Na música, Beyoncé e Doja Cat partem pra briga — e o pop ganha muito com isso
Entenda o que está por trás dos novos (e ótimos) álbuns das artistas, Cowboy Carter e Scarlet 2 CLAUDE
O mercado das divas pop é como o de sabão em pó. Os consumidores se apegam a uma marca, ou porque é mais cheiroso, ou porque deixa a roupa mais branquinha, e mês a mês compram aquela que mais gostam. Mas além dos fãs confessos, a competição por atenção é gigantesca. Para as empresas, o que importa é que para ganhar clientes, cada sabão precisa “se posicionar”, através de caríssimas campanhas de marketing, para garantir acesso irrestrito à mente do grande público.
Na música mainstream, não é muito diferente. Aliás, no alto escalão dos artistas mais tocados, a produção musical funciona muito mais como um organograma de grandes indústrias do que o romântico grupo de amigos fechados em uma garagem. Não se engane com os comentários elogiosos aos colegas nas entrevistas, ou os aplausos comedidos, acompanhados de um sorrisinho amarelo, que a gente vê nos Grammys. Nos escritórios das gravadoras, as reuniões levam o papo dos tubarões: market share, posicionamento de marca, concorrência e produto.
Isso porque, apesar de haver “lugar ao sol para todos”, lá no alto, onde a grana gorda corre solta, é preciso estar na frente para lotar arenas e vender shows para cinema. Há muito menos vagas nos melhores horários de festivais como Rock in Rio, Coachella e Lollapalooza do que artistas sonhando em preenchê-las. Seguindo com a analogia do supermercado, para conquistar o melhor lugar da prateleira, é preciso estar na boca do povo. Sozinho, de preferência.
Sabendo disso, dá para compreender melhor os discos recém-lançados de Beyoncé (Cowboy Carter, 29 de março) e Doja Cat (Scarlet 2 CLAUDE, 04 de abril). Ambos, cada um do seu jeito, passam o recado: “estamos na briga, bitch!”.
Larga o meu queijo
Com Cowboy Carter, a rainha abelhuda apontou para seu alvo: Taylor Swift, a namoradinha dos estadunidenses, saudada pela mídia local como a “única pessoa capaz de unir os Estados Unidos”. Branca, pop, boazinha e com raízes na música country. Foi a maior arrecadadora de grana em shows do ano de 2023, com sua The Eras Tour.
“Eu quero o que você tem”, é o que diz Beyoncé em seu novo disco. Pretende reivindicar para si o protagonismo da mulher negra na missão de unir o país. E, para isso, bateu pesadíssimo. Aproveitando-se da perfeição técnica adquirida desde os tempos de Destiny’s Child e de sua gigantesca influência artística e financeira, convidou uma impressionante turma de barões da música, estrategicamente escolhidos, para invadir a casa da concorrente, juntando country e R&B num longo disco, que deve estar causando taquicardia em Swift e sua equipe.
A mina meteu Dolly Parton, Willie Nelson, Jon Batiste, Nile Rodgers e Pharrell Williams, entre outros, para a devida fusão de R&B, country e rock em um álbum só. Se vestiu de garota de rodeio na capa, regravou Blackbird, dos Beatles, em uma obra enorme com 27 músicas, cujos nomes vão de Texas Hold’en e 16 Carriages a American Requiem. Uma coisa de doido.
A melhor faixa do disco, uma parceira com Willie Jones, um cantor de country negro da Luisiana, é a síntese da estratégia de Beyoncé. Just For Fun é uma retratação histórica, unindo gospel, country e blues, com cheiro de terra molhada e plantações de algodão. Uma porrada!
Being a Bitch
Doja Cat, criada nos subúrbios de Los Angeles, também chama para a briga com seu Scarlet 2 CLAUDE, mas em um nível diferente. Reclama para si o posto da bitch oficial da música pop. Já disse, aliás, que Beyoncé era sua boss bitch inspiradora. Pobremente traduzido em português para “vadia” em filmes e seriados da TV, bitch tem uma conotação totalmente diferente em sua língua-mãe. Trata-se da mulher que manda, a dona do rolê, a que faz o que quer e não abaixa a cabeça. Utilizando-se dos necessários coloquialismos para deixar facinho de entender, seria uma mistura de “cuzona” com “muito foda”.
Assim como a mestra, Doja chamou um monte de produtores para trabalhar em cada faixa, também um disco gigante, com 77 minutos e 24 músicas, várias delas de curta duração, chegando e saindo sem cerimônias. Os momentos mais fracos são quando a rapper se desvia de suas referências. Quando volta a rimar, no entanto, deixa muita gente, incluindo os homens, comendo poeira. Quer (e tem como) ser a nova Lauryn Hill. Em diversos momentos, se aproxima de Tasha Larae (Arrested Development), fazendo jazz-rap de excelência em faixas como Fuck The Girls (FTG), Can’t Wait e Love Life. Often, produzida em parceria com Jay Versace & Ben Nartey, é uma obra-prima.
As perambulações pelas ruas de LA conferem à americana uma autoridade que sua concorrência não tem. E em Scarlet 2 CLAUDE, ela parece consciente disso. Pinta as quebradas da sua cidade (e toda a história musical de lá) com providência nas músicas e, principalmente, nas letras, que às vezes ficam presas ao lugar comum do “comprei uma limusine, enchi de champanhe e saí para tocar o terror”. Ainda assim, tá valendo.
Dividir o pacote em dezenas de produtores gera também um risco de fazer suas faixas soarem desconectadas. A obra promove um passeio meio esquizofrênico, minimizado pelo comportamento atual das pessoas, de ouvir muito mais singles do que álbuns. E aqui também tem estratégia. Já que o povo só vai ouvir playlists, vamos tentar entrar em todas. O disco tem trap pesadão, rap old-school, os já citados jazzy-steps e os costumeiros flertes com o pop de palco de festival.
Respeitados os diferentes “tamanhos” da cada uma no mundo pop, são dois puta discos. Mostras de poder em forma de música. Chamamentos para a briga, que suscitarão contragolpes vindos da concorrência. E isso, para a música, é excitante!