O indiano que ‘inventou’ a acid house — 5 anos antes de ela nascer
Seria Charanjit Singh o verdadeiro pioneiro do estilo, em vez da turma de Chicago?
Em 2020, uma equipe de cientistas encontrou no Novo México (EUA) pegadas humanas que mudaram a história conhecida. Até então, acreditava-se que um povo chamado Clovis foi o primeiro a chegar caminhando no continente americano (pelas trilhas congeladas do estreito de Beringm, entre a Sibéria e o Alasca). A nova descoberta desconstrói tudo o que sabíamos sobre os primeiros viajantes que chegaram à América, sete mil anos antes do que se imaginava. Assim é a história. Vai sendo reescrita através de achados sensacionais. E isso está acontecendo também na música.
A acid house é a pedra fundamental da música eletrônica. Surgiu em Chicago, quando DJs cansados da disco music encontraram em lojas de segunda mão equipamentos japoneses da Roland, que havia lançado, sem sucesso, uma bateria e um baixo eletrônicos, inicialmente propostos para servir de acompanhamento a músicos em bares. Os famosos “cantores de churrascaria”, como dizemos aqui.
Artistas como DJ Pierre, Phuture e Sleezy D, por volta de 1987, começaram a usar os equipamentos para fazer um novo tipo de música para as pistas de dança, batizados de acid house, por causa do som estranho e amorfo que os equipamentos da Roland eram capazes de produzir. Essa é a história. Bem… era, até alguém encontrar na Índia o disco Ten Ragas to a Disco Beat, composto por Charanjit Singh, que tem absolutamente todos os elementos necessários de uma ótima faixa de acid house. Só que lançada cinco anos antes do que o pessoal de Chicago.
Muitos já consideram Charanjit Singh, um músico de Mumbai nascido em 1940 que participou de inúmeras trilhas sonoras do circuito de cinema indiano chamado Bollywood, como o verdadeiro pai da acid house. Definitivamente, a qualidade da produção é impressionante, com batidas e linhas de baixo que poderiam levar à loucura qualquer pista de Chicago, Ibiza ou Londres no final dos anos 80.
Ten Ragas to a Disco Beat nasceu como uma reinterpretação disco para músicas de raga, gênero musical instrumental indiano. Em 1982, a disco music já estava em declínio no gosto musical comum, após décadas reinando nas pistas de dança. Artistas como Madonna, Michael Jackson e Prince sobravam nas paradas de sucesso dos Estados Unidos, promovendo uma revolução na música pop. Charnjit Singh não estava nem aí para isso. Imerso em suas trilhas sonoras e com os equipamentos Roland na mão, se enfiou no estúdio para inventar moda com seu novo álbum.
Pai da acid house?
Embora a genialidade de Singh seja incontestável, assim como nosso desejo em desconstruir a narrativa colonialista da história, classificar o músico indiano como o pai da acid house pode soar um pouco fora do contexto. Afinal, mais do que um gênero musical, se trata de um estilo gerado por uma música específica aliada a um ambiente social que resultou em um movimento cultural de inclusão e revolução nos costumes. Um jeito de se vestir, de dançar e de se entender como indivíduo através da vida noturna. E tudo isso estava lá, em Chicago, na segunda metade dos anos 80.
Como então, explicar a coincidência estética que ligou Mumbai a Chicago? Estavam os pioneiros estadunidenses, na verdade, copiando? A resposta para esta deliciosa história da arqueologia musical é, na verdade, tecnológica. A sonoridade da bateria eletrônica da Roland (TR-808) e de seu sintetizador de baixo (TB-303) é limitada. Significa que eles têm aquele som característico, reconhecível e com recursos que encantam do mesmo jeito qualquer um que bote a não nessas preciosidades.
Portanto, um som igual produzido na Índia e nos Estados Unidos não é tão surpreendente assim. Principalmente se levarmos em conta que Singh e artistas como Pierre estavam buscando em estúdio o mesmo objetivo: reativar a disco music com uma sonoridade mais moderna. Mas nada tira de Singh o mérito de ter feito isso cinco anos antes!
Charanjit Singh faleceu em 2015, deixando uma coleção de 18 álbuns que vão desde apresentações ao vivo até um disco em que mistura música indiana com calipso. Isso sem contar as incontáveis participações em trilhas sonoras de cinema, o que o gabarita como um dos grandes mestres da música instrumental eletrônica em todo o mundo.