Billie Holiday Foto: William P. Gottlieb Collection/Reprodução

Racismo, marxismo, drogas e sangue: a incrível história de Billie Holiday e sua ‘Strange Fruit’

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Canção de protesto vendeu mais de um milhão de cópias, rendendo à diva do jazz idolatria e um fim precoce

Na plateia, em Nova Iorque, era raro não ver alguma lenda do jazz entre seus espectadores, fãs daquela talentosa novidade. O show já havia acabado e, então, era hora do público embasbacado ouvir um acorde seco do piano, uma frase triste do trompete e a voz de Billie Holiday cantando os primeiros versos de Strange Fruit, música executada (mesmo quando era proibida pela polícia) no final de seu show, quando as luzes começavam a acender por ordem de donos de clubes putos da vida, cientes de que a diva cantaria seu protesto, mesmo que recomendassem o contrário.

“As árvores do sul dão frutos estranhos
Sangue nas folhas e sangue na raiz
Corpos negros balançando na brisa do sul
Frutas estranhas penduradas nos choupos”

As “frutas” cantadas na música de protesto eram, obviamente, os cadáveres de negros linchados nos Estados Unidos, absurdo incrivelmente permitido por lei nos anos 30.

Abel Meeropol era russo, filho de imigrantes judeus, e professor há 17 anos em uma escola pública no Bronx. Casado com uma afro-americana, não se conformava com aquela cultura. Depois de ver, aterrorizado, a foto de dois jovens negros linchados em Indiana, escreveu o poema Bitter Fruit, e o publicou no jornal The New York Teacher, em 1937. Os versos chamaram atenção, a ponto de serem republicados no jornal marxista The New Masses. Meeropol decidiu, então, transformá-los em uma música. Nascia Strange Fruit.

Meeropol deu a canção a sua esposa, a cantora Laura Duncan. Holiday a ouviu cantando no Café Society e, vendo a reação do público, venceu a relutância que tinha em politizar suas performances, temendo retaliações (o que se mostraria, na verdade, uma intuição). A futura diva do jazz pediu a canção a Abel e Laura. Naquele momento, Billie Holiday vendia sua alma para Deus.

A complexidade e a força de um ser humano são tão grandes, que se mostram capazes de reagir encontrando fuga para dois caminhos opostos, quando exposta a situações hediondas. Ou segue pelo caminho do ódio extremo, ou para a arte pura, que aqui pode também ser interpretado como o amor supremo.

A criança Eleanora Fagan, que mais tarde escolheria o nome artístico de Billie Holiday — também apelidada de Lady Day, por um de seus fãs notórios, o jazzista Lester Young —, foi exposta aos mais horrorosos episódios de sofrimento e, se são citados com nauseantes detalhes aqui neste texto, é para que o leitor compreenda o tamanho da garra que uma mulher pode reunir na luta pela sobrevivência, e ainda assim, entregar ao mundo uma das mais belas vozes da história.

Nascida há exatos 109 anos (07 de abril de 1915), aos seis, a pequena Eleanora já faxinava casas na Filadélfia, onde cresceu. Era proibida de ouvir jazz por sua mãe, que acreditava ser “coisa do demônio”. Segundo consta em seu diário, pedia para uma de suas patroas, Alice, que lhe pagasse as diárias de limpeza deixando-a ouvir seu grande ídolo, Louis Armstrong, na vitrola.

Billie Holiday

Eleanora Fagan, a Billie Holiday, em 1917. Foto: Wikimedia Commons/Reprodução

Por ordem da mãe, foi à casa de um homem de 40 anos, onde sofreu seu primeiro (e violento) estupro. O animal foi condenado a alguns anos de prisão, e a garota também sentenciada, culpada por prostituição. Sim, a justiça estadunidense dos anos 30 entendeu que uma criança de dez anos sabia o que estava fazendo. Dois anos depois, foi novamente vítima do mesmo crime, dessa vez por um trumpetista da cidade.

