Preços dinâmicos Foto: Bob Coyne [via Unsplash]

Preços dinâmicos: o leilão virtual de ingressos que irrita fãs e preocupa a justiça

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Entenda como os preços dinâmicos estão, cada vez mais, transformando grandes shows em artigos de luxo

Toda empresa tem, pendurada na sua parede, um quadro onde estão orgulhosamente descritas as suas missões e valores. A ideia é que todos os funcionários olhem para ela pelo menos uma vez ao dia, para não se esquecerem do propósito de seu trabalho. Nas sedes das responsáveis pela venda de ingressos para shows, principalmente nos Estados Unidos, a placa deve conter: “Missão: irritar nossos clientes, e mantê-los putos da vida conosco, todos os dias”. Depois de se envolverem em polêmicas gigantescas atuando como cambistas de si mesmos, as empresas apresentaram aos clientes, na turnê de retorno do Oasis, mas uma novidade: os “preços dinâmicos”.

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O processo é muito parecido com o que já vemos em hotéis, companhias áreas e aplicativos como o Uber, por exemplo. Um algoritmo determina, a partir da procura por um determinado show, o valor do ingresso. O preço começa com o valor de tabela que, importante que se diga, não é baixo. E vai subindo (ou descendo, de acordo com as empresas) conforme o interesse dos clientes. O sistema é a cereja em um indigesto bolo servido ao público de espetáculos nos últimos anos. Procedimentos que estão sendo alvos tanto da justiça estadunidense, quanto da britânica. Para entender o caso, é preciso voltar um pouco no tempo.

O secondary market

Você compra seus ingressos para um show, mas algo acontece e você não poderá mais comparecer. Basta procurar um amigo ou postar nas redes sociais que está com um par sobrando e vendê-lo. Só que para cada arrependido bem-intencionado, existem mais 99 aproveitadores. Rapidamente, muita gente percebeu que é uma baita negócio sair na frente e comprar vários ingressos, esperar esgotar e depois oferecê-los no tal “secondary market” com preços ultrainflacionados.

A coisa desandou de vez na Era’s Tour, da Taylor Swift, no ano passado. Golpistas programaram robôs para entrar na fila virtual e comprar uma quantidade gigantesca de ingressos. A ganância das gangues foi tão grande que os compradores de mentira congestionaram o sistema da Ticketmaster, que foi tirado do ar. A justiça estadunidense entrou no rolo com diversas ações, incluindo o recado de que estão incomodados com 0 oligopólio no mercado de vendas de ingressos para shows e eventos esportivos, comandados por pouquíssimas empresas no país.

“Nós alegamos que as empresas apresentam condutas ilegais e conduta anticompetitiva na condução de seu exercício, monopolizando a indústria de eventos nos Estados Unidos às custas de fãs, artistas, pequenos promotores e proprietários de casas de shows”, alegou o promotor público americano Merrick B. Garland, responsável por uma das inúmeras ações contra as duas principais empresas do setor, Live Nation e Ticketmaster.

Tem caroço nesse angu

O escândalo provocado pelo caso Taylor Swift obrigou a Ticketmaster a correr para resolver o problema. Depois de interromper as vendas e cancelar as transações suspeitas, a empresa implantou uma verificação de identidade do comprador, com os chamados “verified fans”. A ideia, claro, era controlar a compra de tickets em quantidades limitadas, somente para quem puder provar que existe de verdade.

Além disso, a companhia criou um serviço oficial para a revenda de ingressos daquele 1% de gente que se arrependeu da compra, mas a iniciativa foi outro furo n’água. Como não podia, legalmente, impedir o usuário de fixar um preço na sua revenda, voltaram a aparecer casos estranhos, de gente vendendo muito ingresso a preços muito altos, após se esgotarem no canal oficial. No meio da montanha de reclamações, a própria empresa foi acusa de ser “cambista de si mesma”, vendendo tickets extras na plataforma, também mais caros.

