Atração do WME, Thabata Lima Arruda conversa com o Music Non Stop
Desde 2017, Thabata Lima Arruda se debruça sobre os festivais para levantar quantas mulheres estão à frente do palco em suas programações. Compila tudo em gráficos e bota a boca no trombone. Suas pesquisas receberam massivo apoio da classe artística, principalmente feminina, e já chegou aos escritórios dos médios e grandes festivais brasileiros.
Dentre os produtores, recebeu reconhecimento de alguns, resistência de outros e justificativas de muitos. As mais comuns é de que não há mulheres fazendo este ou aquele tipo de trabalho, e que “mulheres não vendem tanto ingresso quanto artistas homens”. Você não leu errado: o país de Elis Regina, Rita Lee, Alcione, Daniela Mercury e Anitta não tem mulheres que vendem ingressos. Dureza.
Arruda surgiu no meio das bandas independentes do interior de São Paulo. Fazendo show pequeno, vendendo camiseta em banca de merchandise, rodando pelo backstage, até que comprou o sonho do coletivo Fora do Eixo de correr por fora e organizar o mundo da música. Sonho frustrado, mas que ensinou muito à mulher que, hoje, fez de suas pesquisas sua principal missão no mundo da música. E está ajudando a conseguir resultados sólidos.
Prestes a integrar o painel Um retrato sobre a presença feminina nos eventos ao vivo e na distribuição de direitos autorais, na conferência do WME, que rola neste final de semana, Thabata conversou conosco sobre sua trajetória, o momento das mulheres em festivais e o que é preciso para que a representatividade siga crescendo no meio artístico brasileiro.
Jota Wagner: Hoje você está na missão de mapear a presença feminina nos festivais. Mas queria saber um pouquinho da sua história. De onde você veio, mulher?
Thabata Arruda: Estou na música há mais de 20 anos. Comecei ainda criança, como estudante de canto em corais. Depois, fui para a produção de eventos, festivais e bandas. De booker a roadie, fazia de tudo. Sou do interior de São Paulo e me mudei para Sorocaba para estudar geografia na UFSCar. Lá dentro, eu comecei a fazer eventos, participar de projetos de extensão da própria universidade, mas sempre atrelados à música. Foi ali que eu entendi que dava para eu estar na música sem precisar estar no palco.
Comecei então a partir para outras atividades. Passei pelo coletivo Fora Do Eixo, fiz todo aquele rolê de imersão e, apesar de hoje eu ter centenas de críticas a respeito do que foi e o que é aquele movimento, para mim foi uma grande escola, sem dúvida.
A escrita também esteve sempre presente desde adolescência, fazendo blogs, colaborando em outros. Ao longo do tempo, fazendo todo aquele trabalho de estar ali no chão, no dia a dia, eu acabei me mudando para São Paulo, onde passei dez anos. Depois disso, comecei a trabalhar em um startup chamada Dale Gig, de criação, produção e viabilização de turnês. Ali voltei a escrever de novo.
Mas não queria ficar escrevendo só sobre bandas que eu gosto. É fácil a gente escrever sobre o que a gente gosta. Fiquei com essa pulga atrás da orelha, de escrever coisas mais críticas, sobre o mercado musical como um todo, sobre tudo o que acontece no Brasil.
Acabei conhecendo uma pesquisa de uma plataforma chilena chamada Ruidosa, que existe até hoje. Eles mapeavam a presença feminina em festivais da América Latina. Foram quatro ou cinco países, em 2017. Aquilo me impactou muito. Assim que vi os gráficos, pensei: por mais que eu tenha passado vinte e poucos anos dentro de camarins, em festivais, tendo a percepção de que eu estava ali sozinha, sendo a única mulher e única mulher preta, quando a gente materializa em gráfico, o impacto é muito diferente. Me lembro de que mandei uma mensagem para elas perguntando se elas tinham dados do Brasil, e recebi de volta uma provocação: “faça as do Brasil”.
