Odair José e “o disco mais afrontoso da música brasileira”
Jota Wagner conversa com Leonardo Vinhas, autor de O Evangelho Segundo Odair — livro que conta a história do controverso álbum Filho de José e Maria
Um Jesus Cristo brasileiro, homossexual, filho de pais que se separam e vão morar em cidades diferentes. Solitário e carente, usa o milagre do pão para facilitar relacionamentos. Odair José, então um artista popular de gigantesco sucesso comercial, mandou essa no meio da Ditadura Militar brasileira, em 1977. O artista brigou tanto pelo álbum Filho de José e Maria, que trocou de gravadora só para poder lançá-lo naquele ano. Sua ideia era produzir uma obra prima que validasse seu trabalho como arte. Deu certo, mas levou quase 50 anos para que isso acontecesse.
Filho de José e Maria contou com um time de peso na gravação. Com nomes como Hyldon, Azymuth e Robson Jorge, resultou em um funk-rock da pesada, hoje discotecado às pencas em festas de brasilidades. Quando saiu, levou pau de toda a imprensa especializada e foi um fracasso de vendas. “O problema é que os fãs de Odair José não queriam aquele som, e os fãs daquele som não queriam Odair José”, explica o jornalista Marcus Preto, em entrevista para o recém-lançado O Evangelho Segundo Odair.
Escrito por Leonardo Vinhas, o novo livro conta a história dessa obra, integrando a série Sound & Vision, da Editora Barbante. Vinhas coletou um monte de entrevistas, incluindo com o próprio Odair, para uma biopsia detalhada sobre um dos mais emblemáticos LPs da música brasileira.
O artista, que nos anos 70 era o maior vendedor de discos do país, resolveu meter o dedo na ferida do conservadorismo brasileiro, reinventando a história de Jesus Cristo. Causou verdadeiro horror na comunidade católica e foi até ameaçado de excomunhão. Odair criou uma obra que figura na mesma estante dos filmes Jesus Cristo Superstar (1973), Eu Vos Saúdo, Maria (1985) e Dogma (1999).
O livro de Vinhas é gostoso de ler e cheio de histórias inacreditáveis. Mostra como a recusa ao álbum balançou a vida de Odair José, que somente nos últimos anos viu reconhecida sua coragem e talento. O Filho de José e Maria virou cult. Tanto que seu criador apresentará, dias 31 de janeiro e 1º de fevereiro, um show tocando-o de ponta a ponta no Sesc Pompeia.
Leonardo Vinhas conversou com a gente e contou um pouco sobre essa ousada aventura de Odair José. Confira:
Jota Wagner: Em que momento da carreira do Odair esse disco se posiciona?
Leonardo Vinhas: É na hora em que ele tá com o maior moral na indústria coreográfica. O primeiro compacto do Odair é de 70. E entre 72 e 76, todos os cinco álbuns que ele lançou venderam entre 400 e 500 mil cópias. Ele vendia muito. Foi dessa época o contato “da pílula” [Uma Vida Só (Pare De Tomar A Pílula), de 1973, o compacto mais vendido da história brasileira].
Ele era contratado da CBS e queria fazer uma ópera-rock. A gravadora ficava falando “não, é muito arriscado, melhor fazer só um show que a gente te ajuda alugando um lugar foda”. Ele estava puto com isso. Então, a RCA Records recebe um investimento grande da matriz gringa e dá uma supermodernizada no estúdio do Rio, com equipamento de ponta. Também veio muita grana para contratar artistas. Eis que ela chega para ele fala: “você quer fazer esse disco? Aqui você tem carta branca”.
Eu imaginei que tivesse sido por uma certa busca de validação entre os colegas, uma coisa mais artística…
Cara, isso é uma coisa que ele não admite nem nega. Em 1973, por exemplo, ele lança a música Cotidiano Nº 3. Já existia a Cotidiano, do Chico Buarque, e a Cotidiano Nº 2, do Vinicius de Moraes. Ou seja, ele quer se colocar na mesma linha destes caras que gozavam de prestígio intelectual, mas não vendiam como o Odair. No mesmo ano, o Caetano Veloso o convida para cantar com ele no Anhembi, e o Odair não consegue cantar por causa das vaias do público. Esse público elitizado, que hoje iria, por exemplo, num show da Letrux ou no festival Coala, rejeita violentamente o Odair. Então eu acho que existia, sim, uma vontade de ser aceito intelectualmente. Mas também a vontade, manifesta dele, de se tornar o Peter Frampton brasileiro.
