Kesha Foto: Reprodução

Kesha diz ter planos para ‘destruir a indústria da música’ em 10 anos

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Cantora, que passou por maus bocados após assinar um contrato aos 18, pretende dar controle aos artistas

Dez anos depois de assinar um acordo encerrando o imbróglio judicial com o produtor Dr. Luke, Kesha resolveu remover a pedra que havia colocado sobre o assunto. Em entrevista à revista estadunidense Elle, mostrou que estava de volta à briga. Mas desta vez, não era contra Luke, e sim contra toda a indústria musical. A artista revelou que está colocando em prática um “plano de dez anos capaz de desmantelar toda a indústria musical”. Os objetivos são proteger os artistas dos abusos cometidos, incluindo os financeiros. No ano passado, abriu sua própria gravadora, a Kesha Music.

“Eu realmente tenho um sentimento de proteção às jovens mulheres na música. Eu espero que minha energia possa apoiar outras artistas, ajudando-as a não desistir. Estou aproveitando minha sensação de poder, que não estava em minhas mãos por muito tempo, e quero oferecê-lo aos outros. Acredito que ninguém deva ser uma propriedade, ou ter seus direitos transferidos a outra pessoa perpetuamente, em nenhum nível e em nenhum tipo de negócio. Isso deveria ser algo impossível de impor a um ser humano”, declarou.

Parte do plano de Kesha é criar uma plataforma de distribuição de música que permita melhores ganhos e mais liberdade aos artistas. A ideia é criar um ambiente que reduza a influência e a necessidade das gravadoras e empresários. Para isso, a artista afirma que já contratou experts em tecnologia, e que um aplicativo já está em produção:

“Não acredito que seja possível criar se você não está se sentido segura. A velha guarda está caindo. O velho jeito de fazer tudo em segredo não tem mais futuro. Portanto, se você ainda acha que deve ganhar usando de segredos obscuros e desonestos, é melhor você cair fora”.

São cláusulas presentes em muitos contratos, principalmente naqueles em que uma parte está entrando com dinheiro e experiência, e outro somente com a garganta para cantar, geralmente vindo de uma longa luta que envolve shows em pequenos bares, cachês irrisórios e condições de trabalho bastaste precárias. Imagine-se afundado em dívidas, com risco de ser despejado de sua casa, dentro de uma agência bancária, com um contrato de empréstimo a juros enormes, que resolveria suas emergências, e um gerente te dizendo: “não é negociável. Não posso mudar uma só cláusula”. Você assina, claro.

A vingança de Kesha

Em 2005, a jovem Kesha Rose Sebert estava em frente a um contrato que poderia mudar sua vida. A garota de Los Angeles, que gostava de subir em palcos desde criança, finalmente atraiu a atenção de um produtor tarimbado nos Estados Unidos, que propunha um acordo para lançamento de seis álbuns e promoveria sua carreira. Do outro lado da mesa estava Łukasz Sebastian Gottwald, conhecido como Dr. Luke, produtor musical com experiência no mercado e ex-músico.

A posição em que Kesha estava é comum a muita gente que ambiciona entrar no concorrido universo da música pop. Lançar uma carreira envolve dinheiro, e assinar com um bom produtor ou uma gravadora garante financiamento para alavancar rapidamente um artista. É uma sedução irresistível, a ponto de fazer com que muita, mas muita gente mesmo, assine o contrato sem ler, com medo de que alguma objeção faça com o que o potencial padrinho desista da contratação. E aí começa o problema: quem está disposto a financiar um artista iniciante sabe disso. Na grande maioria das vezes, o contrato é escrito no esquema “tudo pra mim, nada pra você”. Além disso, os acordos mantêm o artista sob exclusividade dos produtores por muito tempo, como um casamento sem direito a divórcio. Se o financiador estiver mal intencionado, a vida do artista vira um inferno. Foi o que aconteceu com ela.

Em 2014, a cantora entrou com um processo pesadíssimo contra seu produtor nos tribunais nova-iorquinos. As acusações envolviam misoginia, assédio sexual e abuso psicológico. Luke negou todas as acusações e o caso só foi encerrado mediante um acordo entre as duas partes, cujo conteúdo se manteve confidencial. Kesha comentou na época que aceitou encerrar o caso porque queria seguir com sua vida em paz. A comunidade artística reagiu. Brad Walsh escreveu em suas redes sociais que “forçar uma mulher a trabalhar com um estuprador, ou trabalhar para dar lucro a seu estuprador, é uma falha na justiça”. George Takei atacou o ambiente da indústria, ao dizer que o acordo era um “triste e problemático exemplo de corporações oprimindo pessoas”. Kesha recebeu forte apoio de colegas como Miley Cyrus, Fionna Apple, Adele e muitos outros.

Mesmo após tantos anos de discussões, exposições e associações em relação ao machismo na indústria musical, a situação segue difícil para artistas mulheres nos bastidores. Ainda dominado por homens nos cargos mais importantes dos estúdios, agências e gravadoras, a tal “velha guarda” citada por Kesha insiste em usar o dinheiro como ferramenta de poder, persuasão e intimidação. Se há muito tempo os contratos são desequilibrados para artistas de todos os gêneros, o componente do assédio com artistas mulheres torna o campo muito mais perigoso para elas.

Tirar o poder das grandes corporações é uma tarefa dificílima. Uma batalha de um pequeno grupo guerrilheiro contra um país com exércitos poderosos. Criar plataformas de streaming ou distribuidoras paralelas, geridas por artistas e prometendo maiores ganhos, também não é novidade. Em 2014, ano em que Kesha desistiu de seguir com a ação contra Dr. Luke, o rapper Jay Z lançou a plataforma Tidal, também com o objetivo de pagar mais aos artistas e dar-lhes mais liberdade. O serviço é dono de uma fatia de 3% do mercado mundial de streamings. Embora seja bastante significante, não foi o suficiente para arranhar as gigantes do setor.

No caso de Kesha, seu poder e sua experiência, além de sua sede de vingança e justiça, podem atuar como fatores positivos, principalmente se ela conseguir trazer para seu projeto artistas mulheres gigantes no mundo pop. As mesmas que a apoiaram enquanto estava presa ao antigo produtor musical. Nos próximos anos, poderemos medir o tamanho da destruição da bomba que a cantora está prestes a jogar na indústria musical.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.