Gala Foto: Reprodução

Da onda eurodance a hino de torcida: como hit de Gala bomba até hoje

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Single de 1996, Freed From Desire é um dos poucos sons da era do eurodance que seguem bombando — e se reinventando — em 2024

O eurodance, onda que inundou as pistas de dança do mundo inteiro dos anos 90, e a música eletrônica pós-EDM têm muito em comum. Vocais doces e chapa branca, um “ná, ná, ná” para facilitar a cola no córtex, linha de produção básica e constante, padrão fast food e versos tirados do volume 1 das cartilhas de inglês da Fisk. Embora a tecnologia tenha trazido mais recursos para as produções atuais, a fórmula é a mesma do movimento que invadiu rádios, casas noturnas comerciais e televisão. Simbólico, portanto, que uma faixa de eurodance lançada em 1996 esteja na lista de mais buscadas do ano no Shazam. Trata-se de Freed From Desire, da cantora italiana Gala.

Escolhida pelo público como elo de conexão entre as duas eras, no entanto, a canção prova que, para resistir ao tempo, é preciso alguma qualidade. Freed From Desire foi uma das pérolas daquele momento, se destacando do caminhão de músicas semiprontas que eram despejadas em sua cabeça. Tem um apelo bate-cabelo LGBT+ delicioso, e pianos e batidas inspiradas na house music de Nova Iorque. O povo escolheu bem o que buscar em seu interesse pelas raízes do eurodance.

Freed From Desire foi o primeiro single de Gala Rizzatto, italiana de Milão. Naquela época, a produção industrial de música para pistas de dança era comandada pelos donos de estúdio. Por isso, os nomes de Maurizio Molella, Phil Jay e David Seitz aparecem sempre ao lado da artista nos créditos da música. Cantoras eram convidadas para emprestar sua voz às músicas e dar uma “cara” ao projeto.

A faixa fez um baita sucesso na Europa, levando Gala a programas de TV icônicos como o Top Of The Pops, e chegou forte no Brasil. Entrou em seu primeiro álbum, Come Into My Life (1997), e sofreu superexposição tamanha que fez com que a cantora “brigasse com a música”. Passada a febre do “ná, ná, ná”, a italiana tomou as rédeas de sua carreira, deu uma guinada no barco e navegou pelo mercado independente, lançando discos com pitadas de breakbeat, acid jazz e R&B.

Mas, como dizia Mano Brown, “você pode sair do Eurodance, mas o Eurodance não sai de você”. Em 2016, a torcida do Wigan Athetic, da Irlanda, adotou a música como seu canto de guerra, mudando o refrão para “Will Grigg’s On Fire”, em homenagem ao atacante Will Grigg. Bombou tanto que, além de também ter sido adotado por outras torcidas, acabou virando hit dos DJs de estádio. A música se tornou uma espécie de hino da vitória para diversas seleções na última Copa do Mundo, incluindo a vice-campeã França e a campeã Argentina.

Como não poderia deixar de ser, o hit ficou tatuado na cantora. Era a Gala do Freed From Desire, e foram necessários quase 20 anos (e muitos jogos de futebol) paraque ela fizesse as pazes com o eurodance. Gala topou relançar a faixa, pela gravadora da Ministry Of Sound, com direito a remix do Diplo. Assumiu o filho com orgulho, e o canto da liberdade noventona está de volta na cabeça da molecada.

“Eu amo que a reaparição desta música foi motivada não por uma operação comercial, mas por pessoas cantando em estádios, protestos de estudantes, encontros LGBT+ e DJs mundo a fora”, declarou Gala em comunicado à imprensa. Freed From Desire (“liberta do desejo”) tem inspirações budistas, ainda segundo a cantora. A libertação da busca mundana pela satisfação do desejo incontrolável é um dos preceitos da religião oriental.

Jogadores da Seleção Francesa comemorando vitória nas oitavas de final da Copa do Mundo de 2022 ao som de Freed From Desire

Em pleno 2024, todo mundo está feliz. Gala recolhendo os louros de sua primeira música lançada, gente do mundo inteiro dançando e cantando Freed From Desire sem compromisso e DJs com uma nova versão de um hit das pistas, prontos para salvar a festa.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.