Em 76, é lançado o Frampton Comes Alive!, o disco [ao vivo] mais vendido da história. Foram 20 milhões de cópias. E o Odair falava: “pô, não existe esse cara na música brasileira, com a guitarra pendurada no pescoço, um frontman rock’n’roll, cabeludo”. Tanto que a capa de Filho de José e Maria traz um Odair sem camisa e de cabelo comprido.
E depois disso, com tudo o que aconteceu, o que ele pensa do disco? Arrependimento ou orgulho?
Tem, pelo menos, dois momentos. O disco sai e ele não encontra a repercussão que imaginava. Tomou pau direto. Isso abalou a autoestima e a autoconfiança dele. A capacidade criativa, abalou gigantescamente. Ele ainda lançou um outro disco na sequência, chamado Coisa Simples, que tem até algumas sobras de Filho de José e Maria, e a guitarra do Sérgio Dias, dos Mutantes.
Era ele ainda tentando ter uma pegada mais roqueira. Mas quando ele vê que esse disco também não vende tanto quanto os anteriores, ele perde a confiança. Ele mesmo diz que acabou fazendo 25 anos de coisas irrelevantes. Na entrevista que o Odair me deu, ele chegou a pedir desculpas a quem comprou estes discos: “são discos ruins, virei funcionário da gravadora e fazia o que eles mandavam. São só produtos”.
Mas aí, com o lançamento de Eu não sou cachorro, não, livro do Paulo César de Araújo (2002), os cantores populares dos anos 70 são colocados numa perspectiva diferente, como nunca antes. Duas histórias se sobressaem: a do Agnaldo Timóteo e a do Odair José. O Timóteo era um cara que vendia pra caralho e falava do universo gay. Embora nunca tivesse se assumido, estava ali, sentia aquilo e foi muito marcante.
O Odair ainda hoje, quando fala do Filho de José e Maria, o faz com um trauma muito grande. Só que depois do livro, o disco começa a ser representado e as pessoas começam a ouvi-lo. Começam a sair matérias aqui e ali. Saiu um tributo ao Odair, feito pela Allegro Discos [Vou Tirar Você Desse Lugar, em 2009]. E eu mesmo, com 27 anos, fui ouvir Filho de José e Maria por causa desse tributo. Quis conhecer a original que a banda Shaker Makers, de Goiânia, fez para Nunca Mais. Achava impossível o Odair José ter um groove daqueles, e no final a original era muito melhor que a do tributo. Um groove fodido pra cacete!
Como foi a aceitação da mídia e dos artistas a este disco?
A mídia debochou muito dele. Chamou o disco de confuso e pretensioso. Diziam que o Odair estava brincando ao fazer um som diferente, que não chegava a lugar nenhum. Desfizeram até da qualidade técnica. Uma das resenhas dizia que “a sofisticação não esconde a ruindade das composições”.
E você, o que acha disso?
Cara, o lance é que a critica musical sempre vai ser tomada pelo momento. Olhar em perspectiva, de forma independente do momento que você está vendo, é muito difícil. Mas o que eu acho é que a crítica musical brasileira sempre teve problemas com o artista popular. É aquela frase do Joãozinho Trinta que diz: “fazer sucesso no Brasil é pecado”. É verdade.
O brasileiro, principalmente o intelectualizado, não aceita o sucesso. E eu acho que o Odair, um cara associado com as classes mais baixas, mas também com plateias lotadas, com a coisa de fazer show no interior, um artista que podia aparecer em qualquer programa de televisão que a audiência aumentava e tal, fez parecer muito afrontoso tentar mostrar validade.
Muita gente fala “no Filho de José e Maria o Odair gravou com o Azymuth”. O grupo já tocava com ele desde 1972. O arranjador de todos os discos do Odair era o Zé Roberto Bertrami, o tecladista original do Azymuth.
O que muda no novo álbum é que, além do Azymuth e do Hyldon, que também já gravava com o Odair, ainda teve o Robson Jorge, que junto com o Lincoln Olivetti, é o pai do grande som suingado brasileiro. Fora o Jorge, não tem ninguém de novo naquele álbum, era a mesma galera com quem ele já estava trabalhando.
