Catto Foto: Ivi Maiga Bugrimenko/Divulgação

CATTO: “Tudo na minha vida é extremamente dramático”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Em papo terapêutico com Jota Wagner, cantora e compositora se abre e revela: seu novo álbum, Caminhos Selvagens, é o mais importante da carreira

CATTO me atende enquanto arruma a casa, com a câmera desligada porque não tinha tido “tempo para se arrumar”. Conforme nossa conversa foi se desenrolando, para falar de seu novo álbum Caminhos Selvagens, lançado dia 15 de maio, o afazer doméstico foi se transformando em uma metáfora.

A “casa” que a artista estava arrumando enquanto falava comigo era outra. A da alma, do inconsciente, durante um processo de composição e gravação do disco que Catto considera o mais importante de sua carreira. Uma obra de fechamento de ciclo, encontro com o passado quântico, cura e reconciliação: “Jamais escreverei outro igual. Ele marca minha vida e, a partir de agora, eu vou fazer outras coisas. Estou livre”.

“Estou fazendo terapia nessa entrevista”, comenta. Realmente, a câmera fechada, sem o olho no olho, faz a vez de alguém deitado em um divã, de costas para seu analista. Longe de mim, que fique claro, me equiparar a alguém que exerce um dos mais belos e generosos dons da mente humana, a psicanálise. Mas CATTO se abriu, sim, como poucos artistas em um mundo em que tantos colegas se versam no pavoroso media training, com respostas prontas e decoradas, muitas vezes quilômetros distante da pergunta original.

“Visceral”, a palavra, vem do “mostrar as vísceras”. Uma metáfora quase escatológica para revelar o âmago, o interno, o que está por baixo da pele. Caminhos Selvagens, produzido por ela ao lado de Fabio Pinczowski e Jojô Inácio, faz isso na vitrola. CATTO faz o mesmo em nossa conversa. E, na boa, é lindo.

Foto: Ivi Maiga Bugrimenko/Divulgação

Jota Wagner: Caminhos Selvagens é seu quinto álbum. A sensação e as expectativas são as mesmas dos anteriores?

CATTO: Não, nem um pouco. Acho que sou uma estudante, uma aprendiz. Cheguei em São Paulo em 2010, sem amigos importantes, vindo de Porto Alegre. Fui talhando minhas experiências na música, sabe? Eu já era sagaz. Já havia escrito Saga, Adoração, Roupa do Corpo, que são músicas que se provaram importantes na minha trajetória até hoje. Então, aquele primeiro momento era uma pessoa querendo se rasgar inteira e sair de dentro daquele corpo e daquela história, ao mesmo tempo que aproveitava as oportunidades da vida para conhecer artistas e fazer parcerias. Meu primeiro EP, de 2009, tinha um recorte estético muito específico.

Eu acho que o Saga tem muito à ver com Caminhos Selvagens. É como um segundo capítulo. Porque eu sempre fui uma diva trágica, desde adolescente. Escrevia sobre esse desejo, do amor, de complexidades que o amor trazia para minha vida naquele momento. Algo que eu nem compreendia. O disco novo é um retorno para aquela compositora, após a toda uma compreensão da transição de gênero. É um disco que eu fiz a partir de vários fragmentos de músicas que havia escrito com 14 anos.

Essa tragédia está presente nos arranjos dos discos, meio épicos. E algo que você já tinha na mente, ou foi construído nas gravações?

Não era algo que eu queria. Foi uma coisa inevitável. Eu sinto as coisas de uma forma muito avassaladora. Tenho lua em escorpião, por mais que eu seja uma libriana cara de pau. Meu mundo interior é tétrico. É extremamente literal, e as relações, muito verdadeiras. É a pessoa que eu construí com 37 anos. Amizades muito fodas, amores inesquecíveis, uma relação familiar cheia de conflitos e perdão. Tudo na minha vida pessoal é extremamente dramático.

E eu também acho que isso não tem nada demais. Conversei ontem com minha amiga, Chelsea, uma mulher trans extremamente sábia, mais velha do que eu. E ela disse, “irmã, isso é tudo normal. Porque a gente é assim e o amor, na vida de uma travesti, não começa no dia em que foi loira e gostosa. Minha vida de travesti começou quando criança”. Esse mundo feminino passa pela relação com os homens muito fortemente. Brutal. A partir da minha transição, tudo mudou absolutamente, e esse disco reflete isso também.

Tem uma coisa da Jornada do Herói aí, né? Sair de uma cidade pequena, ter um mestre mais sábio, se compreender… Há um fechamento de ciclo em Caminhos Selvagens?

