
Kim Gordon deixa Cine Joia em transe e mostra por que é única
Zé Antonio Algodoal conta como foi o show solo de uma das artistas mais visionárias de nossos tempos
Por Zé Antonio Algodoal
Assistir a um show da Kim Gordon é algo que vai além da música. É estar diante de um ícone comparável a nomes como Iggy Pop ou Keith Richards, que jamais se renderam ao tempo e continuam fazendo shows vigorosos e, no caso dela, absolutamente surpreendentes e beirando a perfeição. Uma experiência sensorial, climática, na qual você não apenas ouve a música, você a vivencia. E foi exatamente isso que aconteceu na última noite de domingo no palco e na plateia do Cine Joia.

Aos 72 anos com uma carreira que ultrapassa quatro décadas, Kim continua sendo uma das artistas mais prolíficas e visionárias de nosso tempo. Conhecida inicialmente por fazer parte do Sonic Youth, seguiu resolutamente em frente com seus próprios projetos. Não trabalhando à sombra de ninguém, se libertou do formato de sua antiga banda, resistiu a fórmulas, testou limites e possibilidades e, movida por sua força, achou uma sonoridade própria, perfeita para seus vocais sprechgesang.
Sem nenhum alarde, ela e sua banda subiram ao palco pontualmente às 20h, pegaram os instrumentos e começaram o show com BYE BYE, faixa que também abre seu segundo álbum, The Collective, lançado no ano passado, e cujas músicas dominaram boa parte do repertório. Recebida com aplausos calorosos, ela se apresentou diante de uma plateia extasiada que misturava muita gente jovem e antigos fãs do Sonic Youth, vários deles acompanhados dos filhos na esperança de que testemunhassem uma noite memorável. E conseguiram.
O barulho, o experimentalismo e o estranhamento continuam presentes, e não poderia ser diferente. As músicas, que já eram impressionantes em seus dois álbuns solo, ganharam ainda mais força no palco, graças ao excelente time que conta com a baixista Camilla Charlesworth, Madi Vogt na bateria e Sarah Register, que se destacou por sua guitarra barulhenta, poderosa e precisa. Com uma formação coesa e usando com perfeição algumas bases pré-gravadas, a banda criou uma verdadeira parede de som como há muito eu não presenciava, e que funcionou perfeitamente em contraponto com a performance discreta e elegante de Kim Gordon.

Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop
Sem pausa, o show prosseguiu com The Candy House, seguida por I Don’t Miss My Mind e I’m a Man, música que ganhou um videoclipe estrelado por sua filha, Coco Gordon Moore, e cuja letra é uma crítica afiada e precisa a questões relativas ao lado obscuro da masculinidade. Aliás, vale citar a importância e a qualidade das letras escritas por Kim Gordon. Entre lampejos de fúria, momentos escuros, bom humor, ironia e verdades incômodas, ela cria o espaço ideal para sua poesia, seu ativismo, sua inteligência aguda. Como bem definiu Callum Foulds, da revista The Line of Best Fit,”não há ninguém fazendo isso como Kim Gordon, e seu retorno com The Collective prova que ela ainda é a pessoa mais legal da música”.
Logo em seguida, a banda toca Trophies e It’s Dark Inside diante de um público que ao mesmo tempo que aplaude efusivamente entre as músicas, mantém um clima de respeito quase devocional. Kim Gordon impõe respeito, ao mesmo tempo que mostra uma certa frieza, mas ao contrário do esperado, isso acaba aproximando o público. Ela tem carisma, é uma figura cultuada e misteriosa, daquelas que você quer estar perto, compreender, entender a genialidade.
As músicas de Kim não são fáceis de ouvir, longe disso, e aí que está o encanto. Embora às vezes seja até possível reconhecer um beat próximo do trap, ou achar que uma guitarra esteja soando familiar por alguns instantes, essa impressão logo se desvanece. A atmosfera é estranha, a música logo se revela nova, diferente não apenas de tudo o que ela já fez, como talvez diferente de tudo o que se ouve hoje em dia O clima do show é acima de tudo fascinante, quase como se estivéssemos envolvidos por um drone de música oriental em uma meditação.

Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop
O show continua com Psychedelic Orgasm, uma canção em que ela fala sobre um passeio cotidiano por Los Angeles, no qual observa crianças “TikToking”, compra uma batata de 20 dólares, cita os incêndios florestais e culmina falando de MDMA, LSD, cogumelos mágicos e o clímax que dá nome à música. Na sequência, “Cigarette”, seguida de mais três faixas do novo álbum: Shelf Warner, The Believers e Dream Dollar, e só então, já caminhando para o final do show, ela retoma algumas músicas do No Home Records, seu primeiro álbum solo, começando com Air BnB. Tanto essa música quanto o nome do álbum são referências ao fato de Gordon não ter nenhuma casa na época, ficando em Airbnbs enquanto procurava um local definitivo para morar.
Foram só mais duas músicas, Paprika Pony e Cookie Butter, antes que ela deixasse o palco após um agradecimento contido. Sob aplausos da plateia, não demorou muito para que eles voltassem ao palco — Kim tem pressa. Esse foi o único momento em que ela falou com o público, agradecendo e apresentando os músicos de sua banda. Rapidamente, começaram a tocar Hungry Baby, a música mais agitada, que encerrou o show em um dos seus momentos mais barulhentos.
Após um rápido agradecimento, a artista e a banda deixaram o palco enquanto o público, ainda atônito, demorou alguns momentos para perceber que a apresentação terminava ali. Kim Gordon tocou guitarra em alguns poucos momentos do show, se movimentou pouco, passou boa parte do tempo atrás de uma estante com as letras, mas impressionou a todos. Ninguém saiu indiferente, nem mesmo os fãs que conheciam seu trabalho solo, ou mesmo os que entraram no show duvidando do que iriam testemunhar.

Foto: Tati Silvestroni/Music Non Stop
Ela definitivamente virou a página, deixou sua antiga banda no passado, criou algo novo, instigante, mostrando que é uma nova persona, uma artista em plena ascenção. É impressionante ver alguém com tanto tempo de estrada continuar sendo subversiva. Nesses tempos tomados por ondas de conservadorismo, é um alívio e uma inspiração testemunhar essa força artística, uma mulher poderosa e criativa que definitivamente provou que sempre foi muito mais do que “a garota da banda”.