Como desgraça financeira pouca é bobagem, as empresas brindaram seus clientes com mais uma novidade, o serviço premium. Desde que o primeiro músico do mundo anunciou seu show, o ser humano se acostumou a pegar fila. Antigamente, o lance era ficar debaixo de sol e chuva em pé esperando pela sua vez de comprar o ingresso, nas bilheterias das casas de show e estádios. Com a chegada do atendimento telefônico, era possível esperar em casa: “Obrigado por nos ligar, aguarde para ser atendido, você está na posição 1.324.423 na lista de espera de atendimento”.

Com a facilidade das compras pela internet, a única forma de organizar o rolê em que muito mais gente quer ingresso do que admite a capacidade do evento, a fila ficou mais cômoda. Ao chegar a sua vez, você recebe uma mensagem no telefone ou email, avisando que o ingresso foi emitido. Até que as empresas montaram uma espécie de “fura fila gourmet”. Clientes ficaram putos ao receber, aguardando sua vez, mensagens comerciais da empresa oferecendo o tal serviço premium: pagando até dez vezes mais do que o valor anunciado, você passava na frente de todo mundo.

Preços dinâmicos: a solução para todos os problemas (dos vendedores)

Filas gigantescas, gente reclamando por todos os lados, justiça pegando no pé… como resolver essa bucha de canhão? Pela lógica do mercado, a única solução para um problema em que há mais demanda do que oferta é subir o preço. E foi o que finalmente aconteceu, através dos surreais “preços dinâmicos” que, no fritar dos ovos, são apenas um leilão virtual. Quem pagar mais vai no show.

Para entender o sistema, a fila segue existindo. No entanto, os preços vão subindo e subindo até você aceitar clicar no botão “mãos ao alto” e topar o valor oferecido. Segundo as empresas, é um sistema justo. Afinal, se em determinado show as vendas estiverem fraquinhas, os preços podem ficar até mais baratos dos que os anunciados. Segure a gargalhada, porque a gente aqui está rindo também (de nervoso): gigantes como a Ticketmaster e a Live Nation jamais aceitariam vender ingresso de um festival desconhecido, de um artista em decadência ou de um jogo pela “Série F” do Brasileirão. Estas empresas só trabalham com peixes grandes do pop, o que significa que sempre haverá mais demanda do que oferta.

O barulho feito em torno da novidade é gigantesco. O Green Day está correndo o risco de cancelamento público após ter anunciado seus próximos shows no sistema de preços dinâmicos. Afinal, a banda punk nasceu tocando em squats e cresceu criticando o capitalismo. Os ingressos para os shows do Oasis já estão, dinamicamente, quase cinco vezes mais caros do que o anunciado no cartaz. E a justiça inglesa e a estadunidense não estão nem um pouco felizes com isso. Ambas já anunciaram que vão brigar para acabar com a festa, considerada abusiva. Um dos argumentos principais é o de que ir a um show ou festival demanda planejamento prévio de viagem — passagens, hotéis… Como se preparar para isso sem saber se você vai ter ou não o dinheiro para pagar o ingresso?

Nos mercados em que a tarifa dinâmica é aplicada há mais tempo (e ainda assim sofre críticas), a flutuação de preços é mais ligada à antecedência. Se você comprar sua passagem com meses de antecipação, vai pagar mais barato. Se precisar viajar de última hora, vai ter de se sujeitar aos preços altos. As regras são mais claras e, com poucas exceções, não há fila. No sistema adotado pelas empresas digitais, o lucro vem em cima do desejo e do desespero do cliente. E o caminho é inverso. A preferência é sempre de quem pode pagar mais caro, em um ambiente onde um monte de gente está disputando a tapas um lugar ao sol.

Assim como o cardápio em QR Code nos restaurantes, o sistema de preços dinâmicos já chegou, apesar de todo mundo odiar. Nos próximos capítulos, veremos uma disputa ferrenha entre o poder econômico e os órgãos que defendem os direitos dos consumidores. Enquanto isso, os grandes shows estarão reservados a quem tem mais grana.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.