Tem. Eu acho que, como qualquer artista, sempre batalhei para ser reconhecida. Hoje sinto que isso chegou da forma como eu mereço. Não só pela questão artística. Acho que estou madura para encarar o que é ser porta-voz de outras vidas. No momento que viro mãe desse público, eu me considero pronta.

Esse hiato de sete anos de um disco para o outro tem a ver com sua agenda de shows?

Foi o mundo que fez esse espaço de tempo acontecer. Comecei a escrever o Caminhos Selvagens em 2018. Eu tava na turnê Vênus, era pra ser o meu próximo disco. E então eu tive a oportunidade artística de cozinhar ele durante esse tempo todo. Virou uma feijoada. Já comecei a escrever em um momento de volta em que queria voltar às raízes. Quando fiz o álbum Vênus, estava super-realizada, cheia de leite nas tetas. Me sentindo profunda. Foi ali que comecei minha transição. Deus, vejo as fotos daquele momento, eu era uma criança louca.

Sobre o hiato, teve também a pandemia. Não queria lançar um disco que eu não pudesse trabalhar. Sou uma trabalhadora e tenho que ganhar dinheiro e pagar minhas contas com ele. Durante esse tempo, eu me profissionalizei de um jeito que nunca havia imaginado. Ali, eu comecei a produzir a música que eu queria quando era adolescente, mas não tinha tecnologia para fazer. Sempre fui metida a produtora, muito mais do que uma cantora, no sentido de ser uma nerd e uma garota punk.

CATTO

Foto: Ivi Maiga Bugrimenko/Divulgação

Quando a gente começa na música, tem uma ideia na cabeça mas não a consegue transpor para o estúdio né…

Exato. Só que a experiência com meu amigo Jojô, quando etava fazendo CATTO, foi a de conseguir isso. No começo da minha carreira foi tudo mais tradicional, era outra época. Não existia tudo o que existe hoje.

E eu era uma cantora contratada de uma multinacional, só que nada era permitido. Era tudo muito formatado nos anos 2010. O som que vinha das bandas e do pessoal da MPB era muito mais limpo, e eu era suja. Aquilo me deixava desconfortável.

Voltando à sua pergunta anterior, que é fundamental — estou fazendo terapia nesta entrevista —, nesse hiato dos sete anos, tudo aconteceu. Saí da pandemia e comecei a trabalhar no Caminhos Selvagens. Levei as demos todas que eu tinha feito, e começamos a trabalhar nele. Eu, Fabio Pinczowski e Jojô Inácio. E aí apareceram um monte de coisas que não tive controle e não puder dizer não. O Belezas São Coisas Acesas Por Dentro [seu disco cantando Gal Costa], era para ser somente um show. Decidimos gravar o disco literalmente em um dia. E ele me deu uma empoderada, porque desmistifiquei o fazer arte. Caminhos Selvagens só tem essa proporção épica por causa disso, porque, na verdade, ele é extremamente intimista e cru.

O que você esteve ouvindo durante o Caminhos Selvagens que pudesse ser listado como uma referência?

Quando estou fazendo um disco, não penso muito em referência. Mas tenho uma biblioteca emocional com coisas que amo e tenho uma devoção profunda. Quando estava fazendo esse disco, por exemplo, uma das grandes influências para as letras é o Morrissey. Ele e Marília Mendonça foram dois artistas que influenciaram muito.

Queria levar para meu público um trabalho em que eu ficasse completamente humilhada.

Sonoramente, acho que o disco tem referências de tudo o que eu já ouvi e gosto, de uma forma indireta. Por exemplo, três discos para mim me guiaram, a ponto de eu querer fazer um meu. Memórias, Crônicas e Declarações de Amor [Marisa Monte], um disco de amor… Eu gosto muito da coisa do cânone. Marisa fez um disco falando “eu te amo, amor, I love you“. Então, é algo do tipo. Me influenciei nesse mundo da música romântica brega, de compositores que não têm nenhum puder em falar sobre essas experiências, como Morrissey, Marisa Monte, Odair José, Roberto e Erasmo Carlos… e Marilia Mendonça.

Hoje em dia, com o mundo digital, não existe mais disco “datado”?

Acho um caos. Todo artista traz isso hoje e as pessoas estão menos enquadradas no gênero. Quando cresci, nos anos 90, cada um tinha sua “tribo”. Ou era do reggae, ou do rock, ou do pop… Hoje você tem a patricinha padezeira e o sertanejo que vai na Mamba Negra. A mesma pessoa que vai no meu show gosta de ouvir Velvet Underground e chorar com Pablo do Arrocha. Acho isso muito rico, porque acaba tirando aquela coisa cafona de “eu sou do rock” ou “do indie”, etc. Gosto da mistura, da loucura e do caos.

