta do governo veio pesada: em 1994, foi aprovada a Criminal Justice Bill, que impunha restrições a agrupamentos onde o som fosse caracterizado por “batidas repetitivas”. Com a lei, o circuito de eventos ilegais perdeu força.
Castlemorton Rave no noticiário inglês
Paradas de rua em São Paulo – No fim dos 90 e início dos 2000, eram raros os eventos de rua em São Paulo e a cidade era ainda mais voltada ao carro do que hoje. Em paralelo, gêneros como house, techno e drum’n’bass alcançavam jovens de todas as classes sociais. As paradas de rua de música eletrônica realizadas em São Paulo entre 1997 e 2003 (seis Paradas da Paz e uma Parada AME – Amigos da Música Eletrônica) foram pioneiras na reconquista do espaço público por meio da festa. Em suas últimas edições, chegaram a juntar mais de 100 mil pessoas na região perto do Parque do Ibirapuera. Não à toa, a prefeita Marta Suplicy, eleita em 2000, fazia questão de participar e apoiar os eventos.
Direito à festa – Cerca de dez anos depois, um novo movimento de festas em São Paulo ocupou ruas, praças e prédios vazios pela cidade com música e dança, em um tempo de clubes caros e cheios de regras. Era o braço eletrônico de um novo ativismo urbano que defendia o “direito à cidade”, ou seja, uma vida urbana mais digna e inclusiva. Foram anos incríveis: Metanol e Selvagem encheram calçadas do Centro, Capslock fez festa em ocupação do MTST, Mamba Negra botou som na praça Princesa Isabel, ao lado da Cracolândia, e a VoodooHop fez do Minhocão uma pista de dança.
Inclusão trans – A cena das festas independentes de São Paulo trouxe uma postura bem mais política que as gerações anteriores, em linha com as discussões sobre representatividade e empoderamento de minorias que ganharam fôlego nos anos 2010. Foi uma maneira de resgatar a house e o techno da apropriação playboy branco hétero que vinha acontecendo desde os anos 2000. Dentre as medidas adotadas por festas como Mamba Negra e ODD está a entrada cortesia para pessoas trans. É uma ação importante para o grupo talvez mais discriminado e ameaçado do Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo.
A cena da Georgia – Como é manter uma cena techno, com frequência LGBTQIA+, em um país ultra-conservador em que figuras religiosas e políticas expressam sua homofobia abertamente? Os frequentadores do Bassiani, em Tbilisi, capital da Georgia, sabem bem. Em 2018, como parte de uma campanha de intimidação contínua, o clube sofreu uma truculenta batida policial. Em resposta, milhares de manifestantes realizaram um protesto movido a techno em frente ao parlamento do país. A manifestação foi um ato de coragem: um número igualmente grande de manifestantes de extrema direita foi convocado no Facebook para fazer frente aos “sodomitas” e “traficantes” do Bassiani. O clube segue resistindo.
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Resistência em Uganda – Fundado em 2015, o festival Nyege Nyege, em Uganda, se tornou uma plataforma importante para a música eletrônica africana, atraindo a atenção de todo o mundo. Desde o início, o evento enfrenta muita hostilidade em um país dominado por uma religiosidade extremista. Em Uganda, por exemplo, relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo podem resultar em condenação à prisão perpétua. Considerado “imoral” por políticos e líderes religiosos conservadores, o festival é tolerado pelo governo porque contribui para movimentar o turismo no país. Em 2022, o governo emitiu uma série de diretrizes para autorizar a realização do evento, incluindo a proibição de “orgias sexuais e nudez” e “linguagem, canções e expressões vulgares”.