Mas a galera fala desses caras, ainda hoje, para poder dar legitimidade ao Filho José e Maria. Porque o Odair não é um cara fácil de ser assimilado. Suas músicas são machistas, em certos aspectos. São machistas porque a sociedade brasileira era machista.
Um retrato da época também…
Outra é que é que ele brincava com um símbolo que até hoje dá pau, que é o da cristandade. O cara fala que o José quer comer Maria, que a Maria deixa ele louco de tesão, mas ele separam e o José fica perdido na vida, e vai despirocar bebendo e cheirando pó. Cara, isso para o brasileiro médio é um choque, e para o intelectualizado é um confronto que não consegue assimilar, porque não tem os signos que ele conhece.
O Roberto Carlos e o Tim Maia também não eram populares? Por que só o Odair ficou com essa coisa estampada de “música de empregada doméstica”?
O Roberto também tomava pau da crítica direto. Nunca foi uma unanimidade. Se tornou uma depois dos anos 90, mas era extremamente tocado nas rádios. O Tim não tinha o mesmo nível de popularidade, era mais como o Jorge Ben. Artistas médios, não vendiam 500 mil discos. Uma vez o [produtor musical] André Midani disse que um disco do Odair José pagava vários do Caetano Veloso. Foi a grana dos discos do Odair que financiou aventuras como Araçá Azul e Expresso 2222, discos que tinham vendas totalmente inexpressivas na época.
O que mais te surpreendeu durante as pesquisas para o livro?
Acho que foi entender o quanto o Odair, até hoje, é polêmico. Entender a dimensão disso, do quão controverso ele é.
Depois de fazer o livro, posso dizer com certeza que não existe disco mais afrontoso na música brasileira do que Filho de José e Maria.
E também o fato de ter uma sofisticação melódica, não em termos de composição (porque as composições dele seguem até uma coisa meio formulaica), mas tem ali uma sofisticação de melodias, algo muito redondo. Realmente como aquela coisa que o pessoal fala, de ele ser um Bob Dylan do cerrado. O Dylan não é um cara com grande variação musical, mas as melodias que entrega são redondíssimas dentro daquilo que ele está fazendo. Em Filho De José e Maria houve, assim como na obra de Dylan, um salto de qualidade, mas não foi uma ruptura. Tudo já estava lá, nos discos anteriores.
Mas ficou no imaginário como uma ruptura mesmo…
Sim. Mas para mim é um salto, um aprofundamento de algo que já existia. Vou Tirar Você Desse Lugar, seu segundo grande sucesso, fala de um pai de família avisando que vai casar com uma prostituta. “Eu vou levar você pra ficar comigo. E não me interessa o que os outros vão pensar.” Isso é muito Brasil!
Há anos tá rolando um revival da música brasileira. DJs tocando discos raros, gringos lançando coletâneas… Isso recompôs a imagem do Odair? Ele está tendo o reconhecimento que merece?
Vou citar o John Ulhoa, do Pato Fu, que entrevistei no livro. Recentemente, tem uma juventude redescobrindo o Odair José sem aquela coisa irônica, que existia na geração dele. Mas, ainda segundo o John, precisamos reaprender a ouvir Odair José. Eu fui no show dele em 2024 no Sesc Vila Mariana, e vi muitos jovens LGBT+. Estão se apropriando do Odair. Todos ali, cantando as músicas que foram sucesso antes deles nascerem. Eu acho que ainda pode vir uma redescoberta dele. Ele ainda segue perdido no limbo, porque é muito difícil colocá-lo numa casinha.
É muito difícil transformá-lo em um personagem folclórico como fizeram com o Belchior, por exemplo. Tiraram todas as complexidades humanas do Belchior e o transformaram num bigodudo para estampar camiseta de jovem da classe média de esquerda. Tiraram tudo e mantiveram a ideia do cara que quis viver seu “sonho de liberdade”. Mas o cara abandonou filhos, empresa, deixou dívidas, um monte de gente sem receber. Foi supernegligente. O sonho de liberdade dele custou caro para muita gente. O Odair é um cara tão complexo, que não dá para transformar em um ursinho fofo.