Eleanora foi internada em um reformatório católico, onde viveu mais terrores. Em um de seus castigos, foi trancada por várias horas em um quarto, junto a um cadáver de outra criança. Tempos sombrios, que estavam longe de acabar.

Buscou a anestesia mais rápida e acessível que havia para conseguir lidar com tantos traumas: o álcool e as drogas. Mudou-se com a mãe para Nova Iorque para trabalhar em bordéis, primeiro fazendo limpeza e posteriormente se prostituindo. A artista jamais culpou a progenitora pelos horrores a que foi submetida, talvez por enxergar nela uma outra vítima daquele sistema. Sara Julia Fagan engravidou de Billie aos 12 anos de idade.

Seus diversos relacionamentos com homens, a partir da vida adulta, foram sempre tumultuados e abusivos, dos quais ela se defendia com violência. Casos de agressões eram comuns, e vários de seus amantes não escaparam de ir ao hospital com um garfo enfiado nas costas ou cacos de garrafa na cabeça. Encontrou alguma paz na relação com a atriz Tallulah Bankhead — para muitos, o grande amor de sua vida. Um romance também interrompido pelo racismo e o preconceito.

Mas foi quando explodiu com o gigantesco sucesso de Strange Fruit, uma música que expunha o pior lado dos Estados Unidos, que Billie Holiday entrou, involuntariamente e definitivamente, para a guerra que a consumiria até o último dia de sua vida.

O inimigo perfeito

Billie Holiday

A Lei Seca nos Estados Unidos. Foto: Reprodução

Nos anos 1930, o governo americano estava com uma tremenda bucha na mão: lidar com a sequência de cagadas que havia cometido na década anterior, que haviam resultado em um tremendo risco em sua imagem mais blindada, a do sonho americano.

O país tinha fortalecido imensamente as máfias durante a apatetada proibição de venda de bebidas alcoólicas, chamada de Lei Seca, em vigor entre 1920 e 1933. O resultado foi a proliferação de bares ilegais, administrados por criminosos que enchiam as burras de dinheiro e aproveitaram para se organizar e se armar. Em operações policiais nesses estabelecimentos, era comum encontrar juízes, desembargadores, delegados e políticos tomando seu uísque às escondidas.

Ilegal por ilegal, drogas como cocaína e heroína deixaram os laboratórios farmacêuticos e começaram a ser traficadas nas ruas, aumentando ainda mais o fluxo de dinheiro ilícito. Para piorar a situação, o governo ainda tinha de lidar com a gigantesca crise econômica de 1929, fermentada no mercado financeiro das bolsas de valores e resultando em desemprego e desigualdade social.

Enquanto corria para reverter o estrago que havia feito a seu povo com atitudes para lá de polêmicas — como a legalização dos jogos em Las Vegas, para devolver às máfias o fluxo de dinheiro que haviam perdido com a revogação da Lei Seca, evitando, assim, uma carnificina em retaliação —, o governo tratou de colocar em prática uma jogada de marketing que já se tornava comum no século XX: a criação e popularização, com incrível apoio da indústria do entretenimento, do “inimigo externo”. Um ser invisível, desconhecido, incrivelmente maléfico e destruidor de tudo o que mais se ama.

Jazz
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Conde Drácula, um aristocrata do leste europeu, ao sugar o sangue do pescoço de sua vítima, a transformava em um de seus escravos. Os cinemas eram infestados de filmes sobre alienígenas, raças desconhecidas, inescrupulosas e possuidoras de armas incrivelmente letais, que invadiam os Estados Unidos. Sempre desconhecido, sempre estrangeiro, sempre desprovido de compaixão.

Estava sendo construída a alegoria perfeita para os culpados de todo o mal que assolava o “cidadão de bem” dos Estados Unidos: os comunistas, raça estranha que vivia do outro lado do mundo.

Quando as vitrolinhas de Strange Fruit entraram em milhares de lares estadunidenses, os propagadores dessa fábula ganharam de presente tudo o que precisavam: uma mulher, negra, presa por prostituição, viciada em drogas, cantando um poema antirracismo que circulou por panfletos marxistas.