Então, comecei meu primeiro levantamento. Mapeei os anos de 2016 a 2018. Como trabalhei no Sesc por uma época, tinha contatos pessoais do Selo Sesc. Quando terminei a pesquisa, enviei para eles perguntando se havia a possibilidade de publicar através da revista digital deles, que é a Zumbido, que hoje está na plataforma Medium. Segui publicando em 2019. Quando veio a pandemia, os festivais estavam todos se ferrando grandão. Fiquei receosa em publicar algo que ainda complicasse mais a vida deles. A pesquisa não teve um alcance massivo, mas chegou em pessoas-chave.
E lá já começou a ganhar uma importância, a partir de então…
É. Causou algo na cabeça da galera. Eu segui com a pesquisa e em 2021 fui indicada, pelo público, para o Prêmio Sim, e acabei ganhando como Inovação e Pesquisa Em Música. Isso fez com que o estudo acabasse chegando em muitas mulheres, que se empenharam em fazer com que ele ganhasse visibilidade.
Qual foi a energia que você sentiu ali, no Fora do Eixo?
Cara, quando eu comecei, eu estava nessa angústia de precisar fazer algo pela música. Me avisaram, em Sorocaba, que a cidade sediaria uma das Colunas Fora do Eixo, que eram rolês em que eles iam até as cidades para falar do projeto. Explicaram a ideia inicial, que era ser um coletivo de coletivos, para ajudar as bandas a rodarem pelo país.
Era o mundo perfeito. Você tem uma banda aqui, faz ela rodar por outros estados, depois traz uma banda de fora para que talvez nunca chegaria na em sua cidade. Eu entrei de cabeça. Comecei um coletivo chamado Sumo Cultural, que depois virou uma produtora. Abri CNPJ, viajei, fiz imersões, trabalhei na sede, desde o operacional até ficar na banquinha de merchandise das bandas. Enfim, toda a fórmula do Fora do Eixo.
Hoje, com o distanciamento temporal, eu acredito que sua existência foi importante, para provocar as pessoas e o mercado, e de fazer ressurgir um mercado independente, ainda que com suas fragilidades. Ao longo do tempo, fomos vendo essas fragilidades, que se tornaram as dificuldades que existiam para o Fora do Eixo. Bandas mal remuneradas, preocupação com a quantidade de eventos muito maior do que a qualidade. Para eles, era muito importante falar “chegamos no fim do ano e fizemos milhares de festivais ao redor do Brasil” — só que você ia ver e nenhuma banda foi paga, não teve camarim, nem estrutura.
Era uma ideia utópica, como tudo que o jovem faz…
Exato. No que diz respeito a ter mercado de fato que se sustente, que se prolongue. A galera do Fora do Eixo sempre se apoiou muito no estado, no governo, tanto que um dos escândalos que surgiram, em certo momento, foi a questão de editais, de transparência, do uso de verbas públicas, etc.
Para minha experiência pessoal (não posso falar por todo mundo ou pela instituição), foi uma questão muito mais de discurso do que de prática, que é o mundo real. Não estavam muito preocupados com a materialidade das coisas. Eles queriam um sistema horizontal, mas a gente sabe que é difícil manter essa horizontalidade.
A gente tinha um Pablo Capilé de figura central ali, tomando conta da situação, sempre. Hoje, olhando para trás, eu penso que foi importante como modelo de provocação. Hoje, já não existe mais um circuito de bandas independentes, um circuito sustentável de festivais para que as bandas circulem.
Você começou a se incomodar com a falta da presença feminina ali, nos bastidores. Hoje como está essa questão?
Olha, muita gente me pergunta isso. É difícil saber porque não temos transparência dos festivais. Vemos atráves das fotos que os festivais publicam. Vejam por exemplo o caso do WME. É muito legal eles terem um selo para dar aos festivais que contratam 50% mulheres. Mas é importante, também, ter um banco de dados sobre isso. Quais são os festivais, em que área elas estão trabalhando…
Hoje, eu percebo na condição de uma mulher que frequenta muitos shows e que já trabalhou no backstage. Como expectadora, por exemplo, já cheguei ver shows em Sescs com toda a equipe técnica contratada só de mulheres.