Você pensa no seu público quando está compondo?

Não. Quando estou escrevendo música, estou falando com Deus. Para mim, o trabalho é extremamente ligado à minha espiritualidade. Não no sentido religioso, mas espiritual. Uma conversa com o lado mais íntimo da minha história.

É como se eu estivesse, de certa forma, fazendo justiça à vida bonita que eu tenho. Tragédias acontecem. As minhas, acontecem com tanta beleza! De fato, não tem nada na minha vida que tenha sido só horrível. Claro, eu passei por coisas horríveis, mas graças a Deus não estou mais nesse lugar. Sobrevivi de cabeça erguida e vivendo meu sonho. Mas quando escrevo uma música, acho que estou querendo fazer uma oração.

Aí, quando você está formatando o projeto, então pensa no público. Instrumentalmente, escrevo de um lugar de como eu sinto a música, de como ela é grande. Porque para mim, aquilo é grande.

O que você diria para o seu eu adolescente lá atrás, começando a fazer música?

Cara, eu tenho uma relação com a vida… Porque eu sou bruxa. A gente realmente faz viagens no tempo. Acho que existem momentos na vida que são como buracos de minhoca. Ao mesmo tempo estou aqui e sou uma velha chiquérrima de 95 anos. E ao mesmo tempo uma garota, que está falando “seja doida e vai!”. Eu sempre tive uma fé e uma devoção tão absoluta no que eu estava fazendo que fui meio kamikaze. Nunca tive medo de romper com coisas que estavam me atrasando e me amarrando. Eu era contratada de uma multinacional. Fiz dois discos ali. Era o sonho de qualquer atrista e muita gente faria de tudo para se preservar ali naquele lugar, de conforto.

E eu falei, “não quero ficar aqui”. Fui embora e fui para o céu de novo. Da coisa indie, de tocar para cinco pessoas. Isso após ter tocado no Auditório do Ibirapuera em duas datas lotadas. Meu direcionamento é muito ligado ao meu desejo, do que eu achava certo fazer como artista, mesmo que isso significasse ser pobre. Acho que, de certa forma, estou me sentindo plena, madura e muito bem-realizada dentro de tudo o que passei na vida. Sou hoje alguém falando: “vem, garota”.

O pessoal da física quântica diz que a gente muda o passado no presente…

Muda mesmo. Eu acho que tinha realmente alguma coisa ali que me guiava, e acho que fiz tudo certo. Aproveitei as oportunidades que tinha de aproveitar. Sofri e recebi, de certa forma, o hate que eu precisava da vida. Eu era uó, tinha de melhorar como pessoa. A gente tem de ser ruim, às vezes, né?

Como você gostaria que esse disco estivesse daqui a dez anos?

O Caminhos Selvagens é o disco mais importante da minha carreira. Um dia, quando alguém perguntar “quem é essa cantora?”, esse é o disco que vai contar. Estou muito feliz porque é um trabalho que falou tão visceralmente de mim e foi tão difícil fazer, com tantas camadas. Mexeu com tantas inseguranças dentro de mim, absurdas, que agora estou me sentindo amada, me sentindo como mãe, mesmo. Quero que esse disco embale a vida das pessoas, que cure as feridas de quem precisar. Porque eu fui curada por tantos artistas!

Quando fui ao show da Madonna no Rio, fiquei no meio do povão, não dos VIPs. Quando ela começou a cantar Like a Prayer [embarga a voz]… a Madonna, olhando para nós, cantanto essa música. Ela fez muito mais pela humanidade do que qualquer religioso. Muito mais que toda a Igreja Católica em séculos. Essa música me fez muito, muito bem, e lá está aquela mulher, com aquele corpinho de 1,50m, cantando para um milhão e meio de pessoas. Me comove porque o poder da arte é tão louco que jamais, ao escrever essa música, ela ambicionou tudo aquilo. Ela estava a penas escrevendo uma música para Deus.

Caminhos Selvagens tem esse ponto de ser o disco mais verdadeiro que já escrevi. E jamais escreverei outro igual. Ele marca minha vida e, a partir de agora, eu vou fazer outras coisas. Estou livre. Não quero fazer um Volume 2. Ele já existe como conceito e vai ser levado assim até o fim, nos shows, em vídeos. Vai virar encontros e ter desdobramentos. Não terminou ali. Mas eu não vou mais escrever um disco como esse, nunca mais.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.