Prontos para a guerra

Billie Holiday

Harry Jacob Anslinger. Foto: Reprodução

Faltava apenas escolher o homem certo para enviar à batalha. E seu nome era Harry Jacob Anslinger. Burocrata ferrenho, já notório por sua campanha contra a maconha e, principalmente, racista convicto. A diferença de tratamento policial que Anslinger deu às celebridades negras que enquadrou e as brancas, como a atriz Judy Garland e o senador Joseph McCarthy, é apavorante. Nomeado Comissário do Serviço de Narcóticos da polícia federal americana por Theodore Roosevelt, Anslinger começou sua campanha: uma lenta e constante perseguição, pública e privada, que só acabou quando Billie Holiday faleceu.

Iniciava-se ali uma guerra entre duas bandeiras. Anslinger empunhava a flâmula dos “bons costumes”, da luta contra as drogas e o comunismo e, nas entrelinhas, da supremacia branca. Do outro lado, Holiday era a cantora de jazz de protesto, que tirou melôs como P.S. I Love You das paradas americanas para colocar em seu lugar uma canção que falava sobre linchamento e enforcamento de negros. Sua carreira estava marcada por uma luta da qual não poderia fugir, nem que quisesse.

E não fugiu. Anslinger colocou agentes para a seguir e ameaçar durante todo o tempo, exigindo que não cantasse Strange Fruit em seus shows. Jamais obedeceu. Conseguiu estender a batalha por mais tempo graças à imensa base de fãs e, principalmente, ao respeito e idolatria que tinha entre seus pares do jazz. Frank Sinatra chegou a esmurrar um homem que não fazia silêncio para ouvi-la cantar, em um clube de Nova Iorque.

Harry usava de todos os subterfúgios e brechas legais para fazer da vida da artista um inferno. Um dos agentes designados para ficar na cola de Holiday, Jimmy Fletcher, a acompanhava dia e noite. Tendo a oportunidade de conhecer de perto a artista e sua história, encantou-se por ela (mas sem deixar de entregar relatórios que a comprometiam judicialmente). A tumultuada relação entre os dois é retratada no recente filme Os Estados Unidos vs. Billie Holiday, lançado em 2020 e baseado no livro Chasing The Dream, de Johann Hari.

Davi contra Golias

A turma do Departamento de Narcóticos tinha um arsenal bem mais poderoso para usar na batalha. A máquina do governo, o equipamento de propaganda, o preconceito racial latente da sociedade e, principalmente, o medo implantado nos lares americanos. Billie tinha, “somente”, sua música. Ao considerarmos que lutou por incríveis 20 anos, assolada pelo vício em drogas, podemos compreender o quão poderosa era a arte que fazia.

Consciente de seus pontos fracos, Jacob Anslinger foi o mais implacável dos inimigos. Em um dos colapsos de Billie, doente e fragilizada, mandou uma equipe para prendê-la na cama do hospital. Quando a cantora finalmente conseguiu iniciar um tratamento com metadona para livrar-se do vício, ordenou que o hospital cortasse o suprimento do antídoto dez dias depois do início do seu uso. Amigos e fãs chegaram a organizar um protesto na frente do hospital, gritando “deixe Billie Holiday viver!”.

A artista deixou a luta em 1959, aos 44 anos, por insuficiência cardíaca. Sem jamais ter deixado de cantar Strange Fruit. Seu algoz foi condecorado, alguns anos mais tarde, por John F. Kennedy, pelos “serviços prestados ao país”. A colegas, Anslinger dizia que trabalhava para que a artista fosse sumariamente esquecida.

Falhou feio na missão, senhor comissário! Canções como Solitude, April in Paris, Stormy Weather e, claro, Strange Fruit, são ouvidas diariamente em todos os cantos do mundo, e se tornaram eternas. Obras que nasceram do sofrimento e da violência para se tornarem elixires de amor, para ouvir de olhos fechados em cantos escuros, agradecendo pela fortuna de ter alguém que você gostaria que estivesse sempre ao seu lado.

Billie Holiday é a prova da força indestrutível da alma.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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