Coisa que a gente não via de jeito nenhum há poucos anos…
Nunca, nunca, nunca. Tem coisa que eu vejo, que eu nunca vislumbraria em 2013, 2014. No entanto, estou falando de um recorte de São Paulo, da capital, entendeu? Eu não sei como tá no Pará, em Salvador ou no Centro-Oeste.
E como você tem feito os levantamentos considerando o tamanho do Brasil? Há muitos festivais, vários que não duram muito tempo…
Quando eu comecei, foram 24 festivais. Eu foquei nos multigêneros, e realmente, os principais. Festivais a partir de 40 mil pessoas. Peguei alguns independentes também, como o Banadada, Abril Pro Rock e Goiânia Noise.
O Rock in Rio, por sua vez, era um festival que eu não coloquei. Já é muito grande e eu preferi focar nos festivais midstream. É importante também mapear os patrocinadores. É muito dinheiro que roda. E este dinheiro está indo para quem? Só para homens? Foi uma coisa que também comecei a mapear. Isso ainda não está publicado.
Também estou mapeando o recorte racial e considerando somente solistas. Pensar integrante por integrante já seria um outro braço da pesquisa. É uma coisa muito grande, por mais que seja um festival novo.
Todos os que você coloca no mapeamento são festivais que têm patrocínio de empresas?
Sim, basicamente é isso. Temos de saber de onde vem o dinheiro.
No nosso país, a gente sempre teve estrelas da música feminina em todos os estilos musicais. Mulheres da MPB, da terra da Rita Lee, Pitty… Por que você acha que mesmo assim ainda a presença feminina na linha de frente ficou tão escanteada?
Tem a resposta direta e simples que é: misoginia. A estrutura patriarcal. E tem talvez a resposta mais floreada, que a gente pode se pautar nas desculpas dos próprios produtores. Os produtores alegam que mulher não vende ingresso, que não tem mulher que toque tal estilo, etc. Mas quando vemos que, em 2024, há sim mulheres que vendem ingresso e que fazem tudo isso, mas não está inserida, aí eu acabo colocando na conta do machismo, apenas.
Estou desde 2017 fazendo essas pesquisas e eu já estou bem naquelas de poucas ideias. Por que que curador não chama? Preguiça. Porque tem como você pesquisar, a gente tem um monte de ferramenta de pesquisa. Sites como o Chartmetric, ou o Spotify Charts… Tem mulher que toque estilo X ou Y, tem mulher que é instrumentista, tem mulher que produz, enfim, a gente está em todo lugar, né? A gente é a maioria da população do Brasil, principalmente.
Vivemos uma estrutura que privilegia homens brancos, e que não quer abrir mão disso, entende? Então assim, “eu não quero abrir mão de chamar meus amigos pra tocar”. O Abril Pro Rock é um festival que tem 30 anos e eles nunca passaram de 15% de mulheres presentes. Vai dizer que eles não sabem o que está acontecendo na cena? Que não tem banda de mulher que toca heavy metal?
Você tem acompanhado se a presença das curadoras nesse meio de festivais vem aumentando?
Olha, aumentou sim. Tínhamos o Vento Festival, que acabou. Agora, o Festival do Sol, o Coquetel Molotov, o BR-135. Mas o que me preocupa é aquela história de não ter transparência. De saber quem assina no final, sabe? Ter uma curadora é para tirar foto ou é realmente é uma mulher que está na tomada de decisão real, prática?
Isso acontece muito com a comunidade negra, LGBT, que a gente elege uma figura que represente todas as mulheres e todas as mulheres pretas e todas as gays.
Sim, tipo… tendo ela já é suficiente.
É, e aí a gente tem, sei lá, cinco festivais no mesmo ano com line-up que é 60% semelhante. Aí forma-se o joguete do fulano encontra fulano, ciclano canta ciclano. Que aí a gente dá aquele verniz de exclusividade para a mesma pessoa realmente ir no festival. Quantas vezes por ano vou ver a Xênia França, ou a Liniker? Tem muito festival que é feito só por carinhas brancos, com cara de Faria Limer.
Como os festivaleiros têm visto iniciativas como a sua? Acham legal ou te veem como uma inimiga?
Pelas mulheres, eu estou sendo vista como amiga. Pelos donos de festivais eu não sou amiga de nenhum, inclusive. O cara do Porão do Rock já me deu vários likes em meu Instagram, já me marcou, já mandou eu apagar minha pesquisa, por exemplo, falando que eu tava errada. Eu percebo que eles sabem da pesquisa, obviamente. Ganhou um prêmio da Sim, então acabou caindo, como eu falei, dentro desses lugares.
Em relação às mulheres, desde a primeira vez que eu publiquei, foi um impacto muito bizarro. Recebi tanto relato de musicista falando de assédio, outras falando que, realmente, na cidade delas não havia mulheres trabalhando, outras dizendo que sempre se inscrevem em editais e nunca são escolhidas. Muitas mulheres surpresas também. Porque quando se vê os números aglutinados em uma pesquisa, a percepção realmente é outra.
Este ano eu mapeei 42 festivais e a gente não passou de 35% de presença feminina nos palcos. Festivais altamente patrocinados.
Na primeira edição de sua pesquisa, qual foi a porcentagem de mulheres?
O festival que teve maior porcentagem, foi de 21%.
Quando você acha que a gente vai chegar nesse momento de estar igual a igual, ou de um line-up feminino estar maior do que o masculino?
Eu acho que naturalmente esperar que aconteça, não vai. Então a gente precisa de algumas medidas que sejam urgentes. Eu tenho algumas linhas de pensamento. A primeira é que gente precisa de aliados e aliadas. Quando eu falo aliados, realmente é o dono do festival botar a mão na conciência e perceber que, “poxa vida, meu festival não respeita o público que o consome”.
Isso é um tipo de aliado. O outro aliado são as próprias mulheres artistas que têm condição de entrar no embate, assim. Veja o caso da Pitty. Ela sempre é a única mulher de muitos line-ups. No João Rock, eu acho que ela deve ter sido a única mulher em umas quatro edições diferentes. Enfim, não sei o que pensa a Pitty, mas eu creio eu que ela hoje tenha condições de chegar para o festival João Rock, ou em qualquer outro que ela é convidada, e lembrá-los de que ela foi a única mulher de novo. A banda The 1975 colocou essa condição pros festivais. “A gente só toca em festival que tiver equidade de gênero.”
E eu sempre repito: a gente não espera isso de uma artista independente, que acabou de receber um convite para o festival. Agora, a gente poderia poder contar com uma artista com o alcance da Pitty, por exemplo. E não é só mulher. Artistas homens, como Djonga, Racionais, enfim… Artistas que tenham gabarito para questionarem. Precisamos dessas vozes. E eu acredito muito, também, que seria necessário ter legislação, política pública.
Você acha que o governo deveria entrar no jogo?
Sim. A gente tem um exemplo na América Latina, que é na Argentina. Desde 2019, há uma lei que obriga um festival a ter representação feminina. Todos os eventos ao vivo devem ter um mínimo de 30% de mulheres na programação. E temos dados de antes e depois da aplicação desta lei. Os números aumentaram. Não chegaram no ideal, mas aumentaram absurdamente.
Os festivais mais antigos, e os voltados ao rock, são os mais problemáticos. São os que ainda relutam em chamar mulheres para a programação. E quando chamam, não está em lugar de destaque. Já passou da hora da gente ter uma política pública pra que essas mulheres estejam nesses festivais. Não é um capricho nosso. É posto de trabalho. Estamos negando posto de trabalho para artistas que passaram a vida inteira se profissionalizando, se aprimorando.
É preciso sair desse lugar de lacração, de identitarismo, e partir para um olhar de lei trabalhista mesmo. E eu não estou falando só de palco. Tem o backstage, com roadies, engenheiros de áudio… Quais as condições de trabalho nesse ambiente?
Em um festival com 30 artistas e uma mulher, o quão seguro é esse ambiente para ela? Quem garante que ela não sofrerá assédio ou coerção? Há pesquisas que provam que 80% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio no mercado musical. Na Inglaterra, já existe até uma cartilha de diretrizes sobre o assunto, que as empresas devem seguir. Na indústria fonográfica, a gente colocou o artista numa figura tão glamourizada que esquece que ele é um trabalhador. É classe